(MATER ET MAGISTRA)
(continuação)
comodidades da vida ao maior número possível; remover completamente, ou pelo menos reduzir, as desigualdades que existem entre os vários setores econômicos, isto é, entre o setor agrícola, industrial e de serviços públicos; realizar o equilíbrio entre a expansão econômica e o desenvolvimento dos serviços prestados aos cidadãos, especialmente pela autoridade pública; adequar, nos limites do possível, as fontes de produção aos progressos das ciências e das técnicas; fazer, enfim, com que o benefício, já alcançado, de uma vida mais humana sirva não somente à geração presente, mas tenha também em vista os interesses das futuras.
No que diz respeito ao bem comum de toda a humanidade, ele parece exigir que se evitem as concorrências desleais entre as economias dos vários povos; que se fomente a mutua concórdia e a amigável e frutuosa união dos povos em matéria econômica; e, finalmente, que se faça um trabalho eficiente no sentido de promover o progresso econômico das nações menos favorecidas.
As exigências do bem comum, quer de cada Estado, quer de todos os países, devem ser consideradas quando se trata de determinar os lucros que competem aos responsáveis pela direção das empresas e os rendimentos dos que nelas investiram capitais.
EXIGENCIAS DA JUSTIÇA EM RELAÇÃO ÀS ESTRUTURAS PRODUTIVAS
Estruturas conformes à dignidade do homem
Mas é preciso conformar às leis da justiça, não só a maneira pela qual os bens adquiridos pelo trabalho são distribuídos, mas também as condições nas quais os homens produzem estes mesmos bens. É uma exigência da própria natureza que, àquele que produz com o seu trabalho seja dada a possibilidade de empenhar a própria responsabilidade e de aperfeiçoar-se a si mesmo em seu próprio trabalho.
Segue-se daí que, se para produzir riquezas são empregados um sistema e uma estrutura econômica tais, que comprometem a dignidade humana de todos os que aí trabalham, ou lhes enfraquecem o senso de responsabilidade, ou lhes tiram o poder de agir livremente, esta ordem econômica, Nós a julgamos injusta, ainda que, por hipótese, ela produza grandes riquezas e estas sejam distribuídas conforme as normas da justiça e da equidade.
Confirmação de uma diretriz
Não é possível, em matéria econômica, definir numa só palavra quais os métodos mais conformes à dignidade humana e quais os mais aptos a desenvolver nos homens o senso de responsabilidade. Todavia, Nosso Predecessor Pio XII, de feliz recordação, traçou oportunamente estas normas de ação: "A pequena e média propriedade na agricultura, no artesanato, no comercio e na indústria, devem ser garantidas e promovidas, assegurando-se-lhes as vantagens das grandes empresas através das uniões cooperativas; quanto às grandes empresas, deve ser oferecida a possibilidade de temperar em alguns pontos o contrato de trabalho com o contrato de sociedade" (Radiomensagem de 1.° de setembro de 1944; cfr. A. A.S. XXXVI, 1944, p. 254).
Empresa artesanal e empresa cooperativista
Por isso devem ser conservadas e promovidas, de acordo com as exigências do bem comum e o progresso da técnica, tanto as empresas artesanais, ou as empresas agrícolas de dimensão familiar, como as cooperativas, que se propõem também complementar aquelas empresas.
Sobre as empresas agrícolas falaremos adiante. No momento julgamos oportuno tocar em alguns pontos relativos às empresas artesanais e às cooperativas.
Mas antes de tudo é preciso salientar que, para que as empresas desse gênero se mantenham vigorosas e floresçam, devem ser continuamente ajustadas — no que diz respeito às estruturas e ao funcionamento da produção — às novas condições dos tempos, determinadas pelos progressos das ciências e das técnicas, pelas exigências e preferências mutáveis dos homens. O que é justo que seja feito precipuamente pelos próprios artesãos e pelos membros das cooperativas.
Para tal fim é necessário não só que a uns e outros seja dada uma boa formação sob o aspecto técnico e cultural, mas também que se reúnam em sociedades profissionais. Não é menos indispensável que o Estado tome as devidas providencias para regulamentação da instrução, dos impostos, do credito, dos seguros e previdência sociais.
De resto, tal ação dos poderes públicos a favor dos artesãos e dos membros das cooperativas deve também ser aprovada e aconselhada por isso que eles são portadores de valores humanos genuínos e contribuem para o progresso da civilização.
Por tais razões, exortamos paternalmente Nossos filhos caríssimos, os artesãos e membros de cooperativas espalhados por todo o mundo, a que tenham consciência do nobilíssimo ofício a eles confiado na cidade, visto que, por seu trabalho, o senso de responsabilidade dos cidadãos e o espírito de colaboração mutua podem ser cada vez mais estimulados e pode se inflamar o desejo dos homens de executar novas obras notáveis pela delicadeza da arte.
Presença ativa dos trabalhadores nas medias e grandes empresas
Além disso, seguindo a linha traçada por Nossos Predecessores, estamos persuadido de que é legítima, a aspiração dos operários a participarem da vida das empresas a que estão adidos e na qual trabalham. Qual deva ser esta participação, não julgamos poder determiná-lo por regras certas e definidas, visto depender isto mais da situação de cada empresa, que não é idêntica para todas, e que pode com frequência variar rápida e substancialmente numa mesma empresa. Cremos contudo que deve ser atribuída aos operários uma participação ativa nos negócios das empresas em que trabalham, sejam estas de particulares, sejam do Estado; e, em todo caso, deve-se tender a que as empresas revistam a forma de uma sociedade humana, por cujo espírito sejam profundamente influenciadas as relações individuais e as várias funções e ofícios.
Isto exige que as relações entre os empresários e dirigentes, de uma parte, e os operários da mesma empresa, de outra, sejam impregnadas de mutuo respeito, de estima e de benevolência; pede ainda que todos, como para uma obra comum, colaborem com sincera e eficaz concórdia, e a obra que intentam, não a projetem apenas com o sentido do lucro que dela advirá, mas realizem-na ainda como um serviço que lhes foi confiado, e desempenhem um oficio que reverta também em beneficio para outros. Daí decorre que, naquilo que toca ao funcionamento e ao desenvolvimento da empresa, se devam ouvir de modo oportuno os desejos dos operários e se apele para seu concurso. Nosso Predecessor Pio XII, de grata recordação, observava: "A função econômica e social que cada qual deseja exercer proíbe que a atividade de cada um seja totalmente submetida ao arbítrio de outrem" (Alocução de 8 de outubro de 1956; cfr. A.A.S. XLVIII, 1956, pp. 799-800). Todos, é certo, sabem muito bem que a empresa, tendo embora por primeiro dever atender à dignidade humana, deve proteger a necessária e eficaz unidade de seu próprio regime. Mas daí de modo algum se segue que aqueles que nela trabalham diariamente apenas ocupem o lugar de executores, nascidos para simplesmente obedecer em silêncio, sem poderem expressar seus desejos e necessidades, e obrigados a permanecerem inertes quando se delibera sobre seu trabalho e a direção deste.
Finalmente, é preciso recordar que se deseja hoje em dia, em várias empresas produtoras, associar os operários a responsabilidades até das maiores, e isto não apenas concorda plenamente com a natureza humana, mas é inteiramente conforme à evolução econômica, social e política.
Embora, infelizmente, nos tempos atuais o campo econômico e social conheça bem grandes discrepâncias contrarias à justiça e à humanidade, e em todos os domínios da economia se insinuem erros que lhe infeccionam gravemente a ação, fins, estrutura e funcionamento, ninguém, no entanto, poderá negar que os recentes meios de produção, incentivados pelo desenvolvimento das técnicas e das ciências, de modo visível progridem e se renovam, bem como receberam mais rápido incremento do que o haviam feito até aqui. Tal fato exige hoje dos operários uma destreza maior e mais perícia no oficio. Mas daí também resulta disporem eles de maior abundância de recursos, de tempo bem maior para se entregarem a uma instrução mais apurada, e para praticarem com mais liberdade os atos religiosos.
Também os jovens agora podem empregar mais anos na educação de base e em aprender os segredos do oficio.
Se assim se fizer, nascerá nova situação em que os trabalhadores poderão assumir encargos de maior responsabilidade mesmo em suas respectivas associações. Quanto ao país, muito lhe importa que, em todas as classes, os cidadãos se sintam cada dia mais obrigados ao dever de guardar o bem comum.
Presença dos trabalhadores em todos os níveis
É coisa patente a todos terem-se, em nossa época, multiplicado as associações de trabalhadores, que se veem comumente incluídas nas instituições jurídicas de cada Estado e até de âmbito internacional. Isto leva os trabalhadores não mais a combater, mas antes a colaborar na mesma obra; o que se faz principalmente pelos contratos celebrados entre os sindicatos de operários e de empregadores. Ainda cabe ressaltar ser necessário, ou pelo menos muito oportuno, que os operários possam fazer ouvir sua opinião e se apresentarem por si mesmos fora dos limites de sua associação e junto de qualquer classe do Estado.
A razão é que se pode ver que toda empresa, por mais que se eleve em grandeza, eficiência e importância no Estado, não deixa contudo de inserir-se nas condições econômico-sociais gerais de sua nação, e de depender destas para a própria prosperidade.
Contudo, decidir o que mais favorecerá o estado geral da economia não compete a cada empresa, mas aos governantes e àquelas instituições que, fundadas ou para uma nação, ou para vários países, operam nos diversos setores econômicos. Torna-se assim oportuno ou mesmo necessário haver junto das autoridades governamentais e das citadas instituições, além dos patrões ou de seus representantes, trabalhadores ou aqueles que por oficio lhes defendem os direitos, necessidades e aspirações.
É, pois, muito natural que, em primeiro lugar, Nosso pensamento e paterna afeição se dirija às associações profissionais e aos sindicatos operários que, conformes aos princípios cristãos, trabalham em muitos continentes. Sabemos no meio de quantas e quão grandes dificuldades esses Nossos filhos diletíssimos se esforçaram eficazmente, e com denodo ainda se esforçam, por que, dentro dos limites de seus países ou em todo o orbe da terra, sejam reconhecidos os direitos dos operários e elevados a melhor condição a sua sorte e o seu gênero de vida.
Mas, desejamos ainda celebrar a obra destes Nossos filhos com merecido louvor porque não se prende a um êxito imediato e visível, mas se estende por todo o campo do trabalho humano, por meio de retas normas de ação e de pensar, propagadas pelo puro sopro da Religião Cristã.
Com Nosso louvor paterno queremos também distinguir os filhos caríssimos que, imbuídos dos princípios cristãos, contribuem com excelente trabalho para outras associações profissionais e sindicatos operários regidos pelas leis naturais e respeitosos da liberdade de cada um em matéria religiosa e moral.
Nem podemos aqui deixar de Nos congratular e manifestar Nossa estima pela "Organização Internacional do Trabalho" — abreviadamente O. I. T., O. I. L. ou I. L. O., em língua vulgar — que há anos vem realizando inteligente, eficaz e valioso trabalho para restaurar em todo o mundo uma ordem econômica e social conforme as normas da justiça e da humanidade, na qual também os legítimos direitos da classe operaria são reconhecidos e protegidos.
PROPRIEDADE PRIVADA
Nova situação
Temos ante os olhos o fato de que, nestes últimos anos, nas maiores empresas, vem-se acentuando a separação entre os proprietários dos bens e os que dirigem a empresa. Isto traz grandes dificuldades para os governos, que devem estar atentos para que os projetos dos chefes das empresas mais importantes, e principalmente das que têm maior influência nas questões econômicas do país, de modo algum se afastem do bem comum. Dificuldades, como bem conhecemos pela experiência, igualmente graves quer os capitais necessários às grandes empresas provenham de particulares, quer procedam de entidades públicas.
Hoje em dia são mais numerosos aqueles que pelos recentes sistemas de seguro e pelas múltiplas formas de previdência social julgam poder olhar tranquilamente para o futuro; esta tranquilidade se apoiava anteriormente na propriedade de bens, por módicos que fossem.
Existem também, agora, homens mais desejosos de se especializarem em alguma profissão do que de possuírem bens, e que dão mais valor aos rendimentos que lhes vêm do trabalho ou de direitos unidos ao trabalho, do que aos rendimentos provenientes do capital ou de direitos ligados a este.
Isto certamente se coaduna com a índole nativa do trabalho, que, por brotar imediatamente da pessoa humana, deve ser anteposto à abundancia dos bens exteriores, os quais pela própria natureza estão no rol dos instrumentos. E é verdadeiro indicio de adiantamento da humanidade.
Tais condições da vida econômica sem dúvida são uma das causas por que se espalha a dúvida sobre se, nas atuais circunstancias, perdeu sua força ou se tornou de menor valor o princípio da ordem econômico-social firmemente ensinado e defendido por Nossos Predecessores: o princípio que declara ser um direito natural dos homens o de possuir individualmente até mesmo bens de produção.
Reafirmação do direito de propriedade
Esta dúvida é totalmente infundada. Com efeito, o direito da propriedade privada, mesmo em relação a bens empregados na produção, vale para todos os tempos. Pois depende da própria natureza das coisas, que nos diz ser o indivíduo anterior à sociedade civil e, por este motivo, ter a sociedade civil por finalidade o homem. De resto, a nenhum individuo se reconheceria o direito de agir livremente em matéria econômica se não lhe fosse igualmente concedida a faculdade de escolher e de empregar os meios necessários ao exercício deste direito. Além disto, a experiência e a Historia atestam que, onde os regimes políticos não reconhecem aos particulares a posse mesmo de bens de produção, aí é violado ou completamente destruído o uso da liberdade humana em questões fundamentais. De onde se patenteia, certamente, que a liberdade encontra no direito de propriedade proteção e incentivo.
Aí se deve procurar o motivo por que certos partidos e movimentos políticos e sociais que procuram harmonizar a liberdade e a justiça na sociedade humana, e que até bem pouco não aceitavam o direito da propriedade particular sobre bens produtores de riquezas, esses mesmos, hoje, mais esclarecidos pelo curso das questões sociais, reformam sua opinião e aprovam este mesmo direito.
Apraz-Nos, portanto, citar as palavras de Nosso Predecessor Pio XII, de feliz memória: "A Igreja, protegendo o direito da propriedade particular, tem em vista um excelente fim ético-social. De nenhum modo pretende Ela defender a atual ordem de coisas como se nela reconhecesse a expressão da vontade divina, nem assume o patrocínio dos opulentos e plutocratas, desprezando os direitos dos pobres e indigentes... A verdadeira intenção da Igreja consiste em fazer com que o instituto da propriedade particular seja tal como o desígnio da Divina Sabedoria e a lei natural o estabeleceram" (Radiomensagem de 1.° de setembro de 1944; cfr. A. A. S. XXXVI, 1944, p. 253). Isto é, cumpre que a propriedade particular seja uma garantia da liberdade da pessoa humana e ao mesmo tempo intervenha como elemento indispensável no estabelecimento de uma reta ordem social.
Enquanto, como já dissemos, em muitos países as recentes condições econômicas têm-se desenvolvido rapidamente, tornando a produção mais eficiente, a justiça e a equidade exigem que igualmente seja aumentado o salário do trabalho, sem prejuízo para o bem comum. Isto permitirá ao trabalhador fazer economias com mais facilidade e assim conseguir um pequeno pecúlio. É, pois, de admirar que seja contestado por alguns o caráter natural do direito de propriedade, deste direito que haure sempre na fecundidade do trabalho sua força e seu vigor; que contribui de modo tão eficaz para a proteção da dignidade da pessoa humana, e para o livre desempenho dos deveres de cada um em todos os campos de atividade; que, finalmente, fortalece a união e tranquilidade do lar e traz um aumento de paz e prosperidade ao Estado.
Difusão efetiva
Contudo, não basta afirmar o caráter natural do direito da propriedade particular, inclusive de bens produtivos, se ao mesmo tempo não se emprega todo o esforço para que o uso desse direito seja difundido entre todas as classes de cidadãos.
Como afirma de modo excelente Nosso Predecessor de feliz memória, Pio XII, de uma parte a própria dignidade da pessoa humana, "para viver conforme as retas normas da natureza, exige necessariamente o direito ao uso dos bens materiais; ao qual corresponde a obrigação certamente gravíssima que requer seja dada a todos, enquanto possível, a faculdade de possuir bens privados" (Radiomensagem de 24 de dezembro de 1942; cfr. A.A.S. XXXV, 1943, p. 17) ; de outra parte, a nobreza do próprio trabalho exige, entre outras coisas, "a conservação e o aperfeiçoamento de uma ordem social que permita, a todos os cidadãos de qualquer classe, a posse segura, embora módica, de bens" (cfr. ibid., p. 20).
A difusão da propriedade privada deve ser procurada tanto mais, atualmente, quanto, como o lembrávamos, os sistemas econômicos de um número crescente de nações alcançam cada dia maiores desenvolvimentos. Pelo que, utilizando sabiamente as várias técnicas comprovadas pelo uso, não será difícil promover nas nações uma política econômica e social que torne mais fácil e abra largamente o caminho à propriedade privada de bens deste gênero: bens de consumo duráveis, casa, terreno, equipamentos necessários para a empresa, seja artesanal, seja agrícola-familiar, ações nas medias ou nas grandes empresas, como já se está experimentando com êxito em algumas nações economicamente desenvolvidas e socialmente adiantadas.
Propriedade pública
É claro que o que dissemos absolutamente não proíbe que também os Estados e outras entidades públicas tenham legitimamente a propriedade de bens instrumentais, especialmente "se acarretam consigo tão grande poder que não se pode permitir que sejam deixados nas mãos dos particulares sem perigo do bem público" (Encíclica "Quadragésimo Anno", A.A.S. XXIII, 1931, p. 214).
É tendência de nossa época atribuir propriedades cada vez maiores ora ao Estado, ora a outras entidades públicas. Encontra-se a razão disto também no fato de o bem comum pedir que os poderes públicos exerçam funções sempre mais amplas. Porém, ainda aqui, deve-se observar inteiramente o princípio de subsidiariedade, que já mencionamos: assim, só é licito ao Estado e às entidades públicas estender os limites de seu domínio quando a necessidade manifesta e verdadeira do bem comum o exige, e sem perigo de diminuir além da medida as propriedades dos particulares, ou, o que seria pior, eliminá-las.
Finalmente, não se pode esquecer que as iniciativas de natureza econômica, assumidas pelo Estado ou por entidades públicas, devem ser confiadas a cidadãos que se salientem por singular competência e reconhecida honestidade, bem como desempenhem com toda a consciência seus deveres para com o Estado. Além disso, é preciso que o trabalho dessas pessoas seja acompanhado com atenta e assídua vigilância, a fim de que na própria administração do Estado um arrogante poder econômico não caia nas mãos de poucos, o que está certamente em oposição com o bem comum.
Função social
Mas Nossos Predecessores constantemente ensinaram que ao direito de propriedade privada é intimamente inerente uma função social. Com efeito, no plano de Deus Criador, a abundância de todos os bens é destinada antes de tudo a servir para que todos os homens tenham uma existência digna, como o adverte de modo excelente Nosso Predecessor de feliz memória, Leão XIII, na Encíclica "Rerum Novarum", onde lemos em resumo: quem quer que tenha recebido da divina Bondade maior abundancia de bens, quer bens externos e do corpo, quer bens da alma, recebeu-os com o fim de os fazer servir ao seu próprio aperfeiçoamento e ao mesmo tempo, como ministro da Providência Divina, ao proveito dos outros. "É por isso que quem tiver o talento da palavra tome cuidado de não se calar; quem possuir abundância de bens não deixe que entorpeça em si a largueza da misericórdia; quem tiver a arte de governar aplique-se com cuidado a partilhar com seu irmão o exercício e os frutos dela" ("Acta Leonis XIII", XI, 1891, p. 114).
Embora em nossa época muito se tenham desenvolvido e cada vez aumentem mais as funções confiadas ao Estado e às entidades públicas, contudo de maneira alguma deve-se concluir disto ter perdido sua razão social a propriedade privada, como pensam alguns; pois esta função social tira sua força do próprio direito de propriedade. A isto convém ajuntar a existência, em todo tempo, de inúmeras situações dolorosas e necessidades graves e ocultas que a múltipla providência do Estado não atinge, e às quais não pode atender de modo algum; por este motivo o campo estará sempre largamente aberto à humanidade e caridade cristã dos particulares. Finalmente, é notório que, para estimular as atividades que se relacionam com os bens da alma, é de maior valor a obra empreendida pelos homens individualmente ou por grupos de cidadãos, do que pelos poderes públicos.
Importa enfim lembrar aqui que o direito de propriedade privada é certamente aprovado pela autoridade dos Santos Evangelhos, que não deixam, porém, frequentemente de mostrar Jesus Cristo a convidar com insistência os ricos a darem as suas riquezas aos pobres para que elas se transformem em bens celestes: "Não queirais acumular para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os consomem, e onde os ladrões os desenterram e roubam, mas entesourai para vós tesouros no Céu, onde nem a ferrugem, nem a traça os consome, e onde os ladrões não os desenterram, nem roubam" (Mat. 6, 19-20). E o Divino Mestre reconhece ser feito a Ele próprio tudo o que se fizer aos pobres: "Na verdade vos digo que todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes" (Mat. 25, 40).
III
Novos aspectos da questão social
A marcha das coisas e dos tempos mostra cada vez mais que devem ser atendidas as exigências da justiça e da equidade, não somente nas relações entre operários e empregadores ou dirigentes de empresas, mas também nas relações entre os vários setores econômicos e as várias regiões diversamente providas de riquezas, numa mesma nação; assim como, no plano universal, entre os diversos países que não se desenvolveram igualmente no plano econômico-social.
EXIGENCIAS DE JUSTIÇA NO QUE DIZ RESPEITO ÀS RELAÇÕES ENTRE OS SETORES DA PRODUÇÃO
Agricultura, setor insuficientemente desenvolvido
E de início, para lembrarmos algo sobre as condições agrárias, observamos que o número dos trabalhadores do campo globalmente não parece ter diminuído. Não há dúvida, contudo, que muitos agricultores, deixando o campo onde nasceram, ou se dirigem para lugares mais povoados, ou para as próprias cidades. Como tal coisa se verifica em quase todas as nações, e às vezes diz respeito a grande número de homens, acarreta para a vida e dignidade dos cidadãos problemas difíceis de serem solucionados.
É manifesto que, na medida em que uma economia progride e se desenvolve, o número dos trabalhadores rurais diminui, aumentando porém a quantidade dos operários que trabalham nas indústrias ou no setor dos serviços. Julgamos, contudo, que os agricultores que passam a trabalhar em outros setores da produção, se frequentemente o fazem por motivos oriundos do próprio desenvolvimento econômico, mais frequentemente são levados por vários fatores entre os quais os principais são: a ânsia de sair de um ambiente estreito, onde não há esperança de uma vida mais cômoda; o desejo de novidades e de aventuras que caracteriza tanto nossa época; a cobiça de rápida fortuna; a miragem de uma vida em maior liberdade, graças aos meios e facilidades que as aglomerações urbanas e cidades costumam oferecer. Mas o que também não se pode negar é que os homens do campo se afastam dele porque veem os seus interesses quase por toda parte desprezados, tanto no que toca à eficiência do seu trabalho, quanto no que se refere ao nível de vida dos agricultores.
Por isso, em problema de tamanha importância, que atualmente interessa a quase todas as nações, convém antes de tudo examinar o que é preciso fazer a fim de, no que diz respeito ao modo da produção, o setor agrícola de um lado, e o industrial e o dos serviços de outro, não terem tanta diferença entre si. Deve-se também cuidar que o teor de vida da população rural seja o menos possível distanciado daquele dos habitantes das cidades, cuja renda provém da indústria ou dos diversos serviços. Isto deve ser bem claro, para que os que trabalham nos campos não se julguem de modo algum inferiores em dignidade aos demais; ao contrário, estejam persuadidos de que também os que vivem no campo podem, não somente afirmar e desenvolver sua personalidade, mas olhar também o futuro com confiança.
Parece-Nos, pois, muito oportuno dar algumas diretrizes para este problema, que possam servir em qualquer situação histórica, com a condição, como é obvio, de que sejam aplicadas conforme as circunstancias de tempo e lugar o permitam, aconselhem ou exijam.
Adequação dos serviços públicos essenciais
Antes de tudo, é necessário que todos, e principalmente os governantes, trabalhem para que os serviços que são mais necessários a todos recebam no campo o tratamento devido, como por exemplo: reparo das estradas, transportes, comunicações, água potável, habitações, assistência sanitária, escolas elementares e técnico-profissionais, condições idôneas tanto para a vida religiosa como para a recreação do espírito, e finalmente os equipamentos com os quais nossa época requer que seja dotada e aparelhada a casa dos trabalhadores agrícolas. Onde faltam os recursos que são necessários para que a vida dos agricultores tenha um teor digno, aí o progresso econômico e social não se realiza nunca, ou só se dá com muita lentidão. E em consequência nada pode impedir que um número incalculável de homens abandone o campo.
Desenvolvimento gradual e harmonioso do sistema econômico
Convém, além disso, que o desenvolvimento econômico dos Estados se proceda gradativamente, conservando entre os vários setores econômicos a devida proporção. Trabalhe-se principalmente para que, primeiro, sejam aplicados na cultura dos campos os métodos mais modernos, seja quanto à técnica produtiva, seja quanto à variedade das culturas, seja quanto às estruturas das empresas rurais, que o sistema econômico, considerado em seu conjunto, permite ou requer; e, depois, para que tais coisas sejam feitas, na medida do possível, na devida proporção relativamente ao setor industrial e de serviços.
Seguir-se-á daí que a agricultura não somente absorverá maior quantidade de bens industriais, mas também exigirá uma mais adequada prestação de serviços. Por sua vez, porém, a cultura dos campos oferecerá ao setor industrial e ao dos serviços, assim como à própria sociedade, os produtos que, pela qualidade e quantidade, atendam melhor ao consumo. E por isso a agricultura terá por efeito uma estabilidade maior do poder aquisitivo da moeda, o que é um dos principais requisitos para o desenvolvimento ordenado de todo o sistema econômico.
Adotados estes planos, colher-se-ão, além de outros, os benefícios seguintes: ter-se-á, em primeiro lugar, mais facilidade em conhecer os lugares de onde se afastam e para onde se dirigem os emigrantes do campo que estão sem trabalho por terem sido aplicadas, pouco a pouco, à cultura dos campos as novas técnicas. Poderão eles, em segundo lugar, ser instruídos de tal modo em suas técnicas de trabalho, que lhes será possível dedicar-se também a outros gêneros de atividade. Finalmente, não lhes faltarão nem os recursos econômicos, nem os subsídios necessários para sua formação intelectual e espiritual, a fim de que possam bem integrar-se em novos grupos sociais.
Política econômica adequada
Para que nos vários setores econômicos haja um desenvolvimento ordenado, é absolutamente necessário que os poderes públicos, no que se refere à agricultura, dirijam prudentemente sua atenção para o seguinte: impostos ou tributos, crédito, seguros sociais, preços, promoção de indústrias complementares e, finalmente, a adequação das estruturas das empresas agrícolas.
Tributos
No que se refere à tributação, uma disciplina ordenada segundo a justiça e a equidade exige principalmente que os tributos sejam lançados segundo os recursos dos cidadãos.
Mas nos impostos incidentes sobre o campo, a utilidade comum de todos pede dos que governam que se lembrem de que, no setor rural, as rendas vêm mais lentamente e são expostas a maiores riscos, e por isso é mais difícil encontrar os capitais necessários ao incremento delas.
Capitais a juros convenientes
Segue-se disto logicamente que os que possuem capitais os coloquem preferivelmente em outros negócios que não os agrícolas. Pelo mesmo motivo, os agricultores não podem pagar juros altos; até mesmo, o mais das vezes, não podem pagar os juros impostos pelo mercado, a fim de formarem os capitais que a administração e o aumento de seus bens pedem. Por este motivo, é necessário, para promover o bem comum, não somente que as autoridades públicas estabeleçam uma política de capitais especial para os agricultores, mas também que criem institutos de credito que lhes forneçam os capitais sem juros altos.
Seguros sociais e previdência social
Além disso, parece necessário criar duas espécies de seguros: uma que diga respeito ao que a terra produz; outra, aos próprios agricultores e suas famílias. E como reconhecidamente são as rendas de cada agricultor individualmente menores, em geral, do que as dos operários das indústrias ou dos diversos serviços, não parece ser absolutamente conforme às normas da justiça social e da equidade estabelecer para os agricultores um sistema de seguros sociais, ou de previdência social, inferior ao das demais classes de cidadãos. Com efeito, os seguros e a previdência que geralmente se constituem devem diferir pouco uns dos outros, qualquer que seja o setor econômico em que os cidadãos trabalhem, ou do qual percebam rendas.
De resto, como os seguros sociais e a previdência social podem contribuir muito para que as rendas de toda a nação sejam distribuídas segundo as normas da justiça e da equidade entre os cidadãos, podem, por isto, considerar-se como um meio pelo qual se diminuem as discrepâncias entre as várias classes de cidadãos.
Defesa dos preços
Dada a natureza especial dos produtos do campo, convém que se promova uma disciplina eficaz para defesa de seus preços, utilizando para esse fim os meios que a técnica econômica sugerir. Embora seja muito desejável que exerçam tal tutela os próprios interessados — a saber, mediante uma oportuna norma que se imponham a si mesmos — não é lícito, entretanto, aos poderes públicos deixar inteiramente de exercer aqui uma ação moderadora.
Nem se pode também esquecer que o preço dos produtos agrícolas é frequentemente mais uma retribuição ao trabalho dos agricultores do que remuneração de capitais.
Por isso, com toda a razão, Nosso Predecessor de feliz memória, Pio XI, na Encíclica "Quadragésimo Anno", observa a respeito do bem comum: "é útil para este a proporção entre os salários". Contudo, acrescenta: "com ela está unida estreitamente a reta proporção dos preços por que devem ser vendidos os produtos das diferentes atividades, como sejam a agricultura, a indústria e semelhantes" (cfr. A.A.S. XXIII, 1931, p. 202).
Como os produtos do campo visam sobretudo satisfazer as necessidades primarias do homem, é preciso, por este motivo, que seu preço seja tal, que todos possam comprá-los. É porém evidente que seria injusto se, por isso, toda uma classe de cidadãos — a dos agricultores — fosse reduzida a uma situação de inferioridade econômico-social, ficando privada da capacidade de comprar o que é necessário para um digno teor de vida: isto, sem dúvida, repugna flagrantemente ao bem comum.
Aplicação das rendas agrícolas
Convém, além disso, promover nas zonas agrícolas as indústrias e serviços relativos à conservação, à transformação e finalmente ao transporte dos produtos do campo. Para isto é necessário que se desenvolvam ali iniciativas e planos relativos aos setores econômicos e profissionais. Deste modo dá-se às famílias dos agricultores a faculdade de aumentar os seus rendimentos no próprio meio em que vivem e trabalham.
Adequação das estruturas da empresa agrícola
Ninguém pode fixar de modo genérico qual seja a estrutura agrícola mais conveniente, visto haver grandes diferenças, neste setor, dentro de cada país e mais ainda nas diversas partes do mundo. Mas os que consideram a dignidade do homem e da família, segundo a própria natureza ou, sobretudo, segundo a doutrina cristã, estes certamente pensam numa empresa agrícola — e mais ainda numa empresa agrícola de dimensões familiares —configurada à imagem de uma comunidade de pessoas, ou seja, uma empresa na qual tanto as mutuas relações dos membros como a conformação dela mesma se acomodam às normas da justiça e aos princípios da doutrina cristã. Eles se esforçarão com todo o empenho para que esta desejável empresa agrícola, de acordo com cada situação, seja realizada.
Contudo, a empresa de dimensão familiar somente será firme e estável quando render tanto quanto convém ao digno teor de vida da família. Para obtê-lo é absolutamente necessário que os agricultores sejam bem instruídos em seus trabalhos em geral e aprendam as novas técnicas, bem como sejam auxiliados em sua profissão por técnicos. É preciso ainda que os agricultores formem sociedades cooperativas, constituam associações profissionais, e participem eficientemente nos negócios públicos, isto é, tanto nos organismos de natureza administrativa quanto na política.
Os trabalhadores da terra, protagonistas de sua própria elevação
Na verdade, estamos persuadido de que, quando se trata da agricultura, os protagonistas, seja do desenvolvimento econômico, seja do progresso cultural ou social, devem ser os próprios interessados, ou seja, os lavradores. A eles deve ser claro e manifesto que o trabalho que executam é altamente digno de estima, porque é exercido no como que templo majestoso do mundo, se exerce frequentemente sobre a vida das árvores e animais, vida que, inexaurível em suas expressões, inflexível em suas leis, convida continuamente à lembrança do Deus Criador e Próvido. Além do que, o trabalho dos campos não produz somente os vários alimentos com os quais o homem se nutre, mas diariamente fornece uma grande abundancia dos materiais usados pela indústria. É um trabalho, ademais, que se reveste de uma dignidade própria por isso que utiliza muito do que se refere à mecânica, à química, à biologia; tudo isto, no entanto, deve ser atualizado sem demora, porque muito contribuem para o bem da agricultura os progressos técnicos e científicos. E não é só, pois este gênero de trabalho possui sua nobreza própria, enquanto exige dos agricultores que tenham uma compreensão aguda da variedade das estações e a ela se adaptem mais facilmente, que esperem o futuro mais tranquilamente, que compreendam o valor e a seriedade de seu ofício, que recomecem com coragem e tenham sempre novas iniciativas.
Solidariedade e colaboração
Lembre-se também que no plano agrário, como aliás em cada campo da produção, é indispensável que os agricultores se unam em sociedades, especialmente se é o próprio trabalho familiar que movimenta a empresa. De qualquer modo, é conveniente que eles se sintam solidários uns com os outros e colaborem na fundação de cooperativas e associações profissionais, necessárias umas e outras para fazer os agricultores se beneficiarem dos progressos das ciências e técnicas e para defender os preços dos produtos do trabalho. Acrescente-se o fato de que, admitido isto, os agricultores estarão em pé de igualdade com as outras classes de trabalhadores que habitualmente se reúnem em organizações. Finalmente, com o êxito dessas associações, os agricultores alcançarão na administração pública a influência correspondente à sua condição, pois que em nossa época, como dizem, uma voz isolada se perde, levada pelo vento.
Sensibilidade às exigências do bem comum
Mas os agricultores — como aliás as outras classes de trabalhadores — se quiserem mostrar a força e influência de sua organização, é necessário que o façam sem nunca desprezar os preceitos da moral e as leis do Estado. Esforcem-se, ao contrário, por conciliar seus direitos e interesses com os direitos e interesses das demais classes, e por subordiná-los às exigências do bem comum. Para isto, os agricultores que se empenham, conforme seus meios, para que sejam melhoradas as condições do campo, têm o direito de pedir aos governantes que auxiliem e complementem a obra encetada, contanto que eles mesmos se mostrem sensíveis às exigências do bem comum, e empreguem seus esforços em realizá-lo.
Por esta razão desejamos honrar com merecidos louvores Nossos filhos que, em todos os países, ora através de sociedades cooperativas,
(continua)