"AJUDAR A NOBREZA EMPOBRECIDA, PARA HONRAR A NOSSO SENHOR, QUE FOI A UM TEMPO MUITO NOBRE E MUITO POBRE"
(continuação)
região. Foi o suficiente para que ela recebesse todo o necessário e muito mais ainda. Compreendeu São Vicente que mesmo a caridade, para não se desperdiçar, deve ser organizada. E com senhoras piedosas constituiu uma associação encarregada de identificar os pobres e doentes da paróquia, e de regularizar os socorros de que tivessem mister. Aos poucos, os núcleos dessa sociedade se multiplicaram, transpuseram os limites de Châtillon, e o Santo percebeu que seu coração era maior do que suas forças. A Providência fê-lo encontrar a então jovem viúva de Antoine Le Gras — que a Igreja venera sob o nome de Santa Luisa de Marillac — e com ela fundou as Filhas da Caridade.
Com estas São Vicente estendeu sua ação ao país todo, e mesmo ao além-mar. Começaram as Filhas da Caridade, como ele mesmo recordou, tratando dos doentes, onde quer que fossem chamadas, não se limitando aos hospitais; prodigalizaram, logo mais, seus cuidados às crianças abandonadas, aos expostos; mais tarde assistiram os condenados às galeras, depois os velhos e os loucos, os feridos e órfãos de guerra. Se a isto juntarmos o amparo que os Lazaristas — a outra fundação vicentina — prestaram aos escravos cristãos dos mouros, através do consulado francês em Tunis e Argel, veremos que não houve miséria ou desgraça humana que não conhecesse a mão benfazeja de São Vicente.
DAMAS E CONFERENCIAS VICENTINAS
Em Paris, por iniciativa da presidente Goussault, M. Vincent — como era chamado — fundou as Damas da Caridade, recrutadas na classe nobre para auxiliarem as Religiosas agostinianas encarregadas do hospital da cidade. Mais tarde, também esta associação ampliou seu campo de ação caritativa. Foi assim que, ao lado da conferencia dos nobres, de que falaremos, prestou inestimáveis serviços na assistência às vítimas da infeliz guerra movida por Richelieu à casa de Lorena.
OS NOBRES DA LORENA
Entre as páginas tristes da história escritas pelo onipotente ministro de Luís XIII, está a cruel e mesquinha perseguição à aristocracia lorenense. Reduzidos à miséria, e obrigados a respeitar o decoro da sua estirpe, impossibilitados, pois, de estender a mão à caridade pública, estariam aqueles nobres condenados a morrer à míngua, se não viesse em seu socorro a inesgotável caridade de São Vicente. "É justo ajudar essa nobreza empobrecida, para honrar a Nosso Senhor, que foi a um tempo muito nobre e muito pobre", dizia ele a, uma pessoa que lhe relatava a situação daquelas infelizes famílias. Auxiliado pelo Barão de Renty, alma generosa, fundou o nosso Santo a conferência dos nobres para socorrer os membros da classe empobrecidos.
AS VÍTIMAS DE CROMWELL
Apesar da morte prematura de Renty, a associação continuou sua obra providencial. Assim é que assistiu os nobres da Inglaterra e da Irlanda exilados por Cromwell. Edificava-se São Vicente ao ver a paciência heróica com que esses aristocratas proscritos pela heresia suportavam a desgraça por amor à fé. "Estes são verdadeiros cristãos — comentava. Preferiram deixar tudo, antes que abandonar a Deus. E que somos nós comparados a eles, se nada nos falta, nem perdemos nada por Deus? Contentam-se com dois escudos mensais, depois de terem desfrutado uma renda de quinze a dezesseis mil libras, e sofrem com paciência esta cruel mudança da fortuna!" (Vida de S. Vicente de Paúl, J. Herrera, C. M., e V. Pardo, C. M. — Ed. BAC, Madri, 1950, p. 349).
II - O PRINCIPAL É A SALVAÇÃO DA ALMA
Por esta reflexão vê-se que o admirável apostolo da caridade não se detinha no alívio das necessidades do corpo, ou no conforto às aflições terrenas. Seu amor aos pobres era sobrenatural. Nestes via a imagem de Jesus Cristo sofredor, ao qual sua generosidade nada podia recusar. Não era dominado, como hoje acontece com frequência, por uma compaixão unilateral e romântica pelos humildes, aliada a um desprezo pelos ricos, como se estes fossem sempre uns amaldiçoados de Deus. Como suas vistas eram sobrenaturais, compreendia perfeitamente que a hierarquia social é desejada pelo Criador, e que as misérias da alma são muito mais importantes do que as necessidades do corpo. Aliás, suas primeiras obras de caridade visaram ao benefício das almas.
A CONGREGAÇÃO DA MISSÃO
De fato, quando era capelão dos Condes de Gondi, o Padre Vicente de Paulo foi certa vez chamado à cabeceira de um camponês de oitenta anos de idade, que agonizava. Com pasmo, soube que o infeliz jamais frequentara os Sacramentos da Igreja. O fato abriu os olhos do capelão e da piedosa Condessa para a situação religiosa da gente do campo. A rogo da nobre senhora, São Vicente dirigiu ao povo daquela terra dos Gondi uma exortação à confissão geral, com efeito extraordinário. Não lhe bastou o tempo para atender a todos os penitentes. Daí a ideia das missões populares: uma serie de práticas para o povo, sobre as verdades eternas e os meios de salvação. Outros Padres agregaram-se depois ao Santo, e, com estes colaboradores, fundou ele uma associação de Sacerdotes, "cujos membros renunciavam à atividade nas cidades e às prebendas e dignidades eclesiásticas, e resolviam dedicar-se inteiramente ao cuidado do povo, sob a obediência dos Bispos. Vivendo à custa da própria comunidade, desejavam ir de povoado em povoado a pregar, instruir, exortar, dar catecismo e levar a gente pobre a uma confissão geral. Nada deviam receber por seu trabalho, mas dispensar gratuitamente o dom que haviam recebido da generosa mão de Deus". Assim rezavam os estatutos dessa zelosa associação (Pastor, Urbano VIII, cap. VI, 3). A obra ampliou-se, recebeu donativos, foi aprovada pelo Arcebispo de Paris, por Urbano VIII, e, por fim, erigida em Congregação Religiosa por Alexandre VII. São incontáveis os serviços que a Congregação da Missão prestou ao soerguimento religioso da França e de outros países. Dela se serviu o santo Fundador em todas as suas obras apostólicas. Seus membros chamaram-se lazaristas, do nome do Priorado de Saint-Lazare, onde tinham sede.
SOLUÇÕES RADICAIS
Homem de visão profunda, Vicente de Paulo buscava para os problemas as soluções de raiz. Vimos como procurou dar uma solução estável e, quanto possível, radical ao problema dos pobres, enfermos, órfãos, e demais necessitados. Com sua associação de Padres visava a fazer o mesmo com a falta de assistência religiosa de que se ressentia o povo simples. As missões populares dependiam, no entanto, da existência de Sacerdotes zelosos e bem instruídos. O grande problema terminava sendo o da decadência do Clero, tão grande naquela época, que confessores havia que ignoravam até a fórmula da absolvição sacramental. Voltou-se, pois, o Santo para a condigna preparação e santificação dos Padres. Numerosas foram suas realizações nesse sentido. Cursos intensivos de formação pessoal, litúrgica e pastoral, retiros para os ordenandos, e enfim os seminários nos moldes prescritos pelo Concilio de Trento. Como complemento, as conferências das terças-feiras, a fim de conservar o espírito de piedade e o gosto do estudo que devem animar a vida sacerdotal, e os exercícios espirituais para reforma dos tíbios ou transviados e afervoramento dos bons. Os frutos foram dos mais consoladores e dos mais fecundos para a Igreja na França.
O mesmo desejo de soluções racionais que eliminassem os males pela raiz, levou São Vicente de Paulo a empenhar esforços pela realização de uma cruzada contra a pirataria muçulmana no Mediterrâneo, e para conquistar Tunis e Argel ao islamismo. Não era certamente a ignorância dos horrores inerentes a toda guerra que lhe inspirava planos tão belicosos. Era a compreensão exata das obrigações dos povos cristãos com relação àqueles que perseguem os fiéis de Jesus Cristo. Igual consideração o inspirou ao aprovar uma cruzada contra a opressão dos católicos na Inglaterra.
III - A ESTIMA PELA INTEGRIDADE DA FÉ
Uma das características do fundador da Missão era sua adesão a Roma. Nela via a garantia da integridade da fé, sua preocupação constante. À fé subordinava as demais virtudes. Conhecido pela bondade e mansidão apostólica, mudava inteiramente quando a ortodoxia estava em jogo. Com os hereges era intolerante. "As matérias de fé, dizia a alguém que lhe propunha transações com alguns sectários, não sofrem alteração, nem admitem acordos, e portanto não é possível acomodá-las às opiniões desses senhores. A eles toca submeter as luzes de sua razão e reunir-se a nós na mesma crença, por meio da sujeição sincera e sem reservas à Igreja Católica. Sem isto, não nos resta outro recurso que não seja orar a Deus por sua conversão" (J. Herrera e V. Pardo, o.c., pp. 543-544).
RECEIO DE CAIR NA HERESIA
Seu amor à fé vinha acompanhado do temor de perdê-la. Sua humildade tirava-lhe a confiança em si mesmo nesse particular, especialmente porque seu arguto conhecimento dos homens lhe dava uma idéia exata da habilidade dos hereges para insinuar o veneno do erro. Seu grande receio era cair no laço de alguma heresia incipiente. "Durante toda minha vida, afirmava, tive grande medo de tropeçar com o nascimento de alguma heresia. Eu via a terrível ruína que tinham realizado as de Lutero e Calvino, e quantas pessoas de toda índole e condição haviam sugado o pernicioso veneno querendo provar as falsas doçuras da pretensa reforma. Sempre tive medo de encontrar-me envolvido nos erros de alguma nova doutrina sem que me desse conta" (o.c., p. 494).
OS ERROS NA ORIGEM
São Vicente tinha razão. As heresias não aparecem na história como pontos negros bem definidos, como as vemos depois de sua condenação. De início elas se mostram como que a medo, em vais-e-vens, ora mais claramente professadas, ora encobertas em formulário ortodoxo, ora sob a aparência de uma adaptação natural às circunstancias do momento, jamais como doutrina abertamente oposta aos ensinamentos da Igreja.
Isso que vale para todas as heresias se aplica muito particularmente ao jansenismo, cujos asseclas foram mestres na arte de iludir e perder os homens. Assim, aconteceu o que São Vicente tanto temia: coube-lhe presenciar o aparecimento dessa terrível heresia, capaz, mais do que nenhuma outra, de envolver as pessoas quase sem que elas o percebessem.
OS HOMENS E AS HERESIAS
Na disseminação, como na exterminação do erro, há um princípio que nem sempre é tomado na devida consideração. Quer a verdade, quer a heresia não têm subsistência própria. São acidentes da alma. Vivem no homem que acerta ou erra. Há erros, há heresias, porque há hereges; do contrário, não passariam de entes de razão. De onde resulta que, para extirpar o erro, não basta condená-lo, ou contentar-se com uma retratação de quem errou. É preciso destruir o tronco onde ele se fixa, e pelo qual vive e age. E isto se faz de duas maneiras: ou mudando a mentalidade do herege, ou anulando sua ação, reduzindo-o à impotência. O que se diz do erro aplica-se à verdade. Também esta vive e irradia através dos homens que a encarnam em todo o seu modo de pensar e agir. Vê-se, portanto, que a derrota total do erro, a destruição de uma mentalidade falsa, de um estilo de vida herético, pede um apoio decisivo àqueles que estão de tal maneira possuídos da verdade contraria, amam tão ardentemente a Deus, Suma Verdade, que pelos seus atos, por todo o seu modo de proceder, impedem a difusão do erro não só combatendo-o diretamente, mas também criando um ambiente, dando origem a costumes integralmente católicos. Qualquer combate à heresia que não tome em consideração tal fato, a saber, que é nos homens e pelos homens que ela vive e se espalha, está fadado ao malogro.
LUTOU CONTRA O JANSENISMO PRINCIPALMENTE NO TERRENO PESSOAL, NUMA ESPECIE DE CORPO A CORPO COM OS HEREGES
A APLICAÇÃO AOS JANSENISTAS
Os filhos das trevas parecem ter melhor consciência dessa verdade do que os filhos da luz. Por isso, muito mais do que por argumentos, é pela ação pessoal que eles alargam seus domínios. Conquistam pelas vias que dão acesso ao coração humano e permitem amolecer as resistências da vontade: amabilidades, serviços, e sobretudo amizades fundadas na piedade e virtude que os hereges sabem aparentar. Essa tática, velha como a tentação do Paraíso, foi habilmente usada pelos jansenistas, e com perícia eximia por um dos seus fundadores, o Abade de Saint-Cyran.
SÃO VICENTE DE PAULO E SAINT-CYRAN
Não é preciso dizer que esse grande propugnador do jansenismo na França percebeu logo todo o partido que tiraria, caso pudesse incluir entre os seus sequazes o prestigioso fundador da Missão. Aproximou-se, pois, e por meio de Berulle, então diretor espiritual de São Vicente, conseguiu a primeira entrevista, a pretexto de obter um favor para um sobrinho. Foi o início de uma amizade que chegou ao "teto comum, à mesa comum, e à bolsa comum". Confessou o Santo que "os discursos de Saint-Cyran o encantavam, o elevavam e o inflamavam", de maneira que não teve dúvida em "fazê-lo depositário de suas confidencias e conselheiro de suas dúvidas" (o.c., p. 495). Sua perspicácia sobrenatural lhe permitiu, porém, identificar a tempo o lobo sob a pele do cordeiro.
LUTA VISANDO NEUTRALIZAR PESSOAS
A experiência adquirida em suas relações com Saint-Cyran criou no Padre Vicente a convicção de que a luta contra a heresia deveria ser travada, não só no campo das ideias, como principalmente no campo pessoal, numa espécie de corpo a corpo, uma vez que não se poderia contar com a sinceridade dos jansenistas. "Ouvi M. de Saint-Cyran dizer — escrevia — que, do mesmo modo como exporia algumas verdades em uma reunião de pessoas capazes de compreendê-las, assim também, perante outras que não o fossem, diria o contrário" (carta ao Padre Jean d'Horgny, da Missão, o.c., p. 838).
Cuidou, pois, o nosso Santo de ir cerrando as portas ao acesso dos homens da seita. A uma manobra jansenista correspondia outra vicentina. Nos estreitos limites de um artigo de jornal não nos é possível seguir passo a passo as escaramuças dessa guerra. Um exemplo basta para ilustrá-las. A Marquesa de Aumont fez à Superiora do primeiro Mosteiro de Visitandinas de Paris uma proposta magnífica. Pagaria todas as dívidas da Casa, que eram grandes, e os honorários de todos os capelães, pregadores, confessores e diretores que serviam o estabelecimento. Não eram poucos, porquanto as Visitandinas tinham a seu cargo a educação das filhas das melhores famílias da cidade. Colocava a Marquesa apenas uma condição: ela indicaria os Padres para aquelas funções. Declinou desde logo os nomes que escolhera; todos pertenciam à nova seita. A manobra, hábil pois que, como se diz em português, o peixe morre pela boca, quase surtiu efeito. Embora, prudentemente, não quisesse dar resposta definitiva antes de consultar pessoas de sua confiança, a Superiora foi recebendo adiantados os auxílios oferecidos. Felizmente, um dos seus consultores era o perspicaz M. Vincent, que a aconselhou a ficar com as dívidas, antes que permitir ao lobo penetrar no aprisco. A comunidade devolveu as esmolas recebidas, e não permitiu a aproximação dos Padres suspeitos. Se as Monjas de Port-Royal tivessem tido a mesma prudência de ouvir primeiro a São Vicente, certamente não teriam passado à história com o labéu de fautoras da heresia.
Assaltos como este foram feitos a outros mosteiros, e em geral aos postos de direção, como as cátedras da Sorbonne, os púlpitos, os confessionários e as sedes episcopais. Enquanto viveu Vicente da Paulo, porém, tiveram-no os jansenistas pela frente.
NO CONSELHO DE CONSCIÊNCIA
Na campanha contra a heresia, como na do soerguimento religioso da França, foi de grande utilidade para o Santo o posto que Ana d'Áustria, viúva de Luís XIII e Regente na minoridade de Luís XIV, lhe destinou no Conselho de Consciência, onde se discutiam os mais altos interesses da Igreja no país, e sobretudo se preparava a nomeação dos Bispos, confiada à Coroa pela concordata de 1615. Desse alto posto pôde o Superior dos Lazaristas vigiar os assaltos do inimigo, e frustrar-lhe os manejos. Continuou ai sua luta para impedir o avanço dos hereges, pois que sem eles não subsiste a heresia. Assim é que conseguiu barrar a entrada da Sorbonne a mestres favoráveis à seita, protegeu os estudantes que combatiam a esta, etc. Seu grande esforço se voltou no sentido de dotar a França de Bispos isentos de qualquer pecha de heresia, e cheios de zelo pela salvação das almas. Nem sempre, todavia, pôde impedir a nomeação de candidatos do poderoso primeiro-ministro, o Cardeal Mazarino, que de eclesiástico só tinha a púrpura, e por isso dava muito mais importância aos interesses políticos do que aos religiosos.
ABSTEVE-SE DE POLÊMICAS
Nesta campanha pessoal contra os fautores da heresia, o nosso Santo se manteve cuidadosamente à margem das polêmicas que então se travaram. Impôs mesmo aos seus Padres conduta idêntica. Não que desconhecesse o valor e a necessidade da controvérsia para esclarecer o público e vingar a verdade ostensivamente ultrajada pelo jansenismo. Dizem seus biógrafos (cfr. o.c., pp. 526-527) que a ação vicentina estava em íntima união com a dos polemistas, bem como com a do Núncio Apostólico, e que com frequência se reuniam todos para estudarem as medidas a tomar contra as novas doutrinas.
MAS NÃO FICOU NEUTRO
Assim, essa atitude de São Vicente não significa que censurasse os que preferiam as armas da polêmica: via nesta uma tática diferente da sua, mas igualmente legítima. Estava de fato o Santo muito longe de achar qualquer coisa de bom na obra jansenista, e mais ainda de qualquer compromisso com as doutrinas da seita. Se os seus deviam evitar as disputas, não era para deixarem em paz o erro. Exigia que não aceitassem nenhuma das novidades, e expusessem a doutrina da Igreja sem entrar em discussões. Mais: "queria que eles falassem quando as circunstâncias o exigiam; e que não tivessem medo de com isso criarem inimigos. Não permita Deus, escrevia, que estes débeis motivos, que enchem o inferno, impeçam os missionários de defender os interesses de Deus e de sua Igreja!" (Rohrbacher, História Universal da Igreja Católica, livro 87, § 5).
Ele mesmo deu o exemplo, nas cartas destinadas a impedir que a heresia penetrasse no seio de sua Congregação. Duas das cartas que escreveu a respeito do jansenismo são, na opinião de Rohrbacher, "um monumento histórico de seu gênio e de seu zelo, não mais só como pai dos órfãos e dos pobres, mas como Padre da Igreja. Vê-se nele o espírito, o coração e a alma da França católica; dele parte o primeiro impulso que move o Rei, a Rainha e os Bispos (contra a heresia). Por aí se percebe porque a Providência o havia colocado na corte e na presidência do Conselho de Consciência; era para que fosse o anjo tutelar do reino no tempo mais perigoso" (l.c.).
Acusado em Roma de tibieza (!) no combate ao jansenismo, pôde, pois, afirmar tranquilamente: "Nossa companhia resiste a todas as opiniões novas, e eu faço o que posso contra elas, especialmente com relação às que vão contra a autoridade do Pai comum dos cristãos, e a esse respeito apelo ao testemunho do Senhor Cardeal Grimaldi e da opinião pública. Isso posto, não há necessidade de nos defendermos" (Herrera e Pardo, o.c., p. 524).
E LUTOU ATÉ O FIM
Toda a campanha de São Vicente e dos polemistas contra as novidades jansenistas não conseguiria, por si só, extirpar totalmente a heresia da França. O Santo estava disso convencido. Como o estava, outrossim, de que só uma sentença de Roma seria capaz de pôr cobro ao avanço dos heresiarcas nos meios onde havia realmente boa intenção. Inclinado por seu zelo e perspicácia às soluções definitivas, empenhou-se pois neste sentido. Reuniu em seu Priorado de Saint-Lazare os mais conspícuos defensores da ortodoxia, e com eles concertou os meios de obter uma intervenção do Papa. Era mister conseguir, o apoio de uma grande maioria do Episcopado para que se produzisse o efeito desejado. Foi a paciência e pertinácia do humilde Padre Vicente de Paulo que encorajou os tíbios, esclareceu os míopes, fez os vacilantes se decidirem. Trabalho penoso, que chegou a bom termo: 85 Prelados assinaram a petição a Roma.
Mas, ainda não era o fim da batalha. Remetida a causa ao tribunal da Santa Sé, para junto desta se transferiram os manejos da seita. Nada menos do que quatro doutores jansenistas se fixaram na Cidade Eterna para tentarem impedir a condenação iminente. Muitos dos ortodoxos acreditavam que lhes bastava a justiça de sua causa. Não assim São Vicente e seus amigos. Pois sabiam que, embora a Igreja seja infalível, uma negligência por parte dos bons pode ter por consequência que um pronunciamento oportuno da Autoridade se adie ou mesmo não se faça. Por isso, também os campeões da ortodoxia enviaram três de seus doutores à capital da Cristandade, com o fim de neutralizar as manobras dos homens da seita. Vicente acompanhou-os com suas orações e penitencias, com suas esmolas, com sua solicitude pela saúde e bem-estar dos enviados.
AINDA ÀS VESPERAS DA MORTE
Condenado o jansenismo, tornou São Vicente à liça, já octogenário, desta feita contra o laxismo. Também então teve a alegria de ver coroados seus esforços. Em 21 de agosto de 1659 um decreto do Santo Oficio condenava a "Apologia dos casuístas", obra tanto mais nefasta à Igreja quanto facilitava a propaganda jansenista, que se apresentava como reação contra seus erros.
IV - PIEDOSA MORTE
O Santo morreu aos 85 anos de idade, há exatamente três séculos: em 27 de setembro de 1660. No último lustro de sua vida sofria de uma febre periódica e de outras doenças que lhe esgotavam as forças. "Foi precisamente nesta época de sofrimentos que fez pela Igreja e pelos pobres a melhor parte das grandes obras que realizou. Um de seus últimos atos foi enviar doze mil libras aos maronitas do Monte Líbano, para facultar-lhes meio de obter do Grão Turco um governador mais humano. Quanto mais próximo sentia o seu último momento, tanto mais redobrava de zelo na formação de seus filhos espirituais, os Padres da Missão e as Filhas da Caridade. O pensamento da morte ocupava-o continuamente: todos os dias, após a celebração da Missa, recitava as orações da Igreja pelos agonizantes, com as encomendações da alma e os outros atos pelos quais se preparam os fiéis a comparecerem diante de Deus (Rohrbacher, o.c., 1. 87, § 7).
PLENITUDE DA CARIDADE
Em largos traços, essa foi a trajetória da fecunda vida de São Vicente de Paulo. Podemos resumi-la como uma atividade inteligente e organizada a serviço de um ardente amor a Jesus Cristo; uma atividade traduzida nas obras para alivio das misérias do corpo e da alma, nas lutas em defesa da ortodoxia, no soerguimento do Clero através dos seminários, dos exercícios espirituais e das conferencias eclesiásticas, bem como no empenho pela provisão condigna dos Bispados da França.
Os Santos têm cada um sua feição própria, e manifestam assim a inesgotável imitabilidade das perfeições divinas. De São Vicente se diz que foi o apostolo da caridade, e por essa expressão muitos entendem apenas seu amor e desvelo pelos necessitados. Com isso diminuem o papel que o Santo providencialmente desempenhou na Igreja. Vicente de Paulo foi o apostolo da caridade no sentido mais pleno da palavra, uma vez que todas as suas obras se radicavam no acendrado amor a Nosso Senhor Jesus Cristo. Esse amor o fez belicoso contra os perseguidores dos fiéis, pacifico entre os cristãos, inimigo das heresias, insofrido com a decadência do Clero, da mesma maneira que compassivo e pródigo no socorro aos desventurados escravos dos mouros, aos infelizes condenados às galeras, e sobretudo aos pobres e enfermos. Diríamos que ele exerceu a plenitude da caridade.