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Rosácea da Catedral de Strasburgo.

ARQUITETURA GÓTICA, ESCOLÁSTICA DE PEDRA

Cunha Alvarenga

Chegou a nossas mãos, recentemente, um ensaio em que certo crítico de arte mostra espantosa incompreensão do estilo gótico. O curioso é que, completamente arrebatado pela arte moderna e pelos progressos da ciência e da técnica, não se acanhou o autor de chamar o empoeirado Michelet para depor contra o estilo próprio da Idade Média. Tudo vale quando se trata de demolir o que se apresenta como um tropeço à Revolução em marcha. Um ligeiro cochilo do nosso demolidor, porém, nos pôs a pensar: confessa ele, numa frase perdida no meio daquele cipoal de palavras, que a catedral gótica propicia ambiente favorável ao recolhimento e à oração. Anotemos a observação.

É comum essa má vontade em relação à arte medieval. Citemos outro exemplo. "The Architectural Review", que se publica em Londres, no ano de 1945 dedicou um número especial ao gótico. Em sua apresentação, afirmam os editores claramente que tal manifestação de interesse pela arte ogival "só se tornou possível pelo agora indisputável estabelecimento do movimento moderno como o estilo próprio de nosso século" (1). Por outras palavras, pode-se falar agora abertamente do gótico porque teria passado o perigo de qualquer tentativa de restaurá-lo: estaria ele irremediavelmente morto e enterrado sob o chão duro em que a arquitetura moderna orgulhosamente ergue seus mastodontes de concreto armado.

Uma surpresa, porém, aguarda o leitor desprevenido. Era de esperar que, publicada na terra das maravilhosas catedrais de Canterbury, de York, de Salisbury, de Peterborough, a revista se valesse desses monumentos para ilustrar os respectivos textos. Que vemos, todavia? Em lugar de tantos puros exemplares do gótico inglês, com ar de derrisão aparecem nas várias páginas desse número especial de "The Architectural Review" quase que exclusivamente reproduções de obras primas de mau gosto, autênticas contrafações do estilo ogival, que os editores foram buscar na tentativa de restauração gótica timidamente surgida na Inglaterra dos séculos XVIII e XIX.

Essas ilustrações, escolhidas talvez facciosamente, sugerem um problema: uma vez perdido o espírito que provocou o nascimento do gótico no esplendor da Idade Média, como restaurar um estilo que foi fruto genuíno da plena aceitação da concepção católica da vida? Como fundir a estátua enquanto permanece quebrado o molde?

Precisemos, portanto, nosso objetivo ao abordar o assunto. Não é nossa intenção pugnar pela volta ao estilo ogival, nas condições atuais, por enorme que seja nossa admiração por ele. Um estilo arquitetônico é filho de um estilo de vida e não se pode impor artificialmente, não obstante seja isto o que fazem modernamente os governos totalitários que dispõem do necessário poder discricionário e dos não menos necessários e ciclópicos recursos econômicos (2). Nosso propósito é bem outro. Queremos demonstrar, tomando como ponto de partida o gótico, que a plena aceitação da verdade católica é capaz de gerar, não somente um autêntico e inconfundível estilo de vida, mas também um estilo arquitetônico, uma estética própria.

Segundo Wilhelm Worringer, foi Godofredo Semper, com sua atitude parcial em favor do classicismo, quem primeiro empregou a expressão "escolástica de pedra" numa canhestra tentativa de desacreditar o estilo ogival. Mas, diz o mesmo autor, "este juízo tão exato sobre a arte gótica não pode significar descrédito, a não ser para os que, incapazes de superar o estreito ponto de vista moderno, não conseguem contemplar em conjunto o grande fenômeno medieval da escolástica" (3). A civilização medieval foi um todo orgânico e coeso em suas partes. E seus inimigos não deixam de proclamá-lo ao reconhecer essa identidade de espírito que uniu o gótico à escolástica. Quando não vão frontalmente contra a Igreja, que foi a verdadeira criadora dessa civilização, investem ora contra a escolástica, ora contra o gótico, mas sabem que, atacando um, atingirão também os outros.

A revolução religiosa, política e social dos Tempos Modernos teve como uma de suas primeiras brigadas de choque o humanismo renascentista, que atuou sobretudo no campo estético. E vem da Renascença a palavra "gótico", tomada em sentido pejorativo, para designar algo de bárbaro, de grosseiro, que cumpria substituir pelas belezas do classicismo neopagão. Semelhante ódio a essa expressão estética da civilização católica aparece, através dos séculos, junto a outras formas de destruição revolucionaria. Assim é que na Revolução Francesa são arrasados os últimos resquícios do mundo gótico e feudal, ou da Cristandade como expressão política. E a fúria do barrete frígio se exerceu não somente contra as instituições, mas também contra os castelos, contra os conventos, contra as abadias, contra as catedrais. Até hoje são visíveis as cicatrizes e as ruínas que assinalaram a passagem dessa horda de vândalos. Em 1793, por exemplo, Saint-Just e Le Bas ordenaram a destruição das imagens da Catedral de Strasburgo para transformar esse esplêndido exemplar do alto gótico em "templo da Razão". Alguém, sabendo do que ia acontecer, apressadamente e às escondidas removeu para sua própria casa e instalou em seu jardim duas estátuas, verdadeiras obras primas, que simbolizam a Igreja e a Sinagoga. Mais ainda, para salvar da sanha revolucionaria os altos-relevos do tímpano da entrada principal, ocultou-os sob um grosseiro painel de tábuas, no qual fez escrever as palavras mágicas: "Liberdade, Igualdade, Fraternidade"...

Da parte dos inimigos da Cidade de Deus, convenhamos que esse ódio ao gótico é logicamente fundamentado. Para demonstrá-lo basta que atentemos para a história desse estilo.

A arquitetura gótica não teve início na decadência de uma arte ou de um estilo, mas é produto de uma nova civilização que então se estruturava e que criou novos padrões estéticos, os quais progressivamente se foram impondo a todo o mundo cristão. Justamente o contrário da arquitetura românica, que se originou do esforço dos monges e do povo por continuar a fazer algo parecido com os edifícios romanos, cujas ruínas se espalhavam um pouco por toda parte.

O gótico surge como fruto de um movimento iniciado na "Ile de France", verdadeiro núcleo geográfico dessa arquitetura e também da escolástica. Dali se irradia, tomando características locais, mas mantendo sempre seus elementos fundamentais. Um círculo de cinquenta léguas, ou aproximadamente 330 quilômetros, traçado de Paris como centro, abarca senão todas as igrejas ogivais do primeiro período, pelo menos aquelas em que a arte gótica primitiva se manifesta com toda a exuberância e em todo o seu esplendor. "É ali que, segundo todos aceitam, começa a alta escolástica por volta do século XII, justamente quando o sistema do alto gótico lograva seus primeiros triunfos em Chartres e Soissons; e ali é que se chegou a uma fase decisiva ou clássica em ambos os campos durante o reinado de São Luís (1226-1270). Foi no dito período que floresceram, entre os filósofos da alta escolástica, figuras como as de Alexandre de Hales, Alberto Magno, Guilherme de Auvergne, São Boaventura e São Tomás de Aquino, assim como arquitetos do alto gótico entre os quais se contavam Jean de Loup, Jean de Orbais, Robert de Luzarches, Jean de Chelles, Hugues Libergier e Pierre de Montereau; e os rasgos distintivos da alta escolástica para diferenciá-la da primitiva — são notavelmente semelhantes aos que caracterizam a arte

(continua)