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O Beato Nuno Alvarez Pereira, - O artigo que hoje publicamos tem por autor um jovem descendente do santo condestável, o Príncipe D. Luis, primogênito de S. A. I. R. o Príncipe D. Pedro Henrique de Orleans e Bragança, Chefe da Casa Imperial do Brasil. Os brasileiros, sem distinção de cor política, reconhecem na descendência de D. Pedro II uma das expressões mais valiosas da tradição nacional. A este título, nossos leitores acolherão com interesse a colaboração de S. A. I. R. o Príncipe D. Luis.

“FUNDADOR DA CASA DE BRAGANÇA, CAPITÃO EXÍMIO, MONGE BEM-AVENTURADO”

D. Luís de Orléans e Bragança

A 24 de junho de 1360 nascia em Cernache do Bonjardim, na província portuguesa da Beira Baixa, um menino que ia se tornar um dos mais belos exemplos de cavaleiro cristão.

Filho de uma das principais famílias do reino, foi educado no mais puro ideal da Cavalaria, no qual o serviço de Deus e da Igreja se amalgamava com a defesa do Rei e da pátria.

Criança ainda, foi para a corte, tendo sido feito escudeiro da Rainha D. Leonor Teles, que o armou cavaleiro aos treze anos.

D. Nuno sempre cultivou o anseio de permanecer virgem, mas, obedecendo ao desejo de seu pai e do Rei D. Fernando, casou-se aos dezesseis anos com a nobre dama D. Leonor de Alvim. Desta união nasceu uma filha, D. Beatriz, que, casando-se com D. Afonso, filho de D. João I e primeiro Duque de Bragança, veio a constituir o tronco de minha Família.

Desde os 23 anos até a morte da esposa, cinco anos depois, o jovem senhor viveu em perfeita continência no matrimonio.

D. Nuno — escreve o cronista Fernão Lopes — desde menino cuidava de coisas virtuosas, ocupando nelas mais tempo do que a sua idade requeria. Depois de casado, mantinha sua capela muito honrada, com belos ornamentos e bons clérigos e cantores. Todos os dias assistia duas missas, e três aos sábados e dias de preceito, sendo a terceira, nos domingos e festas, solene e com pregação. Se não fosse possível assistir essa terceira missa pela manhã, mandava celebrá-la à noite. Confessava-se frequentemente e comungava quatro vezes ao ano, nos dias de Natal, Páscoa, Pentecostes e Assunção de Nossa Senhora, o que era muito para os costumes da época. Rezava diariamente as suas Horas, não deixando de se levantar à meia noite para as Matinas, como se fosse religioso. Jejuava, enquanto lhe permitiu a idade, três vezes por semana, mesmo nos dias de batalha, como em Atoleiros e Aljubarrota. Provou a sua devoção à Virgem Santíssima construindo as Igrejas de Santa Maria e São Jorge em Aljubarrota, Santa Maria da Lagoa em Monsarraz, e tantas outras. Fundou e doou à Ordem carmelitana o Mosteiro do Carmo em Lisboa, onde entrou poucos anos depois como Frei Nuno de Santa Maria. Sua devoção mariana levou-o a fazer muitas peregrinações, inclusive a Santa Maria de Azinhoto, onde ajudou pessoalmente a limpar o santuário, profanado pelos castelhanos.

O CAVALEIRO DEFENSOR DA IGREJA E DA PÁTRIA

Com a morte de D. Fernando I em 1383, ficou a governar a Rainha-viúva, Leonor Teles, até a maioridade de sua filha, D. Beatriz. Sendo esta casada com o Infante de Castela, com sua ascensão ao trono o país iria ficar sob o domínio castelhano, perspectiva tanto mais detestável para os bons portugueses nessa época em que estes — estava-se em pleno cisma do Ocidente — tinham seus vizinhos em conta de cismáticos e excomungados, pois Castela pertencia à obediência de Avignon enquanto Portugal permanecia fiel ao Papa de Roma.

Também podiam aspirar ao trono os dois irmãos consanguíneos de D. Fernando (filhos de Inês de Castro), os Infantes D. João e D. Diniz. Mas estes se tinham expatriado e se encontravam em poder do Rei de Castela.

O único que estava livre destes impedimentos era outro irmão consanguíneo de D. Fernando I, o Mestre de Aviz, D. João. Nuno imediatamente se junta ao partido do Mestre e lhe dá novo alento. Não descansa na luta nem transige. Seus irmãos Pedro Álvares e Diogo Álvares se declaram a favor de D. Beatriz; o Bem-aventurado corta imediatamente as relações com eles, ao mesmo tempo que consegue o apoio de seu tio Rui Pereira, do Conde de Barcelos, irmão da própria Rainha Leonor Teles, de Álvaro Paes, antigo chanceler-mor dos Reis D. Pedro e D. Fernando. O Rei de Castela manda oferecer-lhe o condado de Viana e varias outras terras, para atraí-lo a seu serviço, mas D. Nuno não se deixa impressionar nem pelas ofertas nem pelos perigos, respondendo «que Deus não quisesse que por dádivas e largas promessas ele fosse contra a terra que o criara, mas que antes despenderia seus dias e espargiria seu sangue por amparo dela».

Com a eleição do Mestre de Aviz, pelas Cortes reunidas no Mosteiro de São Domingos, para regedor e defensor do reino, dá-se a ruptura definitiva com Castela, cujas hostes invadem Portugal para garantir o trono para D. Beatriz.

D. João nomeia Nuno Álvares fronteiro entre o Tejo e o Guardiana, e com uma tropa reduzidíssima o servo de Deus marcha os castelhanos. Na altura de Atoleiros dá-se o encontro. Amedrontados, seus companheiros procuram dissuadi-lo, apresentando a enorme desproporção de forças, mas o nobre capitão responde que tivessem confiança pois «a vitória está em Deus e não na força dos homens». Dispõe sua tropa em quadrado e espera o combate. Este é duríssimo, mas saem afinal vitoriosos os portugueses.

D. Nuno não descansa sobre os louros e aproveita da vitória tomando Arronches e Alegrete; nesse meio tempo vai a pé em romaria a Santa Maria de Assumar e ajuda a restaurar o templo profanado pelos castelhanos. Não desistem os invasores e cercam Lisboa por mar e por terra, mas são dizimados pela peste e têm que se retirar. Vendo os lisboetas a ação de Deus nesse fato, vão numa procissão festiva, com o Bispo e o Mestre à frente, ao Convento da Santíssima Trindade para renderem graças.

Seguem-se as Cortes de Coimbra, que aclamam o Mestre de Aviz, Rei de Portugal, sob o nome de D. João I.

Elevado pelo novo Soberano à dignidade de condestável, ou chefe dos exércitos, o Beato reorganizou as suas tropas, moralizando-as também, não permitindo a presença de mulheres nos acampamentos, o que quase provocou uma rebelião.

Partiu logo para submeter o Minho, e fê-lo num ritmo espantoso, conquistando o castelo de Neiva, Viana, Guimarães, Braga e Pontes de Lima.

Em Neiva dá mostra de mais uma das virtudes que tinha, obedecendo à regra da Cavalaria que manda defender os fracos, principalmente as mulheres, os órfãos e os velhos. Na luta pela conquista do castelo, fora morto o seu alcaide, que era pelos castelhanos. Rendendo-se a praça, a viúva suplicou proteção para sua virtude, e D. Nuno mandou levá-la honradamente ao pai, com boa escolta para protegê-la.

SETE MIL HOMENS CONTRA TRINTA MIL

Não desiste o Rei de Castela da conquista de Portugal, e invade-o novamente, procurando cercar Lisboa. Acorre o condestável, junta suas forças com as de D. João I, e marcham ambos até Aljubarrota, onde esperam os castelhanos. Nuno Álvares manda de novo formar suas tropas em quadrado, e quando nasce o dia 14 de agosto tudo está pronto. O sol refulge nas laminas e nos elmos. Nuno reza com fervor. O Arcebispo de Braga, com as vestes episcopais sobre a cota de armas, e a imagem da Virgem sobre o elmo, percorre as fileiras dando a absolvição e exortando todos a combaterem contra os sequazes do antipapa Clemente VII

A tarde atacam os espanhóis; são trinta mil contra os sete mil lusos. O embate se dá terrível, rompe-se no começo o quadrado português, mas logo se fecha de novo sobre a cavalaria castelhana, que é acometida por D. João I e seus cavaleiros. O Arcebispo de Braga é ferido. D. Nuno, ileso, está em toda parte onde o perigo é maior. Afinal vê-se oscilar o pendão de Castela e os portugueses se põem a bradar: já fogem, já fogem. E, como diz o cronista da batalha: «Os castelãos por não fazer deles mentirosos, começaram cada vez de fugir mais».

É a vitória. O Rei e o condestável, que estão em jejum por ser a véspera de Nossa Senhora de Agosto — como então se chamava a festa da Assunção — agradecem a Deus a derrota definitiva do invasor.

Em outubro D. Nuno invade, por sua vez, terras de Castela, e recebe e aceita um desafio de vários chefes castelhanos. Encontra-os perto de Valverde, onde, como de costume, forma suas forças em quadrado. Desta vez não espera o ataque, mas avança contra os adversários: As hostes destes são tão numerosas, que cercam o quadrado português e este estaca. Ferido no pé por uma flecha, o condestável continua a lutar nos lugares mais perigosos. A batalha parece indecisa por um momento, e alguns cavaleiros procuram, preocupados, o santo capitão. Encontram-no a rezar profundamente. Querem tirá-lo dali, e ele responde: «Ainda não é tempo, aguardai um pouco e terminarei de rezar». E continua imerso na oração, para depois levantar-se e desbaratar os inimigos.

Com esta vitória estava praticamente terminada a luta pela independência de Portugal. A campanha continuou por algum tempo com combates de menor importância.

EXIGIA QUE OS SOLDADOS FOSSEM CASTOS

A ação do condestável durante a guerra foi um modelo de cumprimento dos deveres da Cavalaria. Foi casto e exigiu castidade de seus soldados, segundo o estado de cada um. Restaurou as igrejas profanadas pelos cismáticos, protegeu-as contra suas próprias tropas, impedindo toda e qualquer profanação. Defendeu também os habitantes dos lugares por onde passava, proibindo pilhagens e castigando com grande rigor os transgressores.

Na paz vemos D. Nuno administrar suas terras com justiça e caridade. A caridade é também uma das grandes virtudes da Cavalaria, e ele a praticava de maneira eximia. Distribuía em esmolas o dízimo de todas as suas rendas. Vestia cada ano os pobres de uma das comarcas de seus domínios. Não esbanjava o dinheiro, mas dava-o da melhor maneira possível, provendo a que nunca faltasse pão para seus vassalos. Nos anos em que o trigo era abundante, dava dinheiro em vez de pão. Distribuía o trigo quando as safras eram ruins, de tal modo que frequentemente não lhe sobrava nada para si, tendo que comprar para sua casa pão que era caro. Socorria a todos, sem considerar se eram amigos ou inimigos: bastava-lhe que fossem pobres. Assim, num ano em que a colheita foi reduzidíssima em Castela, alimentou durante quatro meses quatrocentos castelhanos, entre homens, mulheres e crianças, gastando 6.400 alqueires de trigo que tirou de seu próprio celeiro.

Esta caridade mostrava um generoso desprendimento dos bens da terra, que culminou na renuncia total, levando-o ao claustro.

FREI NUNO DE SANTA MARIA

Nuno coroou sua vida renunciando a todas as honras e riquezas que ganhara.

Este servo de Deus, vendo que cumprira a sua missão para com a pátria e o Rei, resolveu entrar para o Carmo de Lisboa, que — como vimos — construíra e doara à Ordem carmelitana.

Quis ser simples donato ou meio-irmão, sob o nome de Frei Nuno de Santa Maria. Distribuiu todos os seus bens e terras, de sorte que nada lhe restou além do hábito com que se apresentou ao mosteiro. Foi recebido a 15 de agosto de 1423.

Frei Nuno resolvera viver de esmolas, não consentir que o chamassem de condestável, e sair de Portugal para ir morrer onde ninguém o conhecesse. Mas o Infante D. Duarte não o permitiu, dizendo-lhe que se ficasse a servir a Deus em sua terra, que guardasse o seu título de condestável e que de maneira alguma pedisse esmolas nas ruas. O santo Carmelita obedeceu, e o Rei e o Príncipe estabeleceram uma pensão anual para o sustento de Frei Nuno de Santa Maria e seus companheiros. Como esta renda fosse grande, distribuía ele em esmolas o que lhe sobrava.

Frei Nuno saiu uma vez do claustro para retomar as armas, a serviço de Deus. Foi em 1425. Revestindo a armadura sob o hábito, chegou a embarcar numa das naus que se aprestavam para ir defender Ceuta, trampolim das invasões dos infiéis na península ibérica, havia pouco transformada por D. João I em cabeça de ponte dos portugueses para a sua obra de propagação da Fé no Oriente.

A expedição não se realizou, e o ancião voltou para o convento, onde passou o resto da vida observando as regras e servindo a Deus pela oração, pela penitência e pelas obras de misericórdia. Morreu em 1° de abril de 1431, entregando ao Senhor a sua nobre alma de Cavaleiro e Monge.

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A vida de D. Nuno é a realização do que se chamava na Idade Média o serviço de Deus. Pois nos séculos de fé o serviço de Deus se fazia tanto sob a estamenha do Religioso quanto revestido da armadura e empunhando a espada.

Nuno nunca procurou para si riqueza, gloria ou honrarias. Apenas serviu a Igreja combatendo os cismáticos, defendeu sua pátria contra a ameaça da dominação castelhana, e lutou com absoluta lealdade pelo seu Rei, vendo nele o representante de Deus para proteger e governar a nação. E tudo lhe foi dado por acréscimo. Ganhou as maiores honras e a maior fortuna, o soberano o cumulou de favores. Chegou a possuir quase a metade das terras de Portugal. D. João I quis que seu próprio filho se casasse com a filha do condestável; deste casal descendem a Família Imperial do Brasil e diversas Casas Reais da Europa.

Mas, vendo a sua missão terminada, Portugal livre de seus inimigos e seu Rei firme sobre o trono, o servo de Deus abandona tudo e vai passar o resto de seus dias no claustro e morrer como o humilde Frei Nuno de Santa Maria, meio-irmão a serviço dos Monges que lhe deviam tudo o que possuíam.

O corpo foi sepultado no presbitério da Igreja de Santa Maria do Carmo, em Lisboa, com a seguinte inscrição em latim, gravada na laje: «Aqui repousa o Condestável Nuno, fundador da Casa de Bragança, capitão exímio, depois Monge bem-aventurado. Durante toda a sua vida desejou tanto o reino do Céu, que mereceu depois da morte viver eternamente com os Santos, pois, após numerosas vitórias, desprezou as pompas e, fazendo-se humilde, de príncipe que era, fundou, ornou e dotou este templo».