P.04-05

Questão de Consciência

(continuação)

considerações preliminares, e parodiando a São Francisco de Sales, cabe, aqui, a advertência: reparai aqueles homens que vos parecem muito caridosos e afirmativos. Contradizei-os em qualquer dos pontos a que eles, erroneamente, se aferram, e vereis qual é a afirmação e a caridade que eles amam...

Nosso Senhor foi ainda mais explícito no Evangelho, quando disse: «Por fora são cordeiros, mas por dentro são lobos vorazes».

Tudo anunciado pelo Profeta Davi: «Os meus inimigos falavam comigo palavras de paz, mas, quando irados, procuravam perder-me. Tudo isto é olhado por Vós, Senhor».

1a acusação — comunismo e capitalismo

Agora examinemos o valor das acusações contra «Reforma Agrária — Questão de Consciência». São muitas, mas podem ser resumidas em três.

la Acusação : — É um livro unilateral, porque, acusando o socialismo e o comunismo, não é muito explicito contra o capitalismo.

1a Resposta: — Unilateral quer dizer: que considera somente um lado, um aspecto. No caso do livro, como dizem os seus próprios acusadores, o defeito consiste em estudar somente o reformismo comunista. Podemos acrescentar: o defeito consiste em preferir uma especialidade a outra.

Ora, neste século de tantas especialidades, é mostrar-se bem pouco moderno (e bem pouco antigo...) condenar um livro só porque o seu Autor ou os seus Autores limitam-se a determinado assunto.

Neste caso, por que não condenar também os outros especialistas? Em Direito, Medicina, Física, Administração, Línguas, Música, etc., por que não condená-los, se a vida, além desses aspectos, tem muitos outros de que aqueles especialistas não se ocupam?

2a Resposta: — Não é verdade que «Reforma Agrária — Questão de Consciência» não seja explicito contra o mau capitalismo. É explicito, e mais erudito do que algumas acusações que não fazem a devida distinção entre capitalismo e capitalismo.

Vamos citar o livro: — «Os extremos se tocam. Com alguma frequência, estes mesmos resultados nocivos (do neopaganismo) são produzidos, não pelas despesas excessivas, mas pelo exagerado desejo de acumular riquezas sobre riquezas. Este desejo originou-se, por vezes, da infiltração da mentalidade capitalista — tomada aqui em seu mau sentido uma palavra que também comporta um sentido bom — no campo. Abstraindo de todos os demais aspectos da vida, o fazendeiro «capitalista» só via como fim desta seu trabalho e seu próprio enriquecimento, de onde considerar o empregado como máquina da qual se deve tirar o máximo, dando-lhe o mínimo» (p. 22).

As citações poderiam multiplicar-se, não fora a angústia das colunas de um jornal. Mas nessa única citação que fiz, encontramos aquilo que os negadores do livro afirmam que ali não se encontra: a condenação explícita do mau capitalismo.

2a acusação — desprezo dos pobres

2aAcusação: — O livro dá a impressão de que os seus Autores só se preocupam com os ricos, desprezando os pobres.

Resposta: — Também não é verdade. Os Autores, como vimos, chegam a sugerir quase um projeto de lei, com artigos inteiramente dedicados aos pobres:

Art. 5.° — «Concessão de terras devolutas aos pequenos agricultores, sempre que por este meio possam elas ser convenientemente exploradas».

Art. 6.° — «Fomento de formas de contrato de trabalho que possibilitem um aproveitamento intenso da terra e ao mesmo tempo beneficiem o assalariado, permitindo-lhe uma situação econômica mais favorável e a constituição paulatina de um patrimônio. Por exemplo: a parceria, as empreitadas».

Art. 7.° — «Crédito especial para a melhoria das moradias dos colonos e medidas congêneres».

Só isto? Não. Há o resto do livro, que não cabe num simples artigo. Mas se os nossos legisladores e homens de governo levassem somente isto em consideração, para que mais, em matéria de benefícios materiais ao trabalhador do campo?

3a acusação — causas da desordem rural

3a Acusação: — Os Autores falam de tal modo, que parece dizerem que o socialismo e o comunismo são as únicas causas da desordem rural.

Resposta: — Nem esta acusação é verdadeira. Em apenas seis páginas, para não falarmos no longo curso de todo o livro, são enumeradas vinte causas da desordem rural: a decadência religiosa, a falta de instrução, o salário de fome, o desinteresse por parte da autoridade pública, o desinteresse por parte do mesmo trabalhador, a «desruralização» dos proprietários agrícolas, ou permanência deles mais na cidade do que no campo, a «desruralização» dos trabalhadores braçais, o alcoolismo, o jogo, a prostituição, a prática das uniões ilícitas, a habitação sem conforto e sem salubridade, o espiritismo, as outras superstições, a falta de assistência médica, o esbanjamento inconsiderado com a aquisição de objetos supérfluos, a indolência, o liberalismo, o neopaganismo, «que não poupou nenhuma classe social», e — mais uma vez, atenção, senhores! — o capitalismo (pp. 21 a 26).

De todas estas causas, como devia ser num livro que tem Bispos e leigos católicos como autores, a apontada como mais profunda é a falta de vida religiosa, pois, como dizem eles: «De onde sai Cristo, com Ele sai a ordem. E de onde sai a ordem, ali entra a Revolução».

NEM "DIALOGO", NEM CARIDADE

Como vêem os leitores, nenhuma daquelas acusações é verdade. Nenhuma é atitude positiva. Nenhuma é dialogo. Nenhuma é caridade. E eu não entendo como escritores católicos se lançam contra um livro desses.

Só se é Deus que, querendo punir a nossa desunião e o nosso descaso para com as advertências da Igreja sobre o comunismo ateu, está deixando que os que mais deviam enxergar não enxerguem. Já se disse que quando Deus quer castigar os homens, entrega-os, primeiro, à demência.


Irmandade de Nossa Senhora dos Pampas

Fernando Furquim de Almeida

Na tremenda crise em que se debate o mundo moderno, muito se fala nos direitos dos trabalhadores, nos deveres dos patrões e dos proprietários, na necessidade de reformas de base, etc., e se propõem numerosos planos unilaterais para resolver certas questões de pormenor, às vezes importantes, mas cuja solução serve apenas de paliativo, porque não se procura enfrentar as verdadeiras causas dos males de que sofremos. É curioso notar que nenhum católico dúvida de que essa crise é, antes de mais nada, uma crise moral. Quando se trata, porém, de combatê-la, com frequência tudo se passa como se ela fosse exclusivamente econômica; e o que é pior é que as soluções aventadas, além de considerarem apenas esse aspecto da questão, apresentam muitas vezes a nota típica dos compromissos com certas ideologias políticas, bem como não revelam desejo real de procurar o bem da coletividade.

O trabalhador do campo, em particular, foi até pouco tempo completamente esquecido pelos teóricos da cidade. Agora dele se lembram, o mais das vezes, para induzi-lo à revolta contra os patrões ou para usá-lo como pretexto para reformas agrárias socialistas e anticristãs, que virão tumultuar ainda mais a vida laboriosa do nosso hinterland, já tão agitado pelos problemas que a invasão do espírito materialista e revolucionário das grandes cidades nele vai introduzindo.

Foi, pois, com verdadeira satisfação que tivemos conhecimento da existência, na Argentina, de uma Irmandade que combate o mal pela raiz, procurando recristianizar a vida rural de modo que patrões e trabalhadores das estâncias se tornem "irmãos em Cristo por Maria que desejam ser católicos integrais". É uma página importante da história das atividades católicas que assim se está escrevendo naquela nação irmã, o que nos leva a suspender hoje a narrativa dos feitos do passado para dar notícia aos nossos leitores dessa oportuna e providencial iniciativa.

Trata-se da "Hermandad de Nuestra Señora de los Pampas", que três estancieiros, D. Luis F. Gallardo, D. Manoel Garcia Verde e D. Pablo Hary, com o beneplácito e as bênçãos da Hierarquia, fundaram no dia 25 de março de 1942, festa da Anunciação da Santíssima Virgem Maria. A idéia era original, e mesmo a invocação "Nuestra Señora de los Pampas" era nova. A respectiva imagem foi inteiramente ideada pelos fundadores, e representa a Mãe de Deus com o Divino Infante nos braços, cercada de motivos alusivos ao campo argentino.

Segundo a prudência habitual da Igreja, a Irmandade foi aprovada "ad experimentum". Mas os numerosos elogios que tem recebido do Episcopado argentino e o bem que vem realizando são indícios seguros de seu cunho providencial, o que faz esperar que em futuro próximo a sua difusão por todas as estâncias lhe permita atingir plenamente o seu objetivo de cristianizar e santificar o campo.

Os estatutos da Irmandade expõem o ideal que deve guiar os confrades e os meios a serem usados para realizá-lo. Revelam em seus autores uma fé profunda e uma piedade marial entranhada. Não podendo reproduzi-los na íntegra, queremos pelo menos transcrever alguns trechos que nos parecem essenciais para o conhecimento do espírito que os anima.

"Enquanto outros — lê-se no documento — exercem nas cidades ou nas inteligências seu apostolado fecundo e heroico, nós só nos propomos melhorar nossas pobres almas e tratar de fazer de nossas propriedades rurais, fortalezas da Fé. Queremos cristianizar esses pampas — até ontem império do Maligno e da idolatria — cimentando lares onde Cristo seja tudo".

E mais adiante: "Sentimos a necessidade de nos constituirmos em Irmandade. Com isso não procuramos senão estruturar cristãmente a labuta diária de nossas vidas, de maneira que seja possível espiritualizar a tarefa de ganhar o pão de cada dia. Cada esforço, cada gesto dos que se prodigalizam em torno de nós, movidos exclusivamente pelo afã do dinheiro, esteja em nós unido a um sentido cristão que torne fecundo para nossas almas aquilo que nada aproveita a quem age apenas pela ânsia das riquezas. Pois, como diz Nosso Senhor (Luc. 12, 34), "onde está o teu tesouro, aí está o teu coração". E o nosso tesouro não pode nem deve estar senão no fim para que fomos criados. Ou, como nos indica São Bento, "para que em tudo seja Deus glorificado". Essa deve ser literalmente nossa santa obsessão".

Esse programa de vida, tão simplesmente exposto, exige uma completa abnegação e não pode ser executado senão com o auxílio de Nossa Senhora, medianeira das graças que suscitam e guiam todas as obras verdadeiramente católicas. É o que exprimem muito bem os estatutos: "Unimo-nos em Maria Santíssima para sermos mais de Cristo. Deus quis Se dar por Maria e sua vontade é que a Ele cheguemos por sua Mãe Imaculada. Ela é o Aqueduto da Graça, e sabemos que "Mariam sequens non devias", como nos diz São Bernardo. Sendo Ela a medianeira entre Cristo e os homens, é natural que Maria Santíssima seja a Senhora de nossa Irmandade".

O documento registra também as obrigações de piedade dos confrades. Além da imagem de "Nuestra Señora de los Pampas", terão eles em seus escritórios, bem visível a quantos os procurem, o Crucifixo, "não só como profissão de fé, mas também em reparação por aqueles que se envergonham de confessá-lo na vida pública e relegam à intimidade a imagem do Supremo Rei e Senhor". Diariamente, ao meio dia, aos pés de Nossa Senhora dos Pampas, rezarão uma Ave Maria, um Gloria e a invocação: "Que o auxílio de Deus permaneça para sempre conosco e com nossos irmãos ausentes".

A oração do "Angelus" — o antigo costume de nossos fazendeiros, de rezarem-na com seus trabalhadores quando terminavam a tarefa diária, está hoje quase totalmente abandonado — é recomendada aos membros da Irmandade. O Santo Rosário é objeto de particular veneração. Os confrades devem rezá-lo diariamente, se possível em comum, tê-lo sempre consigo e lembrar-se de que, "assim como nossos irmãos, os monges, têm em alto apreço a recitação dos Salmos, assim faremos nós com o Saltério mariano... Que o Santo Rosário acompanhe os nossos despojos depois da morte".

É impossível darmos uma ideia completa do que seja a Irmandade. A leitura dos seus estatutos deixa entrever a renovação completa a que a propagação dela poderá conduzir as estâncias argentinas. As relações entre proprietários e trabalhadores do campo, baseadas na justiça e na caridade por efeito da crescente influência da Igreja, se suavizarão, e unidos todos pelo ideal de servir a Nosso Senhor Jesus Cristo, único ideal capaz de cimentar as relações humanas, saberão resolver pacificamente os eventuais conflitos que surgirem entre eles. Aliás, os autores dos estatutos focalizaram explícita e cuidadosamente os problemas principais: as obrigações dos patrões e dos empregados, o modo de aqueles tratarem a estes, os direitos de uns e outros, nada falta, enfim, nesse verdadeiro tratado de vida social no campo. Fazemos votos de que a Irmandade se propague rapidamente e continue desenvolvendo seu apostolado fecundo para que na vida rural argentina se observem fielmente os ensinamentos da Santa Igreja Católica.


NOVA ET VETERA

Dois livros de grande atualidade

Gonçalves Monteiro

JOSÉ PEQUITO REBELO — "O Desastre das Reformas Agrárias" (Coimbra Editora Ltda., Coimbra, 1931) e "As Falsas Idéias Claras em Economia Agrária" (Tipografia Portuguesa Ltda., Lisboa, 1946, 2ª ed.).

Pode parecer algo estranho que se estejam registrando nestas notas dois livros aparecidos há 15 e 30 anos atrás. Mas neste momento, em que tanto se fala em «Reforma Agrária» — e, frequentemente, de maneira tão dogmática quanto superficial — é do maior interesse a leitura desses dois trabalhos escritos com profundidade por um economista e sociólogo, intelectual dos mais notáveis de Portugal hodierno, que é também lavrador, o que, tudo, lhe dá incomum e redobrada autoridade.

«O Desastre das Reformas Agrárias» é contemporâneo da primeira onda agro-reformista do século, que surgiu após a Grande Guerra de 1914-1918. Nele, o autor começa estudando uma tentativa de «Reforma Agrária» em Portugal — aliás fracassada — cujos erros torna flagrantes, mostrando sua injustiça, seu estatismo, sua ineficácia e até sua contraproducência.

Tendo comparecido, como representante da agricultura portuguesa, aos Congressos Internacionais de Agricultura de Varsóvia e de Bucareste, expõe, a seguir, um trabalho, que ali apresentou, sobre a «Doutrina Ocidental da Reforma Agrária», e resume as teses de professores e agentes governamentais da Romênia e da Tcheco-Eslováquia sobre as reformas levadas a efeito naqueles países. Discute-as cerradamente, fazendo ver que têm origem e finalidades políticas, as quais se procura camuflar com larga e inconsistente motivação de ordem econômica. Os desastrosos efeitos de tais reformas, com redução sensível do rendimento por unidade de superfície e da qualidade da produção em geral, são confessados nessas teses, embora se pretenda que o tempo os remediará. Não foi possível verificar o custo dessas reformas, pois os órgãos delas encarregados, sempre prometendo fazê-lo, nunca deram publicidade à sua prestação de contas. Acredita, todavia, o autor que esses recursos, aplicados numa reforma não revolucionaria, e orgânica, deveriam dar resultados reais e pacíficos, sem ofensa ao direito de propriedade e sem perturbações na produção.

Ademais, «uma Reforma Agrária nunca é definitiva». Há que atender «novas camadas de proletários que declaram sua fome de terra, tão atendível como a dos já servidos». A legislação agro-reformista é uma «máquina legal de destruição integral da terra».

Aliás, diz ainda o autor: «é à influência do espírito bolchevista que, em parte, são devidas as revoluções agrárias da Europa Central».

* * *

Em «Falsas Ideias Claras em Economia Agrária», começa o Sr. José Pequito Rebelo definindo o que é esse tipo de idéias que, modernamente, vem invadindo este e outros campos do pensamento.

«Falsas ideias claras — diz ele — erros falsamente evidentes, sofismas que sutilmente captam o nosso assentimento e depois se põem a correr como boa moeda, fórmulas peremptórias de um intelectualismo fácil, ideologias superficiais persuadidas da sua profundeza, dogmatismos primários em que vêm a cair lamentavelmente e imperdoavelmente os hipercríticos, tudo isto se cifra naquela aparência de verdade que é a sua maior inimiga por lhe afetar os caracteres de simplicidade e de evidência».

O livro enuncia essas ideias sob forma de teoremas, que refuta com segurança lógica.

As teses e as refutações são formuladas tendo em vista, especialmente, a discutida questão agrária portuguesa, que consiste na grande diferença de densidade demográfica entre Noroeste de boas terras muito subdivididas e o Alentejo, ao sul, com propriedades extensas em terra má.

Não obstante esse objetivo de âmbito local, o livro refuta os principais erros que se vão difundindo com tanta insistência neste mundo de hoje, tão trabalhado pela revolução organizada e estipendiada pelos governos de esquerda.

O primeiro desses falsos teoremas é «o preconceito da superfície». Mostra o autor que a superfície é, apenas, uma parte da realidade fundiária, exprimindo tão só duas de suas dimensões. A terra agrícola tem-nas múltiplas: a profundidade do solo, a profundidade do subsolo, a densidade dos princípios férteis, a altura total da chuva, a altura da chuva no verão, e outras mais. Não há comparar, por exemplo, a densidade de população de duas regiões, sob o ponto de vista agrário, sem corrigir a noção de superfície territorial pela consideração das dimensões não aparentes.

Na refutação dos teoremas seguintes, cujos preconceitos defluem, em boa parte, daquele primeiro, mostra o Sr. Pequito Rebelo que é mister a coexistência da grande e da pequena propriedade, conforme as regiões e dada a necessidade de especialização de uma e outra em culturas para que são respectivamente mais apropriadas. O latifúndio não é, geralmente, a causa da pobreza e da escassez da população; mas são estas e a pobreza da própria terra que são a causa do latifúndio. É por meio deste que, nas zonas novas, começou, em geral, o povoamento, que se desenvolveu quando as condições do meio o favoreceram.

* * *

Procurando condensar as conclusões do egrégio Autor desses dois livros, podemos dizer que a «Reforma Agrária» — com maiúsculas e aspas, segundo a convenção adotada em «Reforma Agrária — Questão de Consciência», isto é, a reforma de inspiração revolucionaria — é uma iniciativa política que não resolve os problemas sociais e econômicos que se propõe resolver, antes agrava os existentes e cria novos, tornando-se um processo contínuo e destrutivo.