Reforma Agrária – Questão de Consciência
(continuação)
adoentado” (ibid.). Considera S. Sa. que elas comprometem “o que temos de mais sério, de mais santo”, etc. (ibid.). Confessa ele próprio que seus artigos contêm um “áspero testemunho” (3.º art. cit.). Ao ler a obra, acrescenta, seu “primeiro impulso foi de sair pelas ruas, como no dia da invasão da Hungria, com cartazes desenhados às pressas” (ibid.). Assim, a ocupação da terra de Santo Estevão pelas hordas do comunismo ateu, que constituiu um dos maiores crimes do século XX e talvez de toda a História, não irritou mais o Sr. Corção do que a publicação de um livro que - discorde dele, embora, S. Sa. - faz inteiramente jus a seu respeito.
Estas amostras do caráter apaixonado e agressivo do ataque bem revelam o estado temperamental em que foram escritos esses artigos.
Tais os impulsos imediatos que o conhecido jornalista teve, de sair pelas ruas gritando, que nem sequer lhe sobraram calma e tempo para ler a obra. Folheou-a simplesmente. Este é o fato espantoso que a análise dos três artigos põe em evidência.
Há no livro matéria para excitar tanta cólera? Se o Sr. Gustavo Corção o tivesse lido, execrá-lo-ia assim? O que diz esse livro?
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Em substancia, “Reforma Agrária - Questão de Consciência” poderia resumir-se em algumas laudas.
Seus autores a escreveram tendo diante de si uma dupla realidade. De um lado, a carestia dos gêneros agrícolas, as condições de vida muitas vezes subumanas dos trabalhadores do campo, a desproporção entre a produção agropecuária e a produção industrial do País. De outro lado, a tramitação no Legislativo Federal de vários projetos propondo a reforma de nossa estrutura rural, para remediar esta situação. Concomitantemente, caminhava na Assembleia Legislativa paulista um projeto governamental de revisão agrária, mais radical do que a lei finalmente promulgada. Pelo Nordeste, estimulado pelas Ligas Camponesas do deputado estadual de Pernambuco, Sr. Francisco Julião, se havia formado um clima de assalto à propriedade privada. E esse clima vinha ameaçando provocar fatos análogos em outros Estados.
A vista disto, os autores, alarmados com o perigo que, pela concomitância de fatores tão diversos, a civilização cristã vinha correndo no Brasil, resolveram conjugar seus esforços para, dentro da medida de seus respectivos campos de estudo, auxiliar a opinião pública a ver claro no problema.
O livro que daí resultou afirma que muito há por melhorar e corrigir, e com urgência, nas atuais condições da vida rural brasileira. A agricultura, considerada no conjunto da economia nacional, precisa ser mais amparada, se se quer que sua produção seja proporcional à da indústria. Há que melhorar as vias de comunicação (pp. 334 a 336), as condições de armazenamento dos produtos do campo (p. 336), a política de preços (p. 331), as condições do crédito agrícola (p. 331), etc.
Embora lembrando que a grande e a média propriedade têm seu papel específico e insubstituível na estrutura rural do País, sustentam os autores a necessidade do fomento à pequena propriedade (pp. 11, 18, 113, 133 e 150), aplaudindo os numerosos loteamentos que até aqui se vêm fazendo (p. 18), e sugerindo o fracionamento das terras devolutas da União, dos Estados e dos Municípios, para facilitar o tão desejável acesso dos trabalhadores do campo à condição de proprietários (p. 115).
De outro lado, deploram eles a frequente insuficiência dos salários rurais, a carência de habitações convenientes, a insuficiência ou a ausência de higiene, de educação, de instrução, etc., entre os colonos (pp. 21 a 22, e 155). Apontam a incompatibilidade entre esta situação e a doutrina da Igreja (pp. 92 e 165), e manifestam o firme desejo de que se encontrem os meios para, sem convulsões, mas com eficiência, e sem delongas inúteis, se remediar este estado de coisas (pp. 182 a 183).
A todas essas medidas, chamam eles de reforma agrária sadia. Para excogitar um programa de providencias concretas necessárias à execução dessa reforma, o livro incita ao estudo e ao debate da matéria todos os especialistas dos múltiplos ramos do saber e da técnica relacionados com o assunto (pp. 208, 219 e 254). O objetivo dessa reforma agrária sadia não é lançar uma classe contra outra. Consiste em melhorar as condições gerais da agricultura - isto é, as do fazendeiro e as do colono - para o bem do Brasil (pp. 9 a 12).
Este é o aspecto positivo da obra que pareceu ao Sr. Gustavo Corção tão criminosa quanto a invasão dramática e brutal da Hungria pelos soviéticos.
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Não creio que tenha sido o lado positivo, a causa do furor desbragado do Sr. Corção. Foi, talvez, o lado negativo? A S. Sa. a resposta.
Este lado “negativo” começa por não ser negativo. Destruir algo de verdadeiro ou de bom é fazer obra negativa. Destruir o que é destrutivo, negar o que é negativista, é fazer obra construtiva e afirmativa.
O instituto da propriedade privada não é uma trincheira em que se acobertam contra o bem comum os interesses de alguns felizardos. Segundo a doutrina católica, é ele, em si mesmo, uma condição sine qua non para o bem-estar moral e material de todo o corpo social, sem exclusão dos que não possuem propriedades. O estabelecimento de uma economia coletivista, na qual esse instituto não existisse, agravaria a situação, não só dos que atualmente são proprietários, como dos que não o são. Esse princípio sapientíssimo, se bem que um pouco surpreendente para certos ouvidos modernos, se encontra afirmado em vários documentos de Leão XIII citados em nossa obra (pp. 68 e 107).
Nenhuma reforma agrária seria, pois, útil para os grandes ou para os pequenos, se se operasse com supressão do direito dos proprietários, ou tivesse por resultado debilitar e quase aniquilar o instituto da propriedade privada. Esta verdade, não a tomam na devida conta muitos dos que falam na função social da propriedade. Qualquer instituto, como qualquer organismo, só pode desempenhar suas funções plenamente, se é sadio e robusto. E o exercício da função social do instituto da propriedade só será efetivo e pleno se ele for vigoroso.
Assim, o livro chama fortemente a atenção para a necessidade de não se aceitar como norma da reforma agrária o princípio de que se deve acabar com as propriedades grandes, e quiçá com as médias, para só deixar subsistir as propriedades pequenas, isto é, aquelas em que, extinto o regime do salariado, cada trabalhador é diretamente dono da terra que cultiva.
De outro lado, a igualdade tão completa quanto possível, que por esta forma se procuraria alcançar, os autores a apontam como injusta, como antinatural, como contrária à doutrina católica. E mostram como ela se opõe, ademais, aos verdadeiros interesses do bem comum, conduzindo ao declínio da produção rural.
O leitor talvez objete que esse regime não debilitaria o instituto da propriedade privada, pois multiplicaria as propriedades. De fato, uma estrutura rural constituída só por pequenas propriedades tornaria tão fracos os micro proprietários em face do Estado, que os transformaria automaticamente em meros agentes da burocracia e do intervencionismo estatal. Importaria na socialização da agricultura (pp. 146 - proposição 21, 154, 155, 147 - proposição 22, 148 - proposição 23, 156 - proposição 29). Preconizando vivamente uma evolução dinâmica da atual situação rural brasileira - na qual, note-se, um cuidado especial deveria ser consagrado à melhoria das condições dos trabalhadores do campo - o livro censura de modo terminante que essa evolução se faça em detrimento do instituto da propriedade privada, o qual é um dos mais preciosos fautores do bem comum.
Mas, dir-se-á, uma coisa é debilitar a propriedade rural, outra é exigir que ela exerça sua função social em beneficio, não só do proprietário, como do trabalhador agrícola e da economia nacional. Se a nossa situação rural fosse tal que o único meio de incrementar a produção e alcançar condições de vida dignas e humanas para o operariado do campo consistisse em fragmentar as propriedades excessivamente grandes, não se justificaria essa medida, segundo a doutrina católica? Sim, respondem peremptoriamente os autores, mas essa situação concreta não se presume. É preciso prová-la solidamente. Pois ninguém pode, em nome de um fato incerto, abalar um direito certo, como é o da propriedade (pp. 151 - proposição 25, e 196 a 197).
A parte segunda do livro, especialmente a cargo do exímio economista Luiz Mendonça de Freitas, mostra com grande riqueza de dados não haver provas de que o único meio para fazer progredir a agricultura nacional seja a partilha das terras; e mais, que a desproporção entre nossa produção agrícola e a industrial resulta de causas inteiramente alheias à estrutura rural do País. Quanto às condições dos trabalhadores do campo, elas podem ser melhoradas pelo apoio oficial ao processo espontâneo de loteamento de terras particulares, que em apreciável medida já se opera entre nós, e pelo aproveitamento das terras devolutas, bem como por medidas conducentes à melhoria dos salários, etc. Não é, pois, necessário, nem conveniente, desfechar uma campanha em favor da abolição das propriedades grandes e médias e do regime do salariado. Este regime, lícito e justo em si mesmo - máxime quando conjugado com a parceria rural - pode proporcionar condições de vida justas e dignas para os trabalhadores.
Quanto à classe dos proprietários agrícolas, é evidente que ela ficaria demolida, tanto econômica como socialmente, por uma reforma agrária de inspiração igualitária e anticristã - uma “Reforma Agrária” entre aspas e com maiúsculas, como está convencionado no livro - contraria ao regime da propriedade privada e implicitamente à instituição da família. Os autores mostram a injustiça que haveria em tal demolição. Essa classe representa ao mesmo tempo a tradição e o progresso. A tradição, porque ela é a elite que há séculos vem dirigindo o País. O progresso, porque ao longo das gerações ela se foi enriquecendo com elementos novos, cheios de seiva e dinamismo, oriundos não poucas vezes das fileiras do operariado rural. Indubitavelmente - e o livro o afirma franca e pormenorizadamente - essa elite tem sofrido a contaminação do espírito neopagão que sopra em todas as camadas sociais do mundo contemporâneo, e não raramente, por seu mau exemplo, tem acentuado a crise nas outras classes. O gosto da vida exageradamente luxuosa, regalada, muitas vezes até dissoluta, o consequente excesso de despesas, que traz como corolário a insuficiência de recursos para a conveniente utilização da terra e a avareza no remunerar o trabalhador, a indiferença para com o progresso espiritual e material deste, constituem traços que, em proporção maior ou menor, e salvas sempre as honrosas exceções, estão disseminados bastante largamente nos meios agrícolas (pp. 22 a 26). Sem embargo disso, os autores afirmam que não é o caso de demolir a classe dos fazendeiros, que prestou e presta insignes serviços ao País, e se assinala por valores inegáveis. Aplicando, mutatis mutandis, à situação brasileira o princípio enunciado por Pio XII em alocução à nobreza romana, julgam eles que é preciso, isto sim, intensificar a influência da Igreja sobre essa classe, não só para que ela se corrija, como para que empregue sua influência natural em difundir o espírito cristão em todas as outras camadas da sociedade. São estas as palavras do Pontífice: “Hoje a salvação deve vir daqueles de quem a perversão teve origem. De si não é difícil manter no povo a Religião e costumes sadios, quando as classes altas caminham em sua dianteira com o bom exemplo e criam condições públicas que não tornem desmedidamente pesada a formação da vida cristã, mas a façam imitável e doce. Porventura não é essa a vossa função, diletos filhos e filhas, que pela nobreza de vossas famílias e pelos cargos que não raras vezes ocupais, pertenceis às classes dirigentes? A grande missão que vos toca, e convosco a não poucos outros - ou seja, a de começar pela reforma ou aperfeiçoamento da vida particular, em vós mesmos e em vossa casa, e de vos esforçardes, cada um em seu lugar e de seu lado, por fazer surgir uma ordem cristã na vida pública - não permite dilação ou demora (...). Cabe-vos, pois, a glória de colaborar com a luz e a atração do bom exemplo, que suba além de toda mediocridade, não menos do que com as obras, a fim de que aquelas iniciativas e aspirações de bem religioso e social sejam conduzidas a feliz termo” (discurso de 11-1-1943 ao patriciado e à nobreza romana).
Sendo tão afim ao espírito da Igreja a reforma agrária sadia, quanto lhe é oposta a “Reforma Agrária” socialista e anticristã, como explicar que a propaganda desta encontre certo eco no Brasil?
Nosso ambiente, responde o livro, trabalhado há já quase dois séculos pelo espírito igualitário da Revolução Francesa e pela influência do igualitarismo sentimental e humanitário inerente ao socialismo utópico do século passado, tem certa tendência a ver na igualdade absoluta a norma suprema da justiça. Os autores refutam essa tendência gravemente errônea, nas várias formulações em que ela se apresenta, não propriamente em livros, mas nas manifestações verbais da vida corrente. E mostram como o socialismo marxista é muito menos responsável por essa permeabilidade do Brasil ao agro-reformismo malsão, do que o igualitarismo humanitário e sentimental que nos vem do passado. Entretanto, o socialismo e o comunismo, cuja meta é a abolição da propriedade e, como tal, a igualdade econômica de todos perante o Estado, lucram enormemente com isso, e vão atingindo sub-repticiamente os seus objetivos últimos.
* * *
Tudo isto merecerá impulsos de cólera iguais aos que os homens bons e retos sentiram com o crime inominável da invasão da Hungria?
Mas, perguntará desconfiado algum leitor do Sr. Gustavo Corção, depois de haver percorrido os três artigos de S. Sa., será mesmo isto que diz o livro “Reforma Agrária - Questão de Consciência”?
Meu caro, responder-lhe-ia, Bossuet disse que a verdade, para ser julgada, só pede ser antes ouvida. Leia o livro, e o leia antes de o condenar e de se encolerizar contra ele. Não siga o exemplo do Sr. Gustavo Corção.
Mas, pensará ainda alguém, não é plausível que o conhecido critico tenha formulado acusações inteiramente vãs, contra esse livro. Antes de dar o assunto por definitivamente julgado, seria preciso relembrar os argumentos de S. Sa. e refutá-los.
Realmente, assim é. E por essa razão consagrarei à análise desses argumentos meus próximos artigos. Neles verá então o leitor que o Sr. Gustavo Corção leu às pressas, e só em parte, o livro “Reforma Agrária - Questão de Consciência”.
Pediram-me o Exmo. Revmo. Sr. D. Geraldo de Proença Sigaud, S. V. D., que o Papa João XXIII elevou recentemente a Arcebispo de Diamantina, o Exmo. Sr. D. Antonio de Castro Mayer, Bispo de Campos, e o economista Luiz Mendonça de Freitas, que aqui registrasse haverem eles lido o presente artigo, e estarem solidários com o mesmo em todos os seus termos.
CALICEM DOMINI BIBERUNT
Foi e dos esteios da reforma gregoriana
Fernando Furquim de Almeida
Reconciliados Guilherme o Conquistador e o Príncipe Roberto, São Simão aproveitou a viagem de volta ao convento para se encontrar com Santo Anselmo, que acabava de ser eleito Abade do Bec e mais tarde, feito quase à força Arcebispo de Canterbury, se imortalizaria defendendo a liberdade da Igreja contra as pretensões descabidas do Rei da Inglaterra. Os inúmeros mosteiros disseminados pelo caminho, todos muito fervorosos, foram também demoradamente visitados pelo antigo cavaleiro. Estava ele em Saint Oyand, onde o retivera o Abade, maravilhado por sua virtude, quando chegaram cartas de São Gregório VII pedindo-lhe que se pusesse novamente a serviço da Santa Sé. Pesaroso de interromper um convívio que fazia tanto bem à comunidade, o Abade escondeu as cartas. Mas o Papa, ao saber que elas tinham sido interceptadas, ameaçou lançar o interdito sobre o mosteiro, e o pobre Prelado teve de entregá-las e de se resignar a ver partir São Simão.
CONSEGUIU O QUE OS OTIMISTAS MAL OUSAVAM ESPERAR
As dificuldades dessa nova missão eram tão serias que, apesar da habilidade do Santo, esperava-se um malogro. Os senhores feudais italianos, um a um, tinham reconhecido à suzerania da Santa Sé. Só Roberto Guiscard, senhor dos normandos, resistia a esse geral impulso de devotamento à Igreja. Levava uma vida de aventuras e de nada valiam os apelos repetidos que São Gregório VII lhe dirigia, exortando-o a renunciar às pilhagens e incursões que costumava fazer no território pontifício. São Simão era enviado a Roberto Guiscard numa suprema tentativa para pôr um paradeiro a esses desmandos: talvez o seu prestigio e renome na Cavalaria conseguissem dominar o caráter belicoso e altivo dos normandos e a repulsa de seu chefe a qualquer sujeição.
Muito tempo passou o santo monge entre eles, procurando obter, ao menos, um acordo pelo qual renunciassem às correrias que tanto mal causavam à Itália. A corte lhe era completamente hostil. Constituiam-na senhores feudais que até então só tinham sofrido a má influência dos desregramentos de Roberto Guiscard. Simão, no entanto, não se limitava às negociações. Pregava em todas as oportunidades, expondo a esses guerreiros indomáveis os grandes ideais da reforma gregoriana e descrevendo a vida monástica que estava renovando o fervor da Cristandade. Pouco a pouco, as resistências foram cedendo, o ambiente foi se transformando, e se tornou possível o que em Roma os mais otimistas mal ousavam esperar: uma aliança dos normandos com a Santa Sé, que eliminou as principais dificuldades nas relações mutuas e trouxe a São Gregório VII um auxilio precioso na guerra que lhe declarara o Imperador Henrique IV. Roberto Guiscard foi, desde então, um dos sustentáculos do Papa; seus homens é que libertaram o santo Pontífice quando este se viu cercado no Castelo de Santo Ângelo pelas tropas imperiais.
Não foi esse o único fruto do zelo de São Simão. Seu exemplo e sua palavra convincente levaram sessenta cavaleiros normandos a tudo abandonarem e irem povoar os mosteiros da região. A transformação desses homens foi tão radical, que um cronista beneditino não pôde deixar de admirar esses monges "outrora semelhantes a leões pelo terror que inspiravam, a leopardos pela diversidade de seus crimes, e que se tornaram humildes como o hissopo, perfumados como a mirra e mais alvos do que a neve".
O PAPA QUIS O DUQUE NO TRONO, E NÃO NO CLAUSTRO
Este não é um fato isolado. Os ideais da Cavalaria brilhavam então em toda a sua pureza e contribuíam eficazmente para a difusão da vida monástica. Numerosos cavaleiros, abrasados pelo amor de Deus, abandonavam o mundo e iam procurar nos claustros a realização de seus anseios de santidade. Muitos deles, como São Simão, voltando depois ao convívio de seus antigos companheiros, com a palavra e o exemplo afervoravam ainda mais o espírito da Cavalaria. Assim, monges e cavaleiros, ajudando-se mutuamente, imprimiram à Idade Média o caráter que até hoje admiramos.
Dotado de uma visão muito clara dos interesses da Religião, São Gregório VII foi por vezes obrigado a intervir para refrear esse desejo de uma vida mais perfeita, quando este, embora muito louvável em si, ameaçava privar a Igreja de servidores em postos nos quais eles eram ainda mais necessários. Foi o que aconteceu quando o Duque da Borgonha, amigo de São Simão, pediu para ser admitido em Cluny depois de ter governado o seu ducado, durante três anos, como um perfeito príncipe católico. Contra o conselho do Papa, o Abade, que era São Hugo, julgou dever aceitá-lo. É conhecida a amizade que unia o Pontífice e o Prelado. Essa divergência entre eles nos valeu uma admirável carta de repreensão amistosa de um Santo a outro Santo, na qual o amor de Deus, a caridade fraterna e o zelo pela salvação das almas brotam de cada palavra: "Meu caro irmão, escreve São Gregório VII, porque não considerastes em que perigo e em que desolação se encontra a Santa Igreja? Onde estão os que se expõem ao perigo por amor de Jesus Cristo, os que não temem resistir ao ímpio e morrer pela justiça? O pastor e os cães encarregados de guardar o rebanho fogem e abandonam as ovelhas de Jesus Cristo à mercê dos lobos e dos ladrões. Nada tendes de que vos acusar? Recebestes em Cluny o Duque da Borgonha e com isso deixastes cem mil cristãos sem guardião. Se os nossos conselhos não encontraram eco em vós, se desprezais as ordens da Santa Sé, como não vos afligistes, ao menos, com os gemidos dos pobres, as lágrimas das viúvas, os queixumes dos órfãos, a desolação da Igreja e o descontentamento dos Sacerdotes e dos monges? Que vos dirão São Bento e São Gregório, um mandando provar um monge durante um ano, e outro que não se receba um soldado senão depois de três anos? O que nos leva a falar deste modo é que quase não se veem mais bons Príncipes. Graças à misericórdia divina, existem muitos bons Sacerdotes e bons monges; há mesmo militares tementes a Deus, mas em todo o Ocidente é raro encontrar um Príncipe que tema e ame a Deus de todo o coração. Nada mais vos digo, pois espero da bondade divina que a caridade de Jesus Cristo, que costuma habitar em vós, me vingue transpassando o vosso coração e fazendo-vos sentir qual é a minha dor ao ver um bom Príncipe arrancado de sua Mãe. A única consolação que posso esperar é que o seu sucessor não seja mau. Enfim, advertimos Vossa Fraternidade que seja mais prudente nessas coisas e que prefira a todas as virtudes o amor de Deus e do próximo. Eis o que vos deve levar, a vós e vossos irmãos, a me socorrer com orações, a fim de que eu mereça caminhar de virtude em virtude e chegar à perfeição da soberana caridade".
SÃO GREGORIO VII O ASSISTIU NO ÚLTIMO COMBATE
O antigo Conde de Crépy passou em Roma os últimos anos de sua vida, constituindo um dos esteios da reforma gregoriana. Sentindo aproximar-se a morte, pediu que São Gregório VII viesse ouvi-lo em confissão. O Papa o atendeu, ministrou-lhe os últimos Sacramentos e permaneceu a seu lado para ajudá-lo no derradeiro combate. São Simão morreu nos braços de seu santo amigo, e por ordem deste foi sepultado entre os Papas, em sinal do reconhecimento da Igreja pelos inestimáveis serviços que prestara à Cristandade.
NOVA ET VETERA
Por que prosperam os antiquários?
Celso da Costa Carvalho Vidigal
Transcrevemos e comentamos recentemente, nesta secção (1), alguns trechos do artigo que o arquiteto norte-americano Edward Durell Stone publicou há pouco tempo em «The New York Times Magazine». Devido à sua importância — à vista de ser esse arquiteto o autor de projetos «modernos» famosos, como os do Museu de Arte Moderna de Nova York e do pavilhão dos EUA na Exposição de Bruxelas — queremos apresentar aos nossos leitores mais algumas citações do mesmo texto.
FATO QUE OCORRE POR TODA PARTE
«Certamente, escreve E. D. Stone, todos tiveram o que dizer sobre a transformação dos belos apartamentos de Park Avenue em edifícios de escritórios envidraçados, dando à avenida a aparência de uma fenda numa geleira. Obviamente, os antigos símbolos do luxo — veludo vermelho, espelhos de cristal, tapeçarias e moveis dourados — não podem ser utilizados em tudo o que se constrói; mas, não menos obviamente, o mundo do vidro plano e do alumínio que cresce sobre nós deixa o comum dos mortais profundamente insatisfeito (...).
«Pois permanece no coração do comum das pessoas a aspiração de cercar-se de objetos de boa qualidade, de deleitar-se com a pátina dos moveis de mogno do século XVIII, o brilho da prata antiga e dos candelabros de cristal. Embora possamos estar resignados ao espaço cada vez menor em que vivemos, revoltamo-nos quando a onda modernista quer atingir os objetos que decoram nosso lar. Essa revolta se manifesta na prosperidade de milhares de lojas de antiguidades e de outros estabelecimentos que em Nova York vendem objetos de arte de épocas pretéritas (...).
«Será um erro olhar para o passado? A arquitetura e a decoração modernas têm aceitação real neste país desde há vinte anos apenas. Passaremos por cima de 2.500 anos de cultura? Creio que se deveria ter certa simpatia para com pessoas que não estão dispostas, na decoração de seus lares, a se restringir àquilo que se tornou moda há somente duas décadas».
Curioso é notar que, com variações locais, o que E. D. Stone aponta como fenômeno norte-americano ocorre também no Brasil, e pode-se supor que ocorra igualmente em outros países. Não é verdade que entre nós — principalmente nas grandes cidades, onde em geral há fortunas maiores e gosto mais apurado — é grande e sempre crescente o número de lojas que se dedicam à venda de antiguidades, sem falar nas fábricas de «objetos antigos»? E mesmo entre pessoas que escolheram um estilo dito moderno, quiçá ousado, para a construção de sua residência, não é raro encontrar o gosto por coisas antigas, as quais chegam por vezes até a predominar na decoração interna da casa.
Por outro lado, não se nota, no Rio de Janeiro como em São Paulo, em Recife como em Salvador, fenômeno semelhante àquele que o arquiteto «yankee» descreve com relação à Park Avenue? Mansões e palacetes, ao longo de ruas inteiras, vão sendo demolidos para dar lugar a edifícios novos, de vidro e alumínio, ou de outros materiais modernos, aplicados em formas inexpressivas ou extravagantes.
TEIMOSA SOBREVIVÊNCIA
O que se verifica, de um modo geral, é que, enquanto a Revolução domina praticamente a arquitetura hodierna, na decoração persistem determinados aspectos contra-revolucionários que à primeira vista desconcertam os observadores. Como explicar, de fato, a teimosa sobrevivência dessa afeição de tantos homens de bom-gosto pelo mobiliário e outros elementos de adorno de características tradicionais? E isso em oposição a poderosas correntes artísticas internacionais, que fomentam a completa adaptação de todos às novas regras estéticas que elas já conseguiram implantar largamente entre os arquitetos.
Esses elementos conservadores que se notam na decoração contemporânea se explicam, talvez, pela reação instintiva do coração e do espírito humano, os quais não se conformam inteiramente às «novas regras» e sentem, ao menos no recesso do lar, uma nostalgia do ambiente de intimidade, de paz e de decoro que falta às extravagâncias de sabor totalitário e coletivista construídas pela arquitetura moderna em nossas ruas.
UMA CRÍTICA FACIL DE REFUTAR
Chegou ao nosso conhecimento que certo arquiteto criticou o fato de virmos escrevendo artigos sobre sua especialidade sem sermos diplomado em arquitetura. Já tivemos ocasião de mostrar como muitos arquitetos contemporâneos procuram convencer o público de que nenhum «leigo» pode dar sua opinião em matéria de arquitetura; não estranhamos portanto essa crítica. E é fácil refutá-la.
Claro está que não pretendemos negar a maior competência dos arquitetos no que se refere aos problemas técnicos da arquitetura.
Mas, as casas, os prédios, as construções em geral, se fazem para serem utilizadas pelos homens. Cabe a estes, pois, declarar se tal ou tal obra arquitetônica atende às suas conveniências. Assim, qualquer usuário de um edifício — e não se negará que o autor destas linhas também o é — tem o direito de afirmar que o mesmo é, ou não é, belo, decoroso ou funcional. Isso porque o uso de um objeto faz conhecer suas qualidades e seus defeitos, e qualquer pessoa dotada de mediano senso crítico é capaz de julgar se determinado objeto, de que ela se utiliza, satisfaz aos seus anseios de ordem estética, espiritual ou material.
(1) «Depõe um arquiteto moderno», «Catolicismo», no 120, de dezembro de 1960.