Calice Domini Biberunt.
"SEITA MAIS FATAL QUE OS VENENOS DE CIRCE"
Fernando Furquim de Almeida
No século V, em que viveu São Jerônimo, os desertos do Oriente se povoaram de solitários à procura de uma vida mais santa e empenhados em lutas tremendas contra si mesmos e contra o demônio. A oração contínua, os jejuns e as mortificações de toda ordem eram as armas com que eles conquistavam as vitórias, consignadas em páginas gloriosas da história do Cristianismo. Essa foi também a época dos grandes Padres da Igreja, Santos que lutaram heroicamente pela ortodoxia contra os erros em que foi fértil o Oriente.
A SOCIEDADE PAGÃ DAVA LUGAR À SOCIEDADE CRISTÃ
A Providência suscitou então, além de nosso Santo, Santo Agostinho, Santo Ambrósio, São Basílio, São Paulino de Nola, São João Crisóstomo e tantos outros que, tendo sido praticamente contemporâneos, prestaram inestimáveis serviços à causa da pureza da Fé.
Ao mesmo tempo, a graça promoveu inúmeras conversões em todas as camadas sociais do mundo civilizado. Em Roma, as famílias patrícias viam seus filhos abandonarem posição, fortuna e prazeres próprios de uma época de decadência, para se entregarem às austeridades da vida cenobítica ou aos sacrifícios da luta incessante contra os inimigos externos e internos da Igreja. Entre os bárbaros, por sua vez, era com frequência que temíveis guerreiros se despediam de suas tropas e se confiavam completamente à direção de um monge para reformarem a sua vida e conquistarem o Céu.
Assistia-se a uma verdadeira renovação da sociedade. Os erros e preconceitos do paganismo iam sendo postos de lado, dando lugar a uma sociedade cristã. Montalembert, no primeiro volume de sua "História dos Monges do Ocidente", mostra como essa renovação era recebida pelos pagãos: ao lado das manifestações de boa vontade, de entusiasmo mesmo, para com esses homens que renunciavam a tudo para seguirem a Nosso Senhor Jesus Cristo, o célebre católico liberal do século passado não deixa de salientar a oposição tenaz que o mundo gentílico fazia às conquistas do cristianismo.
UM ERRO DE PERSPECTIVA
Quando estudamos essa época, somos frequentemente levados a certos erros de perspectiva. Como a Igreja derrotou o Olimpo, logo supomos que foi fácil a vitória, e procuramos apenas os lados bons da sociedade antiga, que tornaram possível esse triunfo. Esquecemo-nos de que ele custou batalhas ingentes e sacrifícios sem conta. Montalembert mostra exemplos frisantes do ódio com que numerosos adeptos do paganismo agonizante se erguiam contra a Igreja. De sua obra é que tiramos as citações que vamos apresentar aos nossos leitores.
Esse ódio se manifestava em todas as camadas sociais. Não eram raras as agressões da populaça contra os monges que, por qualquer motivo, eram obrigados a entrarem nas cidades. Outras vezes, famílias assaltavam os mosteiros para retirarem de lá seus filhos que aspiravam à vida religiosa. Frequentemente, as autoridades não se conformavam com a vida santa que os cenobitas levavam: "É intolerável — diziam — ver homens livres e nobres, sãos e dispostos, senhores de todas as alegrias deste mundo, condenarem-se a uma existência tão dura e tão odiosa à natureza". Daí mosteiros arrasados, monges perseguidos, proteção às heresias e todo o cortejo de calamidades que o ódio sabe inventar quando dispõe do poder do Estado.
É interessante observar como os filósofos, os literatos, enfim, os intelectuais da época, receberam esse florescimento do Cristianismo. Perceberam, desde logo, que a cultura e os costumes corrompidos de que se orgulhavam estavam ameaçados mortalmente pela doutrina e pelo exemplo dos cenobitas. Daí detestarem a estes.
HOMENS NEGROS QUE TRANSFORMAM AS ALMAS
Assim, o retórico Libanius os perseguia com sarcasmos; e como a maioria deles se vestia de preto, acusava-os de fazerem consistir a virtude em se cobrirem de luto, e acreditava injuriá-los chamando-os de homens negros.
O sofista Eunapius lamentava que fosse suficiente o aparecimento em público de homens com veste negra para exercerem sobre alguns, impunemente, uma autoridade tirânica.
De todas, a mais curiosa é a reação do poeta Rutilius Numatianus. Indo a Roma em 416, registrou por escrito as emoções que sentiu na viagem. Nesse trabalho não perde vaza para comentar, em tom superior e enfatuado, os homens que, na realidade, constituíam a única esperança de melhores tempos no meio da decadência geral em que se extinguia o império.
"Eis Gorgona, diz ele, que se eleva diante de nós; essa ilha está repleta de infelizes, inimigos das luzes; tiraram do grego o nome de monges porque desejam viver sem testemunhas. O temor dos males da fortuna fá-los receiar os benefícios dela. Tornam-se antecipadamente infelizes, levados pelo medo de o virem a ser um dia. Já se viu loucura mais perigosa?"
E, comentando a conversão de um amigo, assim se exprime: "Vejo Gorgona que se eleva, de entre as vagas, diante das praias de Pisa; detesto esses escolhos, teatro de um recente naufrágio. La se perdeu um dos meus concidadãos, que desceu vivo ao túmulo. Era outrora dos nossos; era jovem, de família ilustre, rico, bem casado. Mas, levado pelas Furias, fugiu dos homens e dos deuses, e agora, crédulo exilado, se corrompe num retiro imundo. Ó infeliz! Acredita alimentar-se de dons celestiais no meio de sua sujeira; é mais cruel consigo do que o poderiam ser os deuses que ofende. Não é esta seita mais fatal do que os venenos de Circe (que transformaram em porcos os companheiros de Ulisses)? Circe não transformava senão os corpos, e agora as almas é que são transformadas".
NOVA ET VETERA
Função Espiritual da Arquitetura
Celso da Costa Carvalho Vidigal
Em via de regra, toda obra de arte exerce uma influência espiritual sobre as pessoas, provocando nelas determinados estados de alma. Contudo, a arquitetura se distingue, nesse particular, das demais artes.
Assim, a pintura, a escultura, a música atuam sobre o espírito através de seus respectivos valores estéticos. O mesmo acontece com a arquitetura; mas esta atua por outra forma também, ou seja, pelas condições materiais de vida criadas por suas obras. Realmente, essas condições exercem uma influência muito grande na alma humana. Exemplifiquemos.
Há uma tendência geral, modernamente, a projetar as diversas peças de um prédio com dimensões bastante exíguas. Aparentemente isso representa uma economia sem consequências espirituais. Na realidade não é assim.
Quase toda gente sente uma como que necessidade psicológica de ter espaço sobrando à sua disposição. Um quarto em que não se pode caminhar à vontade; uma sala atravancada de moveis que só não ocupam a indispensável passagem que lhes dá acesso; uma casa em que é preciso permanecer sempre no mesmo cômodo porque não há outro em que se possa estar: eis alguns exemplos de condições materiais de vida criadas pela arquitetura, que, por cercearem a liberdade de movimentos das pessoas, são capazes de lhes causar prejuízos ou dificuldades mentais, que podem, por sua vez, ter repercussão funesta na vida espiritual.
O MUNDO SABE O QUE QUER
Para não ir mais longe, basta considerar que numa residência assim — tomamos um caso extremo para tornar evidente o princípio — cada qual teria que entregar-se ao convívio permanente e obrigatório com todos os outros moradores, sem a possibilidade de ali encontrar um ambiente isolado, distinto do comum, afastado do natural bulício da vida familiar, que lhe facilitasse a mais nobre das atividades humanas: a reflexão, a meditação.
O mundo de hoje sabe o que quer, e quase sempre o que ele quer não é bom. É por isso que as casas modernas possuem geralmente um único ambiente social, destinado a todos os membros da família e às visitas e hóspedes, a homens e mulheres, a jovens e velhos, às crianças e às suas pajens, obrigando todos a participarem continuamente da mesma conversa — quando o vídeo da televisão, que oferece entretenimento idêntico para todos, permite que haja conversas. Isso favorece a obra igualitária, da Revolução, enquanto contribui para diminuir as diferenças psicológicas legítimas e necessárias entre as idades e os sexos.
SACRIFICANDO O FUNCIONAL À PLÁSTICA
Um outro vicio frequente nas construções hodiernas é a predominância da plástica sobre as verdadeiras conveniências funcionais. Essa inversão de valores corresponde a uma noção falsa da finalidade da arquitetura, que é não só a arte de criar locais para se morar, mas sobretudo a de criar locais para se morar bem. A arquitetura, como em geral as obras de cultura humana concebidas catolicamente, deve ser sempre orientada no sentido de tornar mais fácil a vida dos homens, enquanto isso facilita o progresso na santificação. Impor a um edifício uma determinada plástica sem levar em conta a destinação precípua dele é condená-lo, liminarmente, à frustração enquanto obra de arte. E nenhum espírito sério pode se conformar com ver a consecução da finalidade de um prédio dificultada e até impedida parcialmente por um simples capricho do artista que o projetou. Esse capricho gera, naturalmente, nas pessoas pouco afeitas à análise das coisas — entre as quais se inclui a maioria dos homens hodiernos, e muitos dos que se julgam intelectualmente emancipados — uma mentalidade disposta a aceitar soluções paradoxais, não só na arquitetura como em outras atividades humanas. Enfraquece mesmo nessas pessoas, por um fenômeno de contagio, a própria noção do princípio de contradição, diante do qual o sim é sim e o não é não.
UMA DOUTRINA POR ELABORAR
Exemplo típico de plástica inadequada ao fim encontramos em uma passagem sob balanço, em um dos pavilhões construídos em São Paulo para as comemorações do 4° centenário da fundação da cidade. De espaço em espaço, uma inútil peça inclinada cerca de trinta graus em relação ao solo dificulta a circulação naquele passadiço, obrigando as pessoas que o percorrem a se espremerem, ao passarem junto a ela, se não quiserem sair de sob o balanço nos dias de chuva.
Se um passadiço é para ser transitado, e se a coberta é para proteger contra as intempéries, a presença ilógica das peças inclinadas que obstam uma e outra coisa choca o bom senso. Multiplique-se por mil este exemplo, e se verá o caráter de «non sense» da existência cotidiana em muitas cidades ultramodernas.
Outras deficiências arquitetônicas podem contribuir, em maior ou menor escala, para habituar os homens à aceitação fácil das soluções extravagantes e paradoxais. Por exemplo, a construção de igrejas, lugares que deveriam sugerir naturalmente o recolhimento, com grandes janelas que põem o fiel em contacto mais com a natureza exterior do que com o seu próprio íntimo. O mesmo se pode dizer de escolas em que o aluno é quase convidado a se distrair com a paisagem, graças aos grandes vãos que lhe descortinam um amplo horizonte, causando sérios transtornos ao professor que procura conservá-lo atento à aula.
Em matéria de arquitetura acreditamos que há ainda todo um conjunto de princípios a lembrar, a explicitar, e a apresentar em seu todo. Referimo-nos a uma doutrina sadia e católica, porque já há muitas doutrinas falsas largamente difundidas. Nunca será demais insistir nessa questão, pois a arquitetura não é senão a arte de edificar o palco da vida. E é nesse palco material que normalmente as almas se salvam ou se perdem.
Revolução e Contra-Revolução em 30 dias
Plinio Corrêa de Oliveira
Para certo gênero de pessoas, a história registra violências de duas categorias bem diversas. Umas constituem crimes abomináveis, cujos autores devem ser apontados à execração dos séculos e das gerações. Outras foram simples demasias, praticadas por homens de uma orientação geral tão boa, que elas dão mais motivo para lamentação do que para censura. Na primeira categoria ficam, entre outros, os excessos da Inquisição espanhola: as pessoas de que falamos nada conseguem imaginar de mais monstruoso, de mais requintadamente perverso. Na segunda categoria cabem, por exemplo, as penas impostas por Pombal aos Jesuítas ou à nobre família dos Távoras: para as mesmas pessoas foi tão grande o ministro e tão extraordinária a sua obra, que as atrocidades sofridas pelo Padre Malagrida, pelo Duque de Aveiro ou pela Marquesa de Távora como que desaparecem.
Não é o caso, aqui, de analisar se a Inquisição espanhola merece essas críticas, ou Pombal esses louvores. Importa simplesmente notar a dualidade de pesos e de medidas que está na base dessa classificação. Os procedimentos enérgicos ou violentos, se imputados a uns causam indignação, e se imputados a outros encontram uma aceitação resignada e fácil. Não há lágrimas que bastem para chorar as vítimas em certos casos. Em outros casos, as vítimas de ações não menos cruentas não alcançam uma lágrima sequer. Assim muita gente – para dar outro exemplo – fria diante do martírio de Dom Vital, se revolta quando pensa no de Savonarola. Por que?
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Para responder a esta pergunta, seria preciso um pequeno trabalho de investigação. Se em uma coluna se colocassem os nomes de todas as vítimas julgadas dignas de pranto, e em outra as que não o são; e se em seguida se indagasse o que há de comum entre as de cada coluna, a resposta se tornaria claríssima: dignos de pranto são os revolucionários; de frieza os que, a um título ou outro, em certo momento histórico criaram obstáculos à Revolução. O Padre Malagrida, a Casa de Távora, representavam a Igreja e a nobreza, baluartes naturais da sociedade cristã e orgânica, que a Revolução – encarnada no século XVIII no absolutismo estatista e anti-religioso propugnado por Pombal – queria destruir. Dom Vital era a personificação da verdadeira Contra-Revolução, da obediência ao Papa, da fidelidade à Igreja, da luta contra o sectarismo revolucionário. Frieza, pois, para eles. Mas as vítimas da Inquisição espanhola foram, em sua maioria, militantes da Revolução. Lágrimas, pois, para elas. Savonarola representava a demagogia e a revolta: cumpre lamentar ruidosamente sua morte.
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Ora, quando se examina o princípio em que se baseiam as pessoas assim afeiçoadas ao uso de dois pesos e duas medidas, sobe de ponto a estranheza que sua tomada de posição causa. Tal princípio, de um humanitarismo levado ao seu último extremo, afirma que toda efusão de sangue, todo ato pelo qual se tira a vida a alguém é sempre e necessariamente censurável. De sorte que até a pena de morte aplicada pelo Estado é contrária à moral.
Em geral, esse princípio se enuncia em termos inteiramente laicos. Mas por vezes ele toma um colorido cristão, como se fosse uma consequência do 5º Mandamento e uma aplicação dos ensinamentos de mansidão contidos no Novo Testamento.
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Na realidade, cumpre discernir entre esse humanitarismo revolucionário, e a doutrina da Igreja. Ninguém mais do que ela condena a violência. É isto tão evidente, que não exige provas. Porém ela não chega a condenar a pena de morte, desde que decretada pelo poder competente, relativamente a delitos de gravidade proporcionada, e devidamente provada a culpa do réu... Nem de longe, é claro, a Igreja toma a contrapartida dessa posição revolucionária, aprovando as violências feitas contra seus adversários, e qualificando como crime só as de que Ela tenha sido vítima.
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Dado de passagem este esclarecimento, voltemos ao humanitarismo laico e radical, e confrontemos o princípio em que ele se baseia, com a aplicação que dele fazem seus mais típicos propugnadores.
Se toda efusão de sangue, todo ato pelo qual se tira a vida a alguém é um crime, porque então só chorar quando as vítimas estão de um lado?
Há nisto um abismo de contradição, que é característico do mau espírito e do pecado em geral “delicta quis intelligit?” (Sl. 18,13).
Ora essa contradição, esse uso de dois pesos e duas medidas, é muito palpável nas reações de certa opinião pública em face dos acontecimentos em que atualmente se corporifica a Revolução.
Mais do que nunca talvez, o humanitarismo radical e laico se mostra incondicional e agressivo hoje em dia. O caso Chessman, ainda recente, foi disto um exemplo. Tratava-se em síntese de um réu comprovadamente culpado de delitos gravíssimos, que teve a mais ampla liberdade para se defender.
Em instâncias sucessivas, ao longo de um processo que lhe foi dado procrastinar e arrastar enormemente, Chessman veio sendo condenado à morte e, por fim, esgotados todos os recursos, só lhe restava, para fugir ao último suplício, uma medida de clemência do governador do Estado da Califórnia. Deveria tal medida ser concedida? Opiniões respeitáveis se pronunciaram diversamente a este propósito. O “Osservatore Romano”, por exemplo, se mostrou favorável à comutação da pena. De qualquer forma, tomada pelo poder competente a decisão de não indultar o condenado, a única atitude que cabia a todo mundo era acolher este fato com respeito e compreensão. Não foi entretanto o que aconteceu nos arraiais mais extremados do humanitarismo laicista. Os pedidos de clemência se transformaram em protestos, e os protestos em universal algazarra antinorte-americana.
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A razão disto é clara. O humanitarismo naturalista e revolucionário, colocado entre os Estado Unidos e a Rússia soviética, não pôde deixar de optar por esta, que constitui a etapa mais avançada da Revolução. Não queria perder essa ótima ocasião de apontar os Estados Unidos ao ódio das nações. De outro lado, por definição é ele contra a pena de morte: como então não protestar?
Tudo isto redundou num clima de neurose que cercou a execução de Chessman e se prolongou por um certo tempo depois: um noticiário jornalístico e radiofônico imenso, com pormenores abundantes, excitou uma curiosidade doentia no mundo inteiro. E, de acréscimo, veio com isto a divulgação escandalosa, para os quatro cantos da terra, da atitude pavorosamente ímpia tomada pelo condenado até o último momento.
Se uma vítima inocente, ou um herói digno de
(continua)