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CARTA ENCÍCLICA

SOBRE OS RECENTES DESENVOLVIMENTOS DOS PROBLEMAS SOCIAIS

À LUZ DA DOUTRINA CRISTÃ

(MATER ET MAGISTRA)

(João XXIII)

«CATOLICISMO», que procura infundir de todos os modos, em seus leitores, a devoção ao Santo Padre, não tem entretanto a possibilidade de publicar habitualmente em suas páginas o texto integral dos documentos pontifícios. Abre ele hoje, porém, uma exceção, consagrando todo um número à tradução completa da Encíclica «Mater et Magistra».

Fazendo-o, esta folha dá a seu gesto o cunho de um preito de veneração e afeto filiais para com o Vigário de Jesus Cristo, e de admiração pelo documento com que ele acaba de brindar os fiéis. Mas esse preito vem marcado de um caráter particular.

A Santa Igreja é Mãe e Mestra, lembra-nos em suas primeiras palavras o augusto documento. Assim, nada importa mais aos fiéis do que conhecer o pensamento autêntico de Mestra tão sabia, as diretrizes germinas de Mãe tão extremosa e santa. Recebemos recentemente de nosso agente na Cidade Eterna a informação de que não havia tradução oficial ou oficiosa da Encíclica para o português. As agencias telegráficas, nos noticiários sobre a «Mater et Magistra» que forneceram à imprensa, como é natural só davam dela um resumo muito sucinto, que por isto mesmo não nos podia satisfazer. Ao mesmo tempo iam-se difundindo traduções do documento, que não tinham, entretanto, caráter oficial. E pari passu em certos setores começava a ferver a exploração.

Decorria esta do fato de que, segundo várias dessas versões, o Sumo Pontífice teria preconizado a «socialização». Daí o generalizar-se de norte a sul do País a extravagante ideia de que João XXIII, revendo a posição de seus Antecessores, pactuava com o socialismo, pelo menos em suas formas mais moderadas.

Esta impressão, nascida em pleno clima de luta em torno do problema agrário, não deixou do ser explorada como a manifestação de um pendor de Sua Santidade para o socialismo agrário.

Tudo isto levou-nos a recorrer diretamente ao original latino publicado pelo «Osservatore Romano». Tanto mais quanto o Santo Padre afirmara expressamente em sua alocução de 15 de maio que este seria o texto oficial do documento, se bem que dele se fizessem traduções em diversos idiomas.

Conferimos, pois, com o original latino a tradução integral publicada na imprensa diária do País, e emendamos as discrepâncias que encontramos, em número de aproximadamente 650. Os subtítulos, que não figuram no original, são da versão italiana.

Segundo o texto português que hoje publicamos, escrupulosamente conforme ao latino, poderá o leitor inteirar-se facilmente de que:

1 — ao dar um rico e extenso elenco de medidas aptas à solução dos problemas do campo, João XXIII não inclui, entre elas, leis de caráter expropriatório, e pois a Encíclica longe está de conter qualquer aprovação de uma política agrária socialista;

2 — o Santo Padre, como é natural, não retifica o ensinamento de seus Antecessores relativamente ao socialismo ou a qualquer outro ponto de doutrina social, mas pelo contrário o recapitula, confirma e desenvolve;

3 — o sentido da nova Encíclica é profundamente anti-socialista. Um de seus aspectos mais importantes consiste em encarecer o papel dos grupos intermediários entre o indivíduo e o Estado, e afirmar o princípio da subsidiariedade como norma básica das relações entre os particulares, as sociedades de direito privado ou público, e o Estado. Não é este o momento de desenvolver o assunto. Mas qualquer pessoa que tenha a respeito noções ainda que sumarias, vê desde logo que estes princípios são diametralmente opostos ao socialismo;

4 — por fim, a palavra «socialização», que aliás não significa necessariamente algo de afim com o socialismo — fato que qualquer estudioso conhece — não se encontra entretanto no texto latino da «Mater et Magistra».

Quais as expressões latinas que aqui ou acolá vêm sendo traduzidas por «socialização»? Ei-las:

a — «socialium rationum incrementa» = o incremento das relações sociais; b — «socialis vitae processus» = o progresso da vida social; c — «progressio rationum socialium» = o progresso das relações sociais; d — «increbrescentes socialis vitae rationes» = as crescentes relações da vida social; e — «socialis vitae incrementa» = o incremento da vida social; f — «socialium rationum progressus» o progresso das relações sociais.

Como se vê, dado o sentido próprio e natural destas expressões, o contexto em que elas são usadas — Parte II da Encíclica, tópico subordinado ao subtítulo «O incremento das relações sociais» — de nenhum modo pode ser interpretado como uma aprovação, ainda que muito remota, do socialismo, ou uma retificação, ainda que muito delicada ou indireta, da famosa afirmação de Pio XI na Encíclica «Quadragesimo Anno», de que socialismo e Catolicismo «são termos contraditórios».

Com este esclarecimento, visamos a desfazer um equívoco, que vinha dando azo a numerosas explorações. De fato, entretanto, a palavra «socialização», como dissemos, e os técnicos o sabem, pode ser empregada em um sentido nada afim com o socialismo. Assim, nosso esclarecimento não tem o caráter de censura a esta ou àquela tradução. Mas, para cortar todas as explorações nascidas em nosso meio, parece mais simples pôr em evidencia que o termo não existe na Encíclica.

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CARTA ENCÍCLICA

DE NOSSO SANTÍSSIMO SENHOR

JOÃO

PELA DIVINA PROVIDÊNCIA

PAPA XXIII

AOS VENERÁVEIS IRMÃOS

PATRIARCAS, PRIMAZES

ARCEBISPOS, BISPOS

E OUTROS ORDINARIOS

EM PAZ E COMUNHÃO

COM A SÉ APOSTÓLICA

BEM COMO A TODO O CLERO

E AOS FIÉIS DO ORBE CATOLICO

SOBRE OS RECENTES

DESENVOLVIMENTOS

DOS PROBLEMAS SOCIAIS

À LUZ DA DOUTRINA CRISTÃ

JOÃO PP. XXIII

VENERÁVEIS IRMÃOS

DILETOS FILHOS

SAUDAÇÃO

E BÊNÇÃO APOSTÓLICA

MÃE E MESTRA dos povos, a Igreja Católica foi instituída por Jesus Cristo para que, no decurso dos séculos, todos os que viessem a seu seio e seu amplexo encontrassem a salvação, com a plenitude de uma vida mais elevada.

A esta Igreja, "coluna e fundamento da verdade" (cfr. 1 Tim. 3, 15), seu Santíssimo Fundador confiou a dupla missão de gerar-Lhe filhos e de os educar e reger, guiando com providência materna não só a vida de cada homem, mas também a dos povos, cuja excelsa dignidade Ela sempre teve em grande honra e protegeu com solicitude.

A doutrina de Cristo como que une a terra ao Céu, pois abarca o homem todo, espírito e matéria, inteligência e vontade, e convida-o a elevar a alma das condições mutáveis da vida terrestre às alturas da vida eterna, onde gozará, um dia, da perene felicidade e paz.

Embora, por conseguinte, a missão principal da Santa Igreja seja santificar as almas e fazê-las participantes dos bens celestes, tem Ela, entretanto, solicitude pelas necessidades cotidianas da existência dos homens, não somente quanto à subsistência e condições de vida, mas ainda quanto ao bem-estar e prosperidade em toda sorte de bens e segundo as várias épocas.

Realizando isto, a Santa Igreja põe em prática os preceitos de seu Fundador, que, ao dizer: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" (Jo. 14, 6), e em outro lugar: "Eu sou a luz do mundo" (Jo. 8, 12), refere-Se sobretudo à salvação eterna dos homens; mas quando, olhando a multidão dos famintos, clama como a gemer: "Tenho compaixão deste povo" (Marc. 8, 2), mostra

(continua)