Verdade esquecida: “É alheio à verdade dizer que se perde o direito de propriedade com o não uso ou abuso dele” - Pio XI
(continuação)
tarefa. Não somos agricultores, mas homens de estudo. Cientes de quanto pode em qualquer assunto a fixação de princípios básicos claros e verdadeiros, conjugamo-nos para de todo o coração dar ao problema o contributo que de homens de estudo, modestos embora, se pode esperar. Pertence aos agricultores o campo das realizações».
Em outras palavras, a solução do problema agrário é complexa. Para que ela se efetive com real proveito dos trabalhadores rurais e da lavoura, há, mister a colaboração de todos, dando cada um a contribuição que estiver ao seu alcance, sem que nenhuma possa ser desprezada. Se, como todo problema humano, este envolve vários aspectos, a solução se expõe a ser falsa se não se consideram todos eles, dos quais o mais importante é o da filosofia da vida que animará as realizações de ordem prática. Para este volvemos nossas vistas. Era o que estava ao nosso alcance. Não cremos que o Exmo. Sr. Arcebispo julgue desprezível este aspecto da questão. Também não acreditamos que nos peça, a nós que não somos técnicos, um plano pormenorizado, que em larga medida exige conhecimentos técnicos.
Um teólogo ou homem de estudos que, enquanto tal, se julgasse capaz de resolver os problemas da agricultura sem o concurso dos agricultores, seria algo de tão extravagante e inautêntico quanto um agricultor que, sem outras qualificações, se aplicasse a deslindar as mais árduas questões de teologia, sociologia ou economia.
Veja-se o exemplo que nos dão os Papas. Escrevendo, embora, sobre problemas econômicos e sociais, limitam-se a propor normas gerais, diretrizes para solução, não descendo a planos pormenorizados. E Pio XII declara explicitamente: «Não Nos compete definir as providencias particulares que a sociedade deve adotar para cumprir a obrigação de prestar auxílio à classe rural» (cf. «Reforma Agrária — Questão de Consciência», p. 11).
O livro está tão longe de desconhecer «a mentalidade egoísta, gananciosa, sem espírito cristão» (art. cit., p. 78), de muitos proprietários, que consagrou ao estudo dos males da presente situação agrária brasileira todo um capitulo, e a cada passo está a lembrar os problemas existentes e a pedir que se lhes dê a solução. Veja-se a p. 182, por exemplo, onde deploramos a condição subumana de muitos trabalhadores agrícolas, e afirmamos que o atual sistema rural pode e deve ser urgentemente melhorado para satisfazer às exigências da justiça e atender às necessidades do bem comum. Citamos a esse propósito a censura que Pio XI faz ao clamoroso contraste entre o pequeno número dos ultra ricos e a multidão inumerável dos que nada possuem (p. 93).
Seria oportuno recordar aqui que a solução do problema do campo está intimamente ligada com as demais atividades econômicas do País, e que o protecionismo dispensado por exemplo a certos setores industriais e comerciais que não interessam ao bem comum pode, em dadas circunstancias, prejudicar as atividades agropecuárias e tornar mais difícil a solução dos problemas específicos do campo.
De onde resulta que o contraste, salientado por Pio XI, entre os ultra ricos e os que nada possuem pode, com muito maior fundamento, encontrar-se em setores outros que a agricultura. E a avareza, fonte de toda desordem e injusto desequilíbrio — como lembra o artigo (p. 81) — «pelo que as fortunas das nações se acumulam nas mãos de mui poucos particulares que a seu talante controlam o mercado mundial, em prejuízo das massas populares», há de se procurar muito mais entre os açambarcadores, por exemplo, do que entre os homens da lavoura.
Tampouco procede a acusação de que esquecemos a advertência de Pio XII na «Menti Nostrae» (Exortação ao Clero de 23-IX-1950), contra «as graves e funestas consequências do capitalismo» (p. 79). Apenas, distinguimos entre o sistema comunista, ou o comunismo simplesmente, com o qual não é permitida colaboração em campo algum (cf. Encíclica «Divini Redemptoris»), e o capitalismo, cujo regime em si — disse o mesmo Pio XII, alguns meses depois da «Menti Nostrae», na alocução de 2 de julho de 1951 sobre problemas da vida rural — não se deve condenar. Um regime que não se deve condenar de si mesmo, um regime que «contribuiu para tornar possível e até estimular o progresso do rendimento agrícola» (alocução citada) não deve ser supresso, mas corrigido. Tal correção, nosso livro frequentemente a pede, assim como observa que o grande mal do capitalismo está no espírito materialista que dele de há muito se apoderou, e que o faz procurar a solução dos problemas humanos em fatores meramente econômicos. Achamos que esse materialismo — dominante nos Estados Unidos, bem como nos católicos progressistas — é inteiramente condenável. É neste sentido que também reputamos necessária uma sadia reforma agrária, a qual, para ser sadia, deve evitar os princípios materialistas do socialismo, e não desconhecer os fatores espirituais, indispensáveis para uma solução real das questões suscitadas pelas atividades humanas.
Tudo isso pede o livro. O que não se encontra nele é uma linguagem que possa acirrar os ânimos e excitar a luta de classes, quando o desejo da Igreja é solucionar os problemas econômico-sociais dentro da harmonia que o bem comum pede que reine entre todas as classes. Nessa atitude, seguem os autores o conselho de São Pio X, que recomenda aos escritores católicos que evitem, ao defender a causa dos pobres, «palavras e frases que poderiam inspirar ao povo a aversão pelas classes superiores da sociedade» (Motu proprio sobre a Ação Popular Católica, de 18-XII-1903).
Na segunda parte de seu trabalho, escreve S. Excia. que temos a preocupação de ver «socialismo» em quase tudo. Estamos diante de uma afirmação que gostaríamos de ver demonstrada. Sustenta o artigo que para tanto «bastaria ler o índice» (p. 79). Ora, reconhece o ilustre Prelado que «o livro aponta o perigo real do socialismo e condena qualquer reforma agrária de inspiração materialista» (p. 75). Mas, se reconhece que nossa modesta obra se ocupa do perigo socialista, que poderia S. Excia. Revma. procurar no índice senão predominantemente questões relacionadas com o socialismo?
Acrescenta o artigo que «o critério adotado (pelos autores) para julgar se uma tentativa de reforma ou revisão agrária está ou não de acordo com a doutrina católica foi o perigo socializante», e diz que este critério é «unilateral» e «foi muito largo na maneira de considerar as influencias socializantes» (p. 79 e 80).
Primeiramente, se escrevemos para alertar contra a reforma agrária socializante, conforme reconhece o Sr. D. Fernando Gomes, como estranhar que analisemos sob esse aspecto as reformas que consideramos? Com semelhante critério, dever-se-ia censurar qualquer obra especializada, porque não trata dos aspectos da questão alheios àquele que constitui seu objetivo especifico. Teria razão a crítica se aprovássemos, sem mais, toda reforma agrária, de qualquer tipo que fosse, bastando que não estivesse eivada de espírito socializante. Tal, porém, não faz o livro.
No que toca à amplitude com que os autores aplicam o critério adotado, não parecem aceitáveis nem as razões nem o símile aduzido pelo artigo da «Revista da Arquidiocese». Não é exato que vejamos em todas «as palavras, frases, discursos e projetos de lei sintomas ou possíveis intenções socializantes» (p. 80). De fato, à p. 232 de nosso trabalho, afirmamos que nem todas as medidas de política agrária propostas ou adotadas no Brasil podem ser classificadas de reforma agrária revolucionaria, esquerdista e malsã.
Tampouco vemos socialismo em todas as palavras, frases e discursos. O que denunciamos em nosso livro é o uso de certas palavras com o fim de criar um ambiente socializante. E citamos essas expressões (pp. 47 a 49). Somos levados a tais considerações pela observação da vida quotidiana — basta ler os jornais comunistizantes — pelas advertências de Pio XI citadas às pp. 50 e 76 de nossa obra, e pela de Pio XII na alocução ao «Katholikentag» de Viena (14-IX-1952).
Qualquer pessoa que leia esse capítulo de «Reforma Agrária — Questão de Consciência» verá que em nossa exposição não forçamos o sentido de nenhuma dessas expressões, que são empregadas exatamente assim no uso diário dos meios socializantes. Não se pode dizer o mesmo da interpretação que o Exmo. Revmo. Sr. D. Fernando Gomes dá a outra passagem do livro quando entende desta maneira nossa sugestão do credito fácil para os que desejam colonizar: «Os proprietários das grandes arcas teriam os cofres públicos (crédito fácil) à sua disposição, bastando para isso o desejo de colonizar» (p. 80 do art.). Qualquer pessoa de bom senso vê que não damos à palavra «desejo» o sentido de «veleidade» que nela viu o Arcebispo de Goiânia. Como qualquer pessoa de bom senso vê que a palavra «feudalismo» (um dos slogans socializantes por nós apontados) é hoje empregada pela propaganda comunistizante em acepção pejorativa, alheia ao significado histórico, e portanto como meio de difundir um ambiente igualitário, socializante, como observamos nós.
Julga o artigo que o «socialismo não é o único nem o mais grave problema a enfrentar, se queremos levar o fermento cristão ao mundo rural» (p. 80).
Fomos levados a pensar diversamente por uma advertência de Pio XII. Falando ao «Katholikentag» de Viena, em 14 de setembro de 1952, depois de observar que a questão operaria pode ser hoje em dia considerada como resolvida, ao menos nas suas partes essenciais, declara o pranteado Pontífice que «é preciso impedir a pessoa e a família de se deixarem arrastar para o abismo onde tende a lançá-las a socialização de todas as coisas, ao fim da qual a terrível imagem do Leviatã tornar-se-ia uma horrível realidade.
É com a maior energia que a Igreja travará esta batalha em que estão em jogo valores supremos: a dignidade do homem e a salvação eterna das almas.
«É assim que se explica — continua o Papa — a especial insistência da doutrina social católica sobre o direito de propriedade privada. É a razão profunda pela qual os Papas das Encíclicas sociais e Nós mesmo Nos recusamos a deduzir, direta ou indiretamente, da natureza do contrato de trabalho, o direito de co-propriedade do trabalhador ao capital e, portanto, seu direito de codireção. Importa negar esse direito, pois atrás dele se apresenta este outro grande problema. O direito do indivíduo e da família à propriedade deriva imediatamente da natureza da pessoa, é um direito ligado à dignidade da pessoa humana, e que comporta por certo obrigações sociais, mas este direito não é só uma função social.
«Timbramos em vos exortar, a vós e a todos os católicos (grifo nosso), a seguir fielmente a linha nítida da doutrina social católica, desde o começo das novas lutas, sem desviar nem à direita nem à esquerda. Um desvio de apenas alguns graus poderia a princípio parecer sem importância. Mas, à medida que se prolongasse, este desvio provocaria um afastamento perigoso do caminho reto, e graves consequências» («Catolicismo», n° 24, de dezembro de 1952).
Vê o Exmo. Sr. Arcebispo de Goiânia que não nos «perdemos em especulações minuciosas e unilaterais» (p. 81), quando nos preocupamos com a infiltração socialista em muitos projetos de reforma agrária. Longe disso, obedecemos à diretriz de Pio XII.
O esquecimento dessa diretriz pode levar, e tem levado, não a solucionar a «realidade gritante do pauperismo», de que fala o artigo à p. 80, mas a agravá-la ainda mais com planos que, sacrificando o direito de propriedade — sobre o qual há «uma especial insistência da doutrina social católica» (alocução citada) — menosprezam a lei divina, base da felicidade de todos os povos.
É por minimizar advertências da Santa Sé como a que aqui transcrevemos, que na Hungria e em outros países em condições semelhantes há, católicos que trabalham na construção da cidade socialista, cujos elementos econômicos e sociais eles acham dignos de aprovação. Não desejamos que tal atitude se difunda entre os brasileiros. Seria uma, desobediência frontal ao que preceitua Pio XI na Encíclica «Divini Redemptoris»: «Velai, Veneráveis Irmãos, por que não se deixem iludir os fiéis. Intrinsecamente mau é o comunismo, e não se pode admitir em campo algum (grifo nosso) a colaboração recíproca por parte de quem quer que pretenda salvar a civilização cristã».
Não fechamos, portanto, os olhos às misérias que infelizmente infestam nossos campos. Desejamos ardentemente que se lhes dê remédio, e por isso mesmo, no intuito de contribuir para que as medidas destinadas a debelá-las não sejam contraproducentes, é que escrevemos «Reforma Agrária — Questão de Consciência». De que atingimos nossa finalidade, temos um testemunho altamente significativo não só na enorme procura do livro, já agora em 3ª edição, mas também na maneira como o recebeu a imprensa comunistizante. Não visse ela em nossa obra um empecilho a seus planos, e não teria surgido enraivecida, com os apodos mais soezes contra os autores.
Acreditamos que se o Exmo. Revmo. Sr. Arcebispo de Goiânia nos tivesse lido mais atentamente, não nos julgaria perdidos em «especulações minuciosas e unilaterais».
As últimas considerações de D. Fernando Gomes a respeito de nosso trabalho constituem uma apreciação da Revisão Agrária paulista, a qual S. Excia. não acha «incompatível com a doutrina da Igreja» (p. 82).
Não acha incompatível. É o lado negativo. Porque não se interessa o ilustre articulista pelo lado positivo? Os Papas, especialmente Pio XI, traçam normas para se obter uma verdadeira paz social. Recomendam, por exemplo, que os indivíduos se agrupem, «não segundo a sua categoria no mercado do trabalho, mas segundo as funções sociais que desempenham» («Quadragesimo Anno»). Dizem que a base de toda restauração da ordem econômica é a reforma dos costumes, sem a qual seriam inúteis todos os esforços nesse sentido. O Exmo. Sr. D. Fernando Gomes não recorda estes pontos fundamentais da doutrina social católica nem sequer para lamentar que eles estejam ausentes da lei de Revisão Agrária paulista. Dirá talvez alguém que esta matéria não compete ao Poder público. Não pensa assim Leão XIII que, ao fixar os deveres do Estado na questão social, ensina que dele dependem as providências de ordem geral das quais brote a prosperidade tanto pública como particular, e acrescenta que são os bons costumes que tornam uma nação prospera («Rerum Novarum»). Podemos, pois, dizer que falha em seu papel o Estado quando, ao tomar medidas que visam o bem-estar da população rural, esquece as bases da verdadeira prosperidade. Ao menos, não estará ele então agindo inteiramente de acordo com a doutrina católica. Lamentamos, portanto, que o Exmo. Sr. Arcebispo de Goiânia a nós nos peça um programa positivo em questões em que não somos técnicos, e se contente com o lado negativo da Revisão Agrária paulista, considerada sob o ponto de vista católico. Porque esses dois pesos e essas duas medidas? Não compreendemos.
Demais, é mesmo certo que a Revisão Agrária do Governo de São Paulo não é incompatível com a doutrina da Igreja?
Diz o artigo em apreço que ela não nega nem mutila o direito de propriedade; protege a função social da propriedade; em matéria de desapropriação obedece às exigências da doutrina católica; e, por fim, atende às conveniências do bem comum.
Em suplemento à 3ª edição de «Reforma Agrária — Questão de Consciência», a ser dada proximamente a lume, os autores examinam longamente o projeto, o substitutivo e a lei de Revisão Agrária do Estado de São Paulo. Não é possível reproduzir agora todas as considerações que ali fizemos. Vamos salientar apenas um ou outro ponto, para que se veja que, ainda sob o aspecto meramente econômico, a Revisão Agrária paulista não respeitou os ensinamentos pontifícios.
Diz o Exmo. Sr. D. Fernando Gomes que o Estado «só poderá desapropriar essas terras (as inaproveitadas) em casos especiais, no sentido de não poder fazê-lo arbitrariamente» (p. 82).
Concordamos com a doutrina aqui exposta por S. Excia. Apenas, não vemos que a ela se atenha a lei paulista.
De fato, o que esta estabelece (art. 2, II) é que basta a terra estar inaproveitada para ser passível de desapropriação. Nos casos em que o não aproveitamento da terra constituísse um dano para o bem comum, estaríamos de acordo com o princípio de que caberia a desapropriação, desde que o dono se recusasse a aproveitar sua área, atendendo à exigência do bem comum. A lei, porém, vai muito mais longe. Prevê, para justificar a desapropriação, o simples fato do não aproveitamento de terras que se prestem à exploração agrícola.
Que é isto senão condicionar a propriedade da terra ao seu uso? Ora, Pio XI, na «Quadragesimo Anno», condena precisamente que se subordine a propriedade da terra ao uso da mesma. Citemos todo o trecho, porque é, nesta matéria, muito elucidativo: «E, a fim de pôr termo às controvérsias que acerca do domínio e deveres a ele inerentes começam a agitar-se, note-se em primeiro lugar o fundamento assente por Leão XIII, de que o direito de propriedade é distinto do seu uso (Enc. Rerum Novarum). Com efeito, a chamada justiça comutativa obriga a conservar inviolável a divisão dos bens e a não invadir o direito alheio, excedendo os limites do próprio domínio; mas que os proprietários não usem senão honestamente do que é seu, é da alçada, não da justiça, mas de outras virtudes, cujo cumprimento não pode urgir-se por vias jurídicas (Enc. Rerum Novarum). Por isso, sem razão afirmam alguns que o domínio e o seu uso são uma e mesma coisa; e muito mais ainda é alheio à verdade dizer que se extingue ou se perde o direito de propriedade com o não uso ou abuso dele».
Além disso, o ônus tributário imposto pela lei Carvalho Pinto é, em certos casos, excessivo. Para algumas propriedades o imposto anual chega a 12% da respectiva avaliação (para incidir nessa taxação basta que uma fazenda de mais de 5.000 hectares seja explorada mediante arrendamento em mais de 50% de sua arca). Isso constitui um cerceamento do direito de propriedade, censurado por Leão XIII e Pio XI como se pode ver deste trecho da «Quadragesimo Anno»: «Eis porque o sábio Pontífice (Leão XIII) declarava também que o Estado não tem direito de esgotar a propriedade particular com excessivas contribuições: Não é das leis humanas, mas da natureza que dimana o direito de propriedade individual; a autoridade pública não a pode, portanto, abolir; o que pode é moderar-lhe o uso e harmonizá-lo com o bem comum (Enc. Rerum Novarum)».
Outras reservas que fazemos à lei paulista — porque ela combate o arrendamento, reduz a situação precária o pequeno proprietário, consagra o intervencionismo do Estado, etc. — acham-se no suplemento da 3ª edição de nossa obra. Não é possível transcrevê-las aqui: seria alongar demais este artigo. As que aduzimos bastam para não se poder afirmar que a lei agrária paulista nada tem de incompatível com a doutrina da Igreja.
Escrevemos este artigo apenas para elucidar uma questão de alcance social e religioso imenso. Queremos, pois, afirmar que ao escrevê-lo conservamos todo o respeito, veneração e estima para com o Exmo. Sr. Arcebispo de Goiânia, D. Fernando Gomes, sentimentos que, em muitas oportunidades, tivemos o prazer de manifestar-lhe.
«SE NOS CURVARMOS EM SILÊNCIO, EM SILÊNCIO NOS MATARÃO»
B. A. Santamaria
A primeira semana de março assistiu a Conferência dos primeiros-ministros da "Commonwealth", em Londres. O premier cuja participação suscitou maior controvérsia foi Mr. Verwoerd, da África do Sul. O direito daquele país de permanecer na "Commonwealth" foi abertamente contestado pelos três jornais que representam as principais correntes políticas da Inglaterra: o "Guardian", liberal, o "Daily Mail", conservador, e o "Daily Herald", trabalhista.
Esses jornais sugeriram unanimemente que os primeiros-ministros redigissem uma declaração de direitos do homem, cuja aceitação seria condição para pertencer à "Commonwealth". Presumivelmente esses princípios privariam da filiação a esta última o país que praticasse a discriminação racial, como é o caso da África do Sul.
Não pretendo discutir essa proposta. Tudo o que peço é a mais rara das virtudes — a coerência. Se a perseguição racial deve privar a África do Sul da filiação à "Commonwealth", então a perseguição religiosa deve privar dela o Ceilão.
Outra personalidade importante que tomou parte na Conferência de Londres foi a notável mulher-primeiroministro, Mrs. Bandaranaike.
É deselegante, concedo, criticar publicamente uma mulher. Por isso não criticarei a Sra. Bandaranaike, mesmo porque ela não é de maior importância. Seu valor político reside simplesmente no fato de ser ela testa de ferro de um grupo de poderosos políticos cingaleses, que constituem a verdadeira força do regime, e que são a um tempo acerbamente anticristãos e acerbamente anti-europeus.
Dele fazem parte o sobrinho da chefe do governo, Felix Bandaranaike, o Dr. Perera e Peter Kenneman, líder comunista formado em Oxford. Ligada a este grupo existe uma vigorosa facção de monges budistas militantes, que organizam manifestações de massa para fazer pressão sobre o governo e levá-lo a atacar o Cristianismo. Os monges são habilmente manobrados pelos comunistas, os quais julgam que, depois de usarem os budistas para abater o Cristianismo, terá chegado o momento de destruir o budismo, como estão fazendo os chineses no Tibet.
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Examinemos a orientação que vem tomando a legislação do Ceilão nos últimos meses.
Inicialmente, todas as escolas confessionais foram confiscadas pelo Estado, sem indenização, no dia 1° de janeiro deste ano. Foram atingidos os estabelecimentos anglicanos, holandeses reformados, metodistas, presbiterianos, muçulmanos, bem como os católicos.
"É doloroso que a opinião católica internacional esteja adormecida quando a Igreja, em determinado país, é atacada, — ao passo que os comunistas sabem mobilizar campanhas internacionais em defesa de seus interesses". Com estas palavras termina a carta em que um líder católico australiano, Sr. B. A. Santamaria, pede que "Catolicismo" transmita ao Brasil católico o apelo veemente que ele lançou há pouco, através da televisão de Melbourne, a seus concidadãos.
O Sr. B. A. Santamaria, que já ocupou postos de grande responsabilidade em organizações de apostolado, dirige presentemente o "National Civic Council", entidade que se propõe imprimir orientação verdadeiramente cristã à vida política, e dar combate sem tréguas à infiltração socializante e comunista que se verifica no país.
O apelo que ele faz, entretanto, não diz respeito à Austrália, onde, aliás, teve larga repercussão, mas sim ao drama da Igreja perseguida no Ceilão. Merece todo o apoio desta folha sua proposta de que os católicos de cada país dirijam às representações diplomáticas cingalesas cartas de protesto contra os vexames e perseguições impostos aos filhos da Igreja naquela nação, evangelizada já no século XVI, e cujo solo foi regado pelo sangue de tantos mártires.
Os pais cristãos, aos milhares, ocuparam suas escolas para impedir a espoliação decretada. Até barricadas foram erguidas para protegê-las.
Se os pais permanecessem nas escolas, o governo teria de recorrer ao envio de tropas para expulsá-los. A experiência da província hindu de Kerala mostrava que seria improvável que o governo do Ceilão tomasse tal medida sem provocar reações indesejadas.
Os pais cristãos puderam, assim, fazer suas manifestações de protesto. Houve então quem os aconselhasse a deixar as escolas e confiar nas garantias verbais do governo. Creio que tal conselho estava desastrosamente equivocado. Havia-se chegado a um ponto que não admitia mais recuos. Uma vez entregue esta posição, o inimigo do Cristianismo percebeu que poderia levar tudo de roldão.
As leis e, igualmente importantes, os atos administrativos que se sucederam revelaram claramente a fisionomia da conspiração urdida para destruir o Cristianismo até as raízes.
Duas series mantidas por escolas privadas tiveram permissão de permanecer abertas, como escolas pagas. Mas logo após foram informadas de que para continuar não poderiam cobrar taxas.
Depois foi posta em vigor uma lei pela qual toda igreja ou lugar de culto deveria ser registrada. Isto foi o prelúdio de um sistema de licenças, através do qual um governo anticristão pode impedir a construção de igrejas cristãs.
Em prosseguimento foi publicado um decreto facultando a qualquer grupo de cidadãos apresentar queixa contra toda igreja ou monumento religioso que julgassem ofensivo às suas suscetibilidades. O que se destina, evidentemente, a estimular pedidos dos anticristãos budistas e outros, no sentido de suprimir as igrejas cristãs existentes.
Por fim, alguns missionários europeus já foram avisados de que seus vistos não serão prorrogados, de modo que devem retirar-se do Ceilão. Como alternativa, outros serão onerados com pesadas taxas de registro, o que constitui grosseira discriminação, para forçá-los a sair do país.
A cada artigo desta legislação é dada uma justificação em separado, aparentemente plausível. Mas o esquema global tem um só propósito: a destruição do Cristianismo.
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Se os primeiros-ministros da "Commonwealth" elaborarem uma nova declaração dos direitos do homem, para punir a perseguição racial, o que irão dizer acerca da perseguição religiosa?
Haverá uma lei para a África dos Sul e outra lei para o Ceilão?
Tenho apenas dois comentários a fazer sobre a situação do Ceilão. Primeiro: sob o impacto da perseguição há ali vozes católicas que afirmam ser melhor ceder antes da tempestade, do que traçar um limite e combater. Afinal de contas, ainda é possível celebrar a Missa e receber os Sacramentos. Foi justamente esta corrente que persuadiu os pais a evacuarem as escolas quando chegou o momento crítico.
Tal conselho é dado por certos católicos em cada país em que o Cristianismo é atacado, inclusive na Austrália. É formulado por pessoas geralmente bem intencionadas, por vezes até santamente intencionadas. Mas, por toda parte onde este conselho é seguido, a Igreja é inevitavelmente destruída. Porque há um certo ponto em que uma linha deve ser traçada. E deve ser traçada quando a Igreja ainda está suficientemente forte para resistir.
Lembro-me do grande Arcebispo de Nankim, Mons. Paulo Yu-Pin, a dizer-me como foi dado aquele mesmo conselho aos católicos da China. Sua resposta: "Se nos curvarmos em silêncio, em silêncio nos matarão".
Na China as recomendações de apaziguamento prevaleceram sobre a voz do Arcebispo Yu-Pin. Entretanto, não salvaram a Igreja.
O segundo e último ponto: os cristãos do Ceilão estão desamparados. Mas nós não estamos. A opinião internacional ainda tem peso. Amanhã seguirá minha carta ao Alto Comissário do Ceilão em Camberra, protestando contra a violação dos direitos básicos do homem pelo seu governo. O que fareis vós outros? Protestareis também? Ou condescendereis?
N. R. — A Embaixada do Ceilão tem sede à Rua Viveiros de Castro, 141, Rio.
NOVA ET VETERA
Cristandade hispânica de aquém-mar
J. de Azeredo Santos
Depois de mais de dois séculos de corrupção liberal, a América Latina começa a colher os mais amargos frutos dessa apostasia, com o aparecimento da primeira república socialista no continente, justamente nas Antilhas, onde aportaram as caravelas do descobrimento.
Nesta hora triste em que a Santa Igreja se cobre de luto pela perseguição que sofre em Cuba, chega-nos às mãos um livro muito atraente e de palpitante atualidade: «Une Chrétienté d'Outremer» (Nouvelles Editions Latines, 1, rue Palatine — Paris), de autoria do Revmo. Padre Jean Terradas, C. P. C. R., antigo Geral da benemérita Congregação dos Cooperadores Paroquiais de Cristo Rei. S. Revma. — que renunciou ao cargo por doente, mas escrevendo esse livro presta mais um ótimo serviço à Igreja — visa a «demonstrar simplesmente que não é uma quimera conceber uma ordem de coisas em que Cristo seja plenamente rei das inteligências, dos corações, das vontades, das instituições, da sociedade como tal». De fato, demonstra-o o autor de modo cabal, com lógica e erudição invulgar, essa ordem de coisas foi realizada nas colônias da Espanha no Novo Mundo.
O QUE SE DEVE PROMOVER PRINCIPALMENTE
Estamos diante de uma das páginas mais deformadas da História dos tempos modernos. Com efeito, não somente os inimigos da Igreja, mas os próprios católicos eivados de liberalismo apresentam aos olhos dos incautos uma verdadeira caricatura dessa obra colonizadora da Espanha católica nas Américas.
A mentalidade liberal dos dias que correm é difícil admitir o que aconteceu após a descoberta do continente americano por Colombo. Prescrevia o Rei Fernando o Católico, a Diogo Colombo, irmão do descobridor: «Agora, no início, deve-se ter grande cuidado em ordenar as coisas de modo a que sejam mais perfeitamente instruídos os índios dessa ilha nas coisas de nossa santa Fé católica: dado que esse é o fundamento sobre o qual colocamos a conquista dessas regiões, é o que se deve promover principalmente (...)» (p. 68).
Para realizar esse programa de colonização, não ocorrerá à católica Espanha a ideia de separar o que Deus uniu, o espiritual e o temporal, a Igreja e a sociedade civil, porque ela sabe muito bem que é dessa união que jorra a verdadeira civilização, a verdadeira grandeza de um povo. «A união estreita da Igreja e do Estado só foi possível porque um único e mesmo fim, em última análise, era procurado: criar uma ordem cristã de coisas. E, como se concebe, havia uma necessária e justa subordinação do humano ao divino, do temporal ao espiritual. O próprio Padroado, por paradoxal que possa parecer à primeira vista, havia sido concedido para esse fim. Confiando ao temporal, oficialmente, uma missão assim elevada, o Padroado não fazia mais do que consagrar sua dependência com relação ao espiritual (...). De acordo com a doutrina de Santo Agostinho, o Estado se reconhece feudatário da finalidade transcendente da Igreja: ele não se considera como um fim em si, mas como um órgão intermediário em vista de finalidades superiores» (p. 110).
A 26 de julho de 1508, o Papa Julio II, pelo Breve «Universalis Ecclesiae Regimini», considerando que os Reis Católicos haviam levantado o estandarte salvador da Cruz em regiões desconhecidas, concedeu aos Soberanos espanhóis direito do Padroado, permitindo-lhes edificar catedrais, igrejas, eremitérios, mosteiros e lugares de piedade, e apresentar os Bispos, os Párocos, os beneficiários. Tal estado de coisas, espantoso para nosso mundo liberal, duraria trezentos anos. E é fato incontestável que nos dois primeiros séculos o regime do Padroado deu esplêndidos resultados, como atesta o extraordinário surto da Religião católica em toda a América Latina.
Quando o Soberano Pontífice Alexandre VI, pela Bula «Inter Caetera» de 3 de maio de 1493, reconheceu aos Reis da Espanha seus direitos de conquista sobre o Novo Mundo, ele lhes impôs a evangelização do modo mais expresso: «Nós vos ordenamos, em virtude da santa obediência (...) que destineis às terras e ilhas mencionadas homens honestos e tementes a Deus, doutos, instruídos e experimentados para doutrinar os naturais, pondo nisso toda a diligência devida» (p. 68).
OBRA COMUM DO SACERDÓCIO E DO IMPÉRIO,
Assim é que, um século após a descoberta, toda a América espanhola chegava ao seu esplendor máximo, formando um império que abrangia as Antilhas, o México, a Venezuela, a Colômbia, o Peru, o Equador, o Chile, o Prata e grande parte do que é hoje a América do Norte, extensa área que compreendia o Novo México, o Texas, a Flórida, a Califórnia. Estava desse modo criada pela Espanha nas Américas uma civilização colonial nunca igualada em todo o mundo.
Mas Sacerdócio e Império somente andam em harmonia quando ambos são dirigidos pelo mesmo ideal superior, que é a maior gloria de Deus tanto no campo espiritual quanto no temporal. Solapada a sociedade civil pelos germes da Revolução, o Padroado se transforma em uma temível arma nas mãos dos agentes das lojas, que se servem dele para, através dos maiores abusos, obstar os esforços da Santa Igreja pela salvação das almas.
A partir do século XVIII se acentua a decadência. Tanto na Espanha metropolitana quanto nas colônias do Novo Mundo a ação das sociedades secretas se faz sentir por toda parte, instilando o veneno do liberalismo naquela esplêndida estrutura, para miná-la e derruí-la no decorrer do século XIX.
Observa muito bem o autor que os males surgidos nas colônias espanholas das Américas não eram o fruto, a consequência lógica das doutrinas ou das instituições que formavam o seu arcabouço, mas pelo contrario, a radical contradição destas. Exatamente o oposto do que se passa nas sociedades revolucionarias modernas, onde o mal e o erro são o coroamento lógico das doutrinas e das instituições, e onde o escasso bem e a escassa verdade surgem como contradição e incoerência.
COMO ALCANÇAR A SALVAÇÃO
A derrocada do império colonial espanhol da América se explica assim pela apostasia do Ocidente cristão, sobretudo pela sedução do ideal libertário emanado da Revolução Francesa. «Essa ideologia liberal será verdadeiramente um mal? Será verdadeiramente um pecado?» — indaga o autor, para responder: « O magistério romano a denunciou mil vezes como tal. A esse pecado, Rademacher reconhece uma virulência e um caráter especiais: O fato da separação da Religião e da vida é uma espécie de segundo pecado original, contraído depois da Redenção e mais funesto que o primeiro sob dois aspectos. Antes de tudo, porque é uma regressão, e em segundo lugar porque é uma recaída de toda a sociedade» (p. 161).
Portanto, só renegando esse passado liberal e revolucionário é que a América espanhola poderá alcançar a salvação.
E é importante frisar que o erro liberal é considerado no livro em sua essência, como qualquer coisa de inerente à Revolução e que se acha no âmago do próprio socialismo, etapa final visada por essa obra de apostasia organizada que se propõe edificar a cidade do Anticristo sobre as ruínas da civilização católica.
Nestes dias sombrios, em que a América parece esquecer e por vezes até repudiar suas gloriosas origens, voltemos nossos olhos para a Virgem do Pilar e façamo-La nossa intercessora junto ao seu Divino Filho, para que apresse o resgate da humanidade sofredora, presa nas cadeias dessa Revolução gerada na antecâmara do inferno. Que a Mãe de Deus nos alcance as graças necessárias para que possamos restaurar em solo americano aquela civilização cristã que o excelente e oportuníssimo livro do Revmo. Padre Jean Terradas, C. P. C. R., mostra ter florescido aqui por obra da imortal Espanha dos heróis e dos Santos.