Pode-se resolver o problema agrário brasileiro atendendo aos direitos do trabalhador e ao bem comum, sem destruir nem ferir a classe dos fazendeiros
(continuação)
respeito, o reconhecimento e o apoio que o País deve à classe dos fazendeiros, já no capítulo seguinte (pp. 21 a 26) mostra que ela, a par de suas inegáveis qualidades, e ressalvadas as honrosas exceções, apresenta também incontestáveis defeitos.
Entre estes lembram os autores as despesas excessivas com representação social e prazeres, a ausência por demais frequente da vida do campo, etc., bem como o desinteresse, ora maior, ora menor, pelo soerguimento das condições religiosas, intelectuais e materiais dos trabalhadores rurais. Esses defeitos não existem em todos os elementos constitutivos dessa categoria social, nem se concentram habitualmente todos nas mesmas pessoas. Em proporções maiores ou menores, eles existem entretanto, de um modo geral, em numerosos membros da classe.
A partir de todas essas considerações, aceitamos como válido o princípio de que toda elite é um elemento precioso na vida de um país. Pelo que, quando ela apresenta defeitos, deve-se procurar orientá-la e auxiliá-la, para que os veja e para que os corrija. É o que expressamente diz Pio XII no discurso à nobreza romana (1º/I/1943) mencionado em meu primeiro artigo.
Deus, que dotou a Igreja da missão e da força necessária para falar com eficácia ao coração de todos os homens de todas as classes, não Lhe deu menos poder para falar aos grandes do que aos pequenos. Essa obra indispensável, do incremento da influência cristã nas elites, nada tem de utópico.
Nessas condições, consideramos que a destruição das bases econômicas e da influência social dessa elite seria tarefa ao mesmo tempo desnecessária e injusta.
Embora se assanhem os furores da demagogia contra esta afirmação, aqui a fazemos — e escrevo no plural porque os co-autores do livro me pediram que consignasse sua plena solidariedade com este artigo — com o mais inteiro desembaraço. Acreditando sempre que o Sr. Gustavo Corção não tenha lido “Reforma Agrária — Questão de Consciência”, pedimos-lhe que, agora que conhece nosso pensamento, nos responda de modo claro, conciso e com a coragem que não lhe negamos: S. Sa. está de acordo em que essa demolição é desnecessária, nociva e injusta? ou pelo contrário, acha que ela é justa, necessária e vantajosa para o bem comum?
Igualmente gostaríamos de conhecer seu pensamento sobre o seguinte: estamos persuadidos de que há meios no Brasil para resolver o problema agrário atendendo aos direitos dos trabalhadores e à conveniência do bem comum, sem deixar destruída, ou pelo menos mal vista pelo público e amesquinhada em sua legítima e saudável influência, a classe dos fazendeiros. S. Sa. concorda com isto?
Perdoe-nos a indiscrição das perguntas. É que temos mais empenho em conhecer neste ponto seu abalizado pronunciamento, do que teve ele em se inteirar das opiniões que consignamos em nosso desvalioso trabalho.
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Uma das mais claras provas de que o Sr. Gustavo Corção leu nosso livro em diagonal está no seu segundo artigo, intitulado “Reforma agrária e direito de propriedade” (in “O Estado de São Paulo” de 29-I-1961).
S. Sa. consagrou todo aquele seu longo trabalho a demonstrar que sua posição se distingue da nossa pelo fato de que, para ele, “o direito de propriedade é indispensável à boa estrutura social mas deve ser defendido em termos de subordinação ao bem comum, de maior acesso à multidão”, etc. E pouco adiante nos atribui a idéia de que é socialista o artigo 147 da Constituição Federal, por afirmar que “o uso da propriedade está condicionado ao bem-estar social”. É em virtude deste princípio que, quando um imóvel prejudica o bem comum por sua excessiva extensão, pode ser desapropriado. S. Sa. aceita esta consequência, e no aceitá-la imagina diferenciar-se de nós. Assim, evidentemente, nos atribui o pensamento oposto.
Tivesse S. Sa. lido alguns de nossos tópicos sobre a matéria, e compreenderia desde logo, com a mais meridiana clareza, que se engana. Apenas para exemplificar, transcrevo na íntegra o que afirmamos na p. 120: “O direito do proprietário legítimo tem como fundamento último a ordem natural das coisas, a qual é anterior e superior ao Estado.
“Este não o pode, pois, suprimir, a não ser quando o bem comum o exija. E, ainda assim, mediante indenização justa e imediata.
“Caso a desapropriação em larga escala fosse indispensável ao bem comum, e o Estado não pudesse indenizar os proprietários condignamente, compreender-se-ia em princípio que essa indenização fosse inferior ao valor real do imóvel desapropriado. Nessa hipótese ainda, a indenização deveria ser, não a menor, mas a maior possível.
“Como mostraremos na Parte II, essa hipótese não ocorre, aliás, no Brasil”.
Aí está afirmado em toda a sua extensão o princípio que o Sr. Gustavo Corção imagina que negamos. É impossível multiplicar as citações. Leia entretanto S. Sa. as pp. 121, 151, 152, 183, 196, 197, 198, 219, e compreenderá que, se nos opomos à partilha compulsória das terras no Brasil, não é porque neguemos o princípio de que em certas situações extremas ela possa caber, mas porque nas condições concretas do Brasil ela constituiria um verdadeiro disparate e por isto mesmo uma gravíssima injustiça. A partilha compulsória não melhoraria as condições da agricultura nem dos trabalhadores, e criaria problemas mais graves que os atuais. É o que na parte II do livro longamente se demonstra.
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Outra prova, e pitoresca, de que S. Sa. não leu seriamente “Reforma Agrária — Questão de Consciência”, que aliás tanto o irritou, está na sua afirmação de que “um dos principais defeitos do livro” é a “ausência de um prefácio em que os autores dissessem que a obra exprime o pensamento deles sem pretender apresentar-se como um pronunciamento oficial da Igreja”. O livro não tem propriamente prefácio, mas a declaração cuja ausência o fogoso articulista tanto deplora está na p. 159.
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A asserção de S. Sa., de que nem sequer reconhecemos aos pobres o direito de gemer, é tão oposta a, tudo que se encontra no livro, que até faz sorrir.
Leia o Sr. Corção na p. 74 o tópico de João XXIII, que afirma para “toda classe de cidadãos” a liceidade da defesa de seus direitos. Leia na p. 82 o texto de Pio XI, reconhecendo aos pobres o direito de pleitear melhores condições de vida. Leia na p. 86 o tópico em que sustentamos ser justa a indignação dos pobres diante das extravagâncias e excessos do luxo. Leia na p. 92 a nossa afirmação de que a recusa do salário familiar em nível suficiente e digno pode constituir pecado que brada ao Céu e clama por vingança. E S. Sa. compreenderá quanto errou.
A linguagem do livro tem nesta matéria a necessária clareza. Ela evita apenas o tom demagógico que São Pio X desaconselhou no tópico transcrito à p. 95, que provavelmente nosso apressado crítico também não leu.
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Quase tão censurável, e imensamente tolo, é o pensamento que nos atribui o Sr. Gustavo Corção, de que “a riqueza, a grande propriedade, a fortuna vultosa se explicam pelas superiores possibilidades e até parecem sinais da dileção divina” (art. “Reforma Agrária: Questão de Consciência”, in “O Estado de São Paulo” de 22/I/1961).
Aqui, felizmente, S. Sa. cita o texto em que se apóia. É a proposição nº 1, na p. 62.
Leiamo-la: “Todos os homens ativos e probos têm igual direito à vida, à integridade física, à fruição de condições de existência suficientes, dignas e estáveis.
“Mas é justo que os mais capazes, mais ativos, mais econômicos tenham, além deste mínimo, o que produzirem graças às suas superiores possibilidades.
“Daí decorrem legitimamente a diferenciação das propriedades em grandes, médias e pequenas, e quiçá a existência de uma classe condignamente remunerada, mas sem terras”.
O que evidentemente está dito aí é que à maior capacidade corresponde maior possibilidade de ascensão econômica. Quanto mais o homem é capaz, tanto mais facilmente pode tornar-se rico. A formação de uma contextura de propriedades desiguais resulta obviamente da conjugação deste princípio com outro, que é o da herança.
Tudo isto é claro, é simples, é perfeitamente banal. Mas tão perigoso é criticar o que, provavelmente movido pela paixão, se leu superficialmente, que o Sr. Gustavo Corção acabou por suspeitar ou imaginar que sustentamos neste tópico que os ricos, mais do que todos os outros homens, são os bem amados de Deus. Ao que parece, S. Sa. acha mesmo que lhes atribuímos o monopólio de toda instrução, cultura e virtude. Um débil mental, herdeiro de boa fortuna, seria assim mais capaz do que um trabalhador ativo em franca ascensão!
Deploro que o Sr. Corção, antes de lançar contra nós juízo público tão severo, não tenha lido as já citadas pp. 17, 18, 69, 78 e 81, em que falamos da necessidade de renovar as elites pelo acesso de elementos novos e depuração dos elementos gastos, e temas quejandos, para compreender que temos um pouco de senso para não afirmar tais despautérios.
O belicoso articulista leu apressadamente o seguinte texto: “Quem nasce, pois, de um casal particularmente dotado pela Providência com bens espirituais ou materiais fica muito legitimamente favorecido desde o berço, mais do que outros nascidos de pais com predicados comuns”. Este texto se encontra na p. 130 (proposição nº 15). S. Sa. não leu infelizmente as linhas que se seguem a essas: “Esta desigualdade primeira é justa, porquanto Deus, supremo Senhor de todos os bens, dá a cada qual o que quer”. E, a título de confirmação, acrescentamos imediatamente depois este pensamento de Pio XII, que resume lapidarmente o que vem antes: “A natureza benigna e a benção de Deus à humanidade iluminam e protegem os berços, beijam-nos, porém não os nivelam”. Se tivesse detido os olhos nisto, o Sr. Gustavo Corção teria compreendido melhor o sentido óbvio do que dissemos. Nada disso chamou a atenção de S. Sa., que parece não ter percebido estar investindo contra o próprio Pio XII. E por esse motivo exclama indignado: “Aí está o tom, o diapasão de toda a obra”.
Realmente é o tom. Inspira-se ele no citado ensinamento de Pio XII, que S. Sa. conhecerá ainda melhor se tomar o trabalho de ler à p. 132 outro texto do mesmo Pontífice sobre a matéria.
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O Sr. Gustavo Corção acusa nosso livro de ignorar o amor particular que a Igreja tem ao pobre, e o dever especial de o proteger que incumbe ao Estado, segundo a doutrina católica. Tivesse S. Sa. lido a p. 104, e se teria dado conta de que com palavras de Leão XIII recordamos precisamente as máximas que ele nos acusa de haver omitido. Na p. 165, lembramos que a condição subumana de muitos pobres “constitui uma situação da qual a Igreja Se condói maternalmente, e que Ela faz o possível para eliminar ou, pelo menos, mitigar ( ... ). Aos pobres deste gênero a Igreja ama como um tesouro que Lhe foi particularmente confiado por Jesus Cristo”.
Como é natural, esta preferência pelos pobres não importa em ódio aos ricos, e é este ponto que talvez tenha deixado perplexo o Sr. Gustavo Corção. Com efeito, lembramos na p. 105 que ricos e pobres são filhos de Deus, e citamos Leão XIII, segundo o qual não se deve julgar que em sua ação social a Igreja “consagra os seus cuidados de tal modo aos interesses das classes inferiores, que parece pôr de lado as classes superiores, que não são menos úteis para conservação e melhoramento da sociedade”. É a posição de amor a todas as classes, relembrada na p. 168 (proposição nº 34), tão típica do pensamento católico, e que procuramos refletir em “Reforma Agrária — Questão de Consciência”.
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Outro ponto que se torna claríssimo, por superficialmente que se leia o livro, é que o capítulo I, na secção 2 da Parte I (pp. 62 a 144), de onde o Sr. Gustavo Corção tirou a totalidade ou quase totalidade de suas objeções, corresponde a um problema inteiramente teórico, a saber: se, considerada em si mesma, a diferenciação das propriedades rurais em grandes, médias e pequenas é contrária ao espírito do Evangelho. Os fatos concretos não são abordados nesta, mas em outras partes do trabalho.
Para responder ao problema posto naquele capítulo, afirmamos entre outras coisas um princípio genérico de moral: “Desde que um homem tenha o que é necessário à subsistência e à prosperidade sua e de sua família, e receba a justa remuneração de seu trabalho, não tem direito a deplorar que outras pessoas ou famílias possuam mais” (pp. 77 e 78). O Sr. Gustavo Corção, ululando literalmente de indignação exclama: “Digam-me (os leitores) se esta hipótese não lhes parece fantástica de audácia, e até diria de hipocrisia se outros fossem os autores do livro. Todos nós estamos fartos, cansados, enjoados de saber que essa mirífica hipótese, tão singelamente posta na base dos subsequentes raciocínios, não se aplica a 80% ou mais da população brasileira” (art. cit.).
Já mencionei neste e no artigo anterior o que pensamos sobre a anomalia de nossa atual situação rural, inclusive a do trabalhador do campo, e sobre a necessidade de lhe dar remédio urgente. Estamos, pois, muito longe de afirmar, como imagina o Sr. Corção, que a hipótese aventada corresponda sempre e necessariamente à realidade brasileira. Mais uma vez, se S. Sa. tivesse lido atentamente o nosso livro, teria poupado a seu sistema nervoso e a seu fígado momentos de furiosa e inútil indignação.
Porém, não seria necessário recorrer a este esclarecimento, para perceber que é infundada a objeção.
Com efeito, quando se trata de uma exposição de princípios de filosofia social ou moral, estudam-se as várias hipóteses possíveis, sem cogitar da maior ou menor frequência de cada uma delas na prática. O Sr. Gustavo Corção sabe disto, e, com menos pressa e raiva, poderia ter-se dado conta de que estava neste âmbito puramente doutrinário a nossa asserção...
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Para concluir, uma joia.
Um dos artigos em apreço nos atribui a ideia de que uma família que não seja abastada é um simulacro, pior ainda, uma caricatura de família (art. cit.).
Podemos dizer tranquilamente que isto é um simulacro, pior ainda, uma caricatura do que pensamos.
Com efeito, o tópico citado pelo Sr. Gustavo Corção é o seguinte: “Uma família que não desse aos filhos uma participação na formação religiosa e moral, na cultura e na abundância de seus pais, seria um simulacro, pior ainda, uma caricatura de família” ( p. 140).
S. Sa. esqueceu-se por certo de ler a extensa proposição nº 18 (p. 139), da qual o texto citado não constitui senão uma pequena parte final. E igualmente não leu as outras passagens próximas do livro, que com esta se relacionam. Não podemos transcrever neste artigo todo o contexto, porém o resumiremos. Os autores cuidam aqui, como na proposição nº 15 (p. 130), do erro dos que, querendo manter viva a instituição familiar, entretanto afirmam o princípio de que deve haver igualdade de todos, de sorte a não se justificar herança nem melhor educação para os filhos de pais mais abastados. Assim, a família não conferiria aos filhos qualquer participação nas vantagens dos pais. O contexto sustenta que a instituição familiar, privada da possibilidade de beneficiar os filhos, “seria um simulacro, pior ainda, uma caricatura de família”.
Isso absolutamente não importa em dizer que, quando uma família considerada in concreto, e não a instituição familiar em tese, não tem posses, é um simulacro ou uma caricatura de família. Primeiramente, porque não falamos só de bens materiais, mas de formação religiosa, de formação moral, e de cultura. Em segundo lugar, porque, se considerássemos uma caricatura toda família sem bens, deveríamos considerar caricatural a Sagrada Família de Nazaré, pensamento que só se pode atribuir a autores que se dizem católicos, e máxime a dois Bispos, se são loucos de internar em sanatório. Não queremos crer que o Sr. Gustavo Corção chegue tão longe.
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Terminamos. É muito ingrato defender um livro contra ataques desta natureza. A defesa exige todo um trabalho de citações e hermenêutica, que extenua quem escreve, e também quem lê. Mas que remédio há para o acusado senão defender-se, entrando assim nos múltiplos meandros, já não direi de todas, mas pelo menos das principais acusações?
Aqui fica apresentada, para o público brasileiro, uma refutação que ele facilmente poderá comprovar no próprio livro.
Muitas outras asserções do Sr. Gustavo Corção poderiam ainda ser refutadas.
O que nesta série de artigos foi dito é quanto basta.
AMBIENTES, COSTUMES, CIVILIZAÇÕES
Sociedade orgânica e urbanismo
Plinio Corrêa de Oliveira
Praça de Santa Maria Formosa, em Veneza. Gravura do século XVIII. À direita, um pequeno palácio, do qual só se pode ver uma parte. Em frente a ele, um estrado de madeira, ali posto provavelmente para alguma representação teatral ao ar livre. Os personagens, que parecem haver participado de um ensaio, se dispersam lentamente, pela praça vazia. Ao centro desta, um poço. De um e outro lado, edifícios residenciais, uns mais distintos, e com certo ar de nobreza, e outros mais populares. Desses edifícios, alguns têm lojas no andar térreo. Dir-se-ia um pequeno mundo pacífico e harmônico, até certo ponto fechado em si mesmo, no qual existem lado a lado as várias classes sociais, nobreza, comércio, trabalhadores manuais, unidas em torno da igreja ao fundo, que, com seu "campanile", domina digna e maternalmente o quadro, enriquecendo o ambiente com sua mais alta nota espiritual.
Esse microcosmo, cerimonioso, distinto, porém marcado por uma nota de intimidade, reunido em volta de uma pequena praça, revela o espírito de uma sociedade em que os homens, longe de quererem dissolver-se em multidões anônimas, tendiam a constituir núcleos orgânicos e diferenciados, que evitavam o isolamento, o anonimato, o aniquilamento do indivíduo diante da massa.
Como esta praça, tão pitoresca e humana, tão distinta mas na qual convivem harmonicamente as classes diversas, tão tipicamente sacral pela irradiação que nela exerce a presença do pequeno templo, diverge de certas imensas praças modernas, em que sobre um mare magnum de asfalto, perdido em uma agitada massa que circula em todas as direções, o homem só tem diante dos olhos arranha-céus ciclópicos que o acachapam.