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A propósito da crise brasileira:

um grande ideal e sua contrafação

Plinio Corrêa de Oliveira

A atual crise brasileira pode ser considerada em profundidades diferentes. Enumeremo-las sumariamente, para escolher aquela em que nos vamos fixar.

CRISE PARTIDÁRIA E CRISE INSTITUCIONAL

Ela pode, antes de tudo, ser vista - e é este seu aspecto mais superficial - como episódio de uma luta entre equipes políticas diferentes. A UDN, vitoriosa com a eleição do Sr. Jânio Quadros, teria sofrido uma "revanche" da parte do PSD e do PTB coligados, que souberam utilizar habilmente as consequências da renúncia presidencial para recuperar sua antiga preponderância. Daqui por diante, trata-se de saber de que maneira prosseguirá a luta entre esses blocos políticos opostos. Se bem que essa ótica se pareça terrivelmente com a dos torcedores de futebol, não se pode negar que dentro das condições do regime vigente, ela tem certa razão de ser. Porém, não é da temática que se divisa desse ângulo, que no presente artigo nos vamos ocupar.

Outro aspecto que a crise atual oferece, e ao qual não se deve negar mais profundidade, é a substituição do presidencialismo pelo parlamentarismo. Não há dúvida de que, em circunstâncias dadas, pode exercer alguma influência na vida do País a atribuição de uma maior soma de funções ao Legislativo, ou ao Executivo. Porém, não se pode conceder à análise comparativa das duas modalidades do sistema democrático representativo a importância de um aspecto capital. Pois as dúvidas sobre as modalidades de um regime são necessariamente menos importantes do que as que se suscitem sobre o próprio regime. Assim, o problema "parlamentarismo – presidencialismo" é necessariamente menos importante que este outro: "democracia"?

DEMOCRACIA, PALAVRA DE SENTIDO PLURIMO

Flagrantes da crise de setembro último: soldados bloqueando a BR-2, leem as últimas notícias políticas. Do ponto de vista desta última questão, a crise brasileira começa a poder ser divisada em sua verdadeira magnitude. E isto pela ambiguidade tremenda que a palavra tem no vocabulário corrente do Brasil hodierno. Que é democracia?

Todos os partidos políticos ora existentes no País procuram reivindicar para si o primado da "democraticidade". E nisto parecem, à primeira vista, estar do acordo entre si, pelo menos quanto ao fim último que visam, que seria a conservação e o incremento da democracia no Brasil. Mas, por pouco que se analise o linguajar de nossos homens públicos, é fácil verificar que estes empregam a palavra "democracia" em sentidos diferentes e até contraditórios... E que o desacordo em que se encontram a tal respeito é o sintoma mais flagrante de tudo quanto os divide no plano ideológico.

Seria errôneo pensar que cada partido tem seu conceito de democracia. Infelizmente, o vazio ideológico de nossos partidos é tal, que dentro dele têm curso as mais variadas interpretações daquele vocábulo mágico. Assim, em todos os partidos há quem aplauda e quem censure a reforma agrária confiscatória, socialista e anticristã. Os que a aplaudem fazem-no em nome do ideal democrático, cuja mais alta expressão estaria na igualdade econômica e social. Os que a censuram fazem-no em nome do mesmíssimo ideal, considerando que a democracia consiste em uma justa e proporcionada autonomia dos particulares face ao poder público, e vendo na total subordinação da vida rural ao Estado - e nisto dá inevitavelmente o agro-reformismo - a suprema negação da democracia. O que é então, no seu sentido hodierno, "democracia"? Outro exemplo: as relações do Brasil com o bloco soviético, Cuba e a Iugoslávia. Na generalidade dos partidos, há tanto propugnadores quanto impugnadores da aproximação com esses países. Os primeiros alegam como argumento a necessidade de sincronizar nossa política exterior com o processo universal de democratização da humanidade. Os outros a rejeitam porque não querem que nosso País se afaste do bloco das nações democráticas. Mais uma vez: o que é então democracia? Se qualquer de nossos partidos ditos democráticos tivesse um ideal próprio e definido de democracia, deveria ter sobre estes e outros grandes problemas uma posição nítida e coesa, procurando atrair os adeptos de seu ponto de vista, excluir de suas De cassetete em punho, a polícia dissolve uma manifestação popular; fileiras os que pensam de modo oposto. Ora, é precisamente o contrário que se observa. Todos vêm evitando tomar posição oficial e ninguém pensa em excluir ninguém. A palavra "democracia" serve de isca nas águas turvas da opinião pública. Quanto mais iscas, tanto mais peixes. Quanto maior o número de vezes em que se fala de democracia, tanto maior o número de eleitores que se apanha. E para que a palavra mágica desempenhe em toda a amplitude seu papel é necessário deixá-la bem ambígua. Grita-se democracia, e cada qual a entende segundo seus pressupostos pessoais. Está fisgado o eleitor. Neste gênero de atividades, o objetivo essencial é o êxito político pessoal. E o resto é nada. Diante de tal emprego da palavra "democracia", aflora à memória o dito atribuído a Talleyrand: "A palavra foi dada ao homem para ocultar seu pensamento", mas a afirmação do famoso diplomata deveria ser retocada, para se ajustar à nossa realidade atual: "A palavra foi dada ao homem para ocultar sua inteira falta de pensamento".

Exemplificamos com partidos políticos. Não pensamos porém que lhes caiba o monopólio desta triste confusão. Ela embebeu todas as categorias sociais. Nos discursos dos paraninfos, nas aulas, na imprensa, no rádio, na televisão, a ambiguidade referente à democracia se nota com a maior frequência.

QUEM LUCRA COM A CONFUSÃO?

Fuzileiros navais desembarcam em Imbituba, Estado de Santa Catarina.Todos discutem, falam e escrevem, à procura de um rumo. Mas neste afã todos usam como instrumento máximo de expressão uma palavra que atingiu o supremo grau da ambiguidade. O que daí se deduz, senão que ninguém poderá sair da confusão?

Com isto, todos perdem. Exceto, diria o Conselheiro Acácio, os que lucram.

E quem lucra? Bem entendido, lucram só os comunistas... e lucram enormemente.

E, se lucram com isto, não são os autores disto?

Para tal não lhes falta nem a malícia requintada, nem os meios de manipulação subtil, poderosa e desalmada desse "quid" dúctil e influenciável, que é a opinião pública.

A confusão verbal, a confusão mental, desnorteia um adversário imensamente mais poderoso. E enquanto isto, os comunistas, minoria coesa, avançam silenciosamente nas trevas, em bloco compacto.

ATÉ A PALAVRA "CRISTÃO" SE TORNOU CONFUSA

Quanta dor, sim, quanta e quanta dor sinto em me ver obrigado a dizer que o mesmo processo de deterioração a que foi submetido o substantivo "democracia" atacou também em nosso linguajar político uma das palavras mais precisas e mais nobres, o mais belo adjetivo que jamais lábios humanos tenham pronunciado; refiro-me ao termo: "cristão".

Em via de regra, o adjetivo sofre as vicissitudes do substantivo com que costuma ser conjugado, mais ou menos como a esposa acompanha as do esposo.

Ora, in concreto, um imenso número de pessoas, dos mais diversos quadrantes políticos, quando usa o substantivo "democracia" lhe associa o termo "cristão". De onde, como "democracia" pode ser tudo, "cristão" é um molho que vai bem com os pratos mais diversos. Uns se referem à "democracia cristã" para tirar à "democracia" um certo cunho jacobino, bilioso, quase incendiário, para indicar que desejam uma aplicação restrita e benigna da trilogia "liberdade, igualdade, fraternidade". Outros empregam a mesmíssima expressão para fazer entender que o Cristianismo aceita que o único critério da justiça seja a igualdade. E que, apaixonada pela justiça, a consciência cristã exige as reformas mais radicais para chegar ao igualitarismo completo. Poucos, porém, são os que tomam as palavras "democracia cristã" em seu verdadeiro significado.

Assim, essa expressão a que Leão XIII ligou na Encíclica "Graves de Communi" um sentido tão claro, invariavelmente seguido por seus Sucessores, hoje foi transformada num instrumento supremo de confusão. Pois esta atinge seu mais alto grau de nocividade e malícia quando penetra, para o conspurcar e profanar, o terreno sacrossanto dos valores religiosos.

A VERDADEIRA DEMOCRACIA CRISTÃ

Escreveu Leão XIII, na Encíclica a que aludimos, que a democracia cristã não é uma forma de governo, podendo ser tanto monárquica, quanto aristocrática, quanto democrática. Ela é o ideal da reta ordenação dos assuntos atinentes ao bem comum, entendido e realizado segundo os ditames da doutrina católica. Eis as palavras do Pontífice: " ... a democracia cristã, pelo simples fato de se chamar cristã, deve basear-se, como em seu próprio fundamento, nos princípios que estabelece a fé divina, buscando de tal maneira o bem dos corpos, que não deixe de buscar ao mesmo tempo a santificação das almas, destinadas aos bens eternos. Nada, portanto, deve ela antepor à justiça; mantenha em sua integridade o direito de adquirir e de possuir, admitindo a distinção de classes, como corresponde aos Estados bem constituídos; e trate finalmente de dar à comunidade humana aquela forma e caráter que condizem com os planos do Criador.

"( ... ) Também seria censurável emprestar ao nome de democracia cristã algum sentido político. Pois, embora a palavra democracia, segundo sua etimologia e o uso dos filósofos, denote um regime popular, não obstante, nas presentes circunstâncias, tal expressão se deve usar de preferência para denotar essa mesma ação cristã em favor do povo, prescindindo absolutamente de toda acepção política. Porque, sendo os preceitos naturais e os do Evangelho superiores a todas as vicissitudes humanas, de modo nenhum podem depender de qualquer regime civil, senão que a todos devem poder acomodar-se, contanto que não estejam em conflito com a honestidade e a justiça ( ... ).

Também deve afastar-se da idéia de democracia cristã outro motivo de discórdia, qual seja o de ocupar-se de tal maneira com os interesses das classes inferiores, que se descuidem os das classes superiores ( ... )".

Entender que, pondo um rotulo cristão a um ideal liberal, ou a um ideal socialista, intrinsecamente pior, se coonesta à luz da doutrina católica o liberalismo ou o socialismo, é erro evidente e funestíssimo.

Pior abuso da palavra "cristão" ocorre quando uma pessoa, para esquivar-se de dar uma explicação para conceitos ou ações com que tenha alarmado a opinião conservadora, alega como única defesa, que é "cristã". O que é mais ou menos tão absurdo quanto se alguém, para se defender de uma acusação moral, não dissesse sim nem não, mas se considerasse justificado simplesmente com afirmar: "sou cristão".

COMO FOI POSSÍVEL EXPLORAR A PALAVRA "CRISTÃO"

"Cristão"... que pretexto encontrou o confusionismo para abusar de tal maneira deste sagrado vocábulo?

"Ser cristão, ensina-nos o Catecismo, é ser batizado, crer e professar a doutrina e a lei de Jesus Cristo".

O protestante, o cismático pode ser cristão se tiver recebido o batismo, se crer nas verdades essenciais de nossa Fé e professar a lei de Jesus Cristo. Mas um e outro será um cristão em estado anormal e defectivo. Mais ou menos como um homem sem braços e sem pernas.

Um homem pode não ter braços e pernas, sem deixar de ser homem. O Homem tem braços e pernas. Assim, um cristão poderá não ser católico. Mas o cristão é católico, apostólico e romano.

Do fato de que também os hereges e cismáticos se podem dizer cristãos, nasceu para a palavra "cristão" uma série de aplicações abusivas e vagas, distintas do significado de "católico" e até opostas a ele. Desejar um Estado cristão, ou uma legislação cristã, é, neste diapasão, desejar um Estado aconfessional, separado da Igreja, ou ligado igualmente a todas as igrejas, com uma legislação que se inspire em alguns grandes princípios evangélicos, mas que se afirme indiferente e autônoma face a toda a doutrina social católica considerada como um bloco homogêneo e indivisível. Assim aplicada, a palavra se torna fluida e vaga, idealmente própria a sofrer todas as violências impostas ao vocábulo "democracia".

E desse modo se consegue desnortear e reduzir ao auge da confusão de ideias – ponto de partida de todas as outras confusões - todo um povo inteligente, ordeiro e sinceramente desejoso de se manter católico, como é o brasileiro.

COMO LUTAR CONTRA A CONFUSÃO

Ante esta confusão, um dos deveres primordiais, que a todos incumbem, consiste em esclarecer.

De que maneira podem os leitores de "Catolicismo" contribuir para tal? Se a confusão é de ideias e de palavras, a respeito de democracia e Cristianismo, ela só pode ser dissipada pelo apostolado das ideias claras e das palavras claras. Por isto, é de se recomendar a maior clareza em matéria de "democracia cristã".

A democracia cristã, no sentido que lhe deu Leão XIII, isto é, de ordem temporal conducente ao bem comum segundo a lei de Cristo, e desvinculada de qualquer forma de governo in concreto, é o ideal necessário de ação temporal de todo católico.

Mas é preciso ter o cuidado de, ao empregar a expressão, fazê-lo em tal sentido e em tal contexto, que jamais se possa identificá-la com algo que é o contrário da verdadeira democracia cristã. O que é esse contrário? É a ordem temporal anticristã. Ora, sendo atualmente a manifestação mais categórica e mais aliciante do ideal temporal anticristão o comunismo, seria verdadeiramente de bradar ao Céu que a expressão "democracia cristã" significasse um comunismo vagamente borrifado de água benta. O adjetivo "cristão" serviria então de rótulo para encobrir o pior dos contrabandos ideológicos, ou seja, a aceitação da democracia materialista e revolucionária como ideal político dos meios católicos.

A este propósito é preciso lembrar sobretudo a necessidade de jamais usar a palavra "cristão" em temas tais, que ela possa ser interpretada como sinônimo de interconfessional, pancristão, etc. "Cristão" deve soar nitidamente como "católico". O ideal da democracia cristão de Leão XIII é – e não poderia deixar de ser – um ideal genuína e plenamente católico.

Como tal, esse ideal não é susceptível de acomodações vergonhosas, como a da igreja cismática que na Rússia pactua com o comunismo, ou a de certas seitas protestantes que aceitam o socialismo. Ser comunista é incorrer em excomunhão, como apóstata da fé, decretou o pranteado Pio XII ( decreto da Suprema S. C. do Santo Ofício, de 1º de julho de 1949 ). Socialismo e Catolicismo "São termos contraditórios", proclamou Pio XI ( Encíclica "Quadragesimo Anno" ). Uma "democracia cristã" que tenda, ainda que de longe, para o socialismo e o comunismo, ou que de qualquer forma lhes faça o jogo, nem é democracia, nem é cristã, no sentido de Leão XIII.

Por isto mesmo, um ideal democristão que inclua a reforma agrária, a reforma industrial, a reforma urbana e a reforma educacional em termos mais ou menos fidel-castristas, é a pior e a mais cruel negação da democracia cristã.

* * *

Estas considerações, evidentemente, só por si não bastam. Pois muitas outras providências haveria que sugerir. M

Para adquirir verdadeiramente clareza e lógica nesta matéria, é da maior importância que os leitores de "Catolicismo" se impregnem dos luminosos conceitos da recente "Carta Pastoral prevenindo os diocesanos conta os ardis da seita comunista", do ilustre Bispo de Campos ( v. "Catolicismo", nº 127, de julho de 1961 ).

A insanável incompatibilidade do verdadeiro ideal da civilização católica – que outra coisa não é a democracia cristã – com o socialismo e o comunismo, fica ali patenteada com uma evidência admirável, que constitui um dos muitos títulos que colocam esse documento no rol dos mais importantes da atualidade brasileira.

Ele é bem, sob esse aspecto, o marco divisor entre a democracia cristã verdadeira e sua abominável contrafação.

– "Abominável", não é forte a expressão? Se é ótimo o ideal genuíno da civilização cristã, como negar que seja péssima sua deterioração? "Corruptio optimi pessima"


CALICEM DOMINI BIBERUNT

A PATARIA, UMA ASSOCIAÇÃO POUCO CONHECIDA

Fernando Furquim de Almeida

A sociedade medieval formou-se organicamente, sem planos pré-estabelecidos, sob a inspiração dos princípios do catolicismo e a vigilância ativa da Santa Sé. Teve um progresso lento e na aparência desordenado, mas admiravelmente pujante, e apresentou uma unidade que nunca mais os homens conseguiram restabelecer depois que a Revolução iniciou sua obra destruidora.

Por certo não atingiu essa civilização a perfeição, impossível nas coisas terrenas. Teve defeitos e errou algumas vezes, mas nem por isso resulta menos verdadeiro que naqueles séculos de fé o desenvolvimento espontâneo e vigoroso das grandes forças sociais, a subordinação harmônica de umas às outras, a formação sempre renovada das instituições, foram orientadas pela Igreja de modo a criarem uma sociedade onde o bem tivesse plena possibilidade de florescer e o mal deparasse condições para ser combatido com êxito, proporcionando-se assim aos homens um ambiente propício para a consecução de seu destino eterno.

As instituições da sociedade medieval, impregnadas de Catolicismo, incentivavam a prática das virtudes ao mesmo tempo que dificultavam o alastramento dos vícios. E quando os homens, levados por seus defeitos, conseguiam corrompê-la e implantar nela o erro, nela mesma se encontravam os auxílios necessários para uma reação e uma reforma completa do organismo contaminado.

Foi o que se deu no século XI, quando, aliás, a civilização medieval nem atingira ainda seu pleno desenvolvimento. Penetrara então a corrupção de tal modo no seio da Igreja, que Voltaire chegou a dizer que não compreendia como pôde Ela sobreviver. Ao que Joseph de Maistre, com sua costumeira precisão, responde: “Realmente é de espantar, porque o fenômeno é humanamente inexplicável”.

De fato, quando tudo parecia perdido, a Providência suscitou os monges de Cluny, que iniciaram a reforma gregoriana, restaurando nas almas o ideal de santidade, de há muito abandonado. Estando o Ocidente preparado para receber-lhes as ideias, elas se introduziram nos mosteiros de toda a Europa, e a oração, a penitência e o zelo apostólico voltaram a ser o fundamento da vida monástica. Apareceram grandes santos, e o Papa São Gregório VII, com o seu auxílio, conseguiu o prodígio humanamente inexplicável de reerguer a Igreja da situação em que se encontrava e dar à Cristandade esse espírito admirável que desde então impregnou a Idade Média.

A situação que São Gregório VII teve que enfrentar era calamitosa. Os bispos eram também, muitas vezes, senhores feudais, subordinados a suseranos a quem deviam assistência e de quem dependiam. Por outro lado, o desejo de manter perfeita harmonia entre o clero, a nobreza e o povo levara a Igreja a permitir que as três classes da sociedade tivessem parte na escolha dos bispos. A eleição destes se fazia, em geral, do seguinte modo: a nobreza e o clero da região escolhiam o candidato, cujo nome era submetido ao senhor feudal, que deveria aprová-lo; o povo aclamava o escolhido, e só depois dessa ratificação se considerava a eleição terminada.

Esse processo não era rigorosamente seguido em todos os lugares. Abusos foram se introduzindo e se transformando em regra. Os senhores feudais, aos poucos, foram se arrogando o direito de indicar os candidatos, e por fim passaram a nomear, sem mais, os bispos. Pouco tardou que começassem a considerar as dioceses como propriedades suas e a vendê-las a quem desse mais. A exemplo deles, seus vassalos se puseram a vender benefícios eclesiásticos, e a simonia se alastrou por todo o Ocidente.

Esses males eram ainda agravados pelo nicolaísmo. De acordo com as regras canônicas da época, o casamento era permitido aos clérigos de ordens menores. Quando um clérigo casado se ordenava sacerdote, devia passar a viver com sua esposa como se fossem irmãos. Compreende-se facilmente quantos abusos podiam surgir daí. Com a decadência dos costumes, tornaram-se numerosos os sacerdotes que viviam mal, e o pior é que muitos deles chegavam assim ao episcopado. Estes últimos eram fácil presa da tentação simoníaca de transformar as respectivas dioceses em feudos da própria família, de modo que os seus filhos eram muitas vezes ordenados sem vocação, apenas para sucederem aos pais no trono episcopal. Fez-se também frequente o casamento de clérigos antes da ordenação sacerdotal, com o propósito deliberado de assim evitar o celibato. O clero caiu na mais completa desordem, de modo que numa hora de desalento o Imperador Henrique III pôde exclamar com razão: “Todas as ordens da Hierarquia eclesiástica, desde os chefes até os ostiários, estão submersos sob o peso de sua danação, e o banditismo espiritual a tudo domina”.

São Gregório VII reagiu energicamente contra esse estado de coisas. Toda a sua vida, mesmo antes de eleito Papa, consagrou-a ele à extirpação da simonia e do nicolaísmo do seio da Igreja. Encontrou oposições tenazes, entre as quais a do Imperador Henrique IV foi a mais violenta, mas esteve bem longe de ser a única. Por toda a Europa se organizaram núcleos de resistência que procuravam impedir a obra gigantesca da reforma. Para combatê-los, surgiram mosteiros cuja admirável participação nessa luta é notória, e associações ainda pouco conhecidas mesmo de muitos historiadores. Mereceriam estas melhor estudo, não só por constituírem autênticas glórias do Catolicismo, como também porque tal estudo lançaria muita luz sobre a história do século XI.

A Lombardia foi um desses núcleos que se opuseram à reforma gregoriana. Milão, a cidade principal da região, fora frequentemente residência dos imperadores romanos e tivera arcebispos ilustres, entre os quais basta relembrar Santo Ambrósio. A importância política da arquidiocese milanesa, o brilho e o prestígio da sua história, os serviços inumeráveis que prestara à Religião lhe haviam assegurado uma posição de relevo na Hierarquia católica. Mas, como Constantinopla, dominada pelo orgulho ela passara a se arrogar uma autonomia incompatível com a organização da Igreja, disputando a Roma direitos que não lhe pertenciam.

A nobreza de Milão era poderosa e usurpara o direito de indicar ao Imperador o arcebispo a ser nomeado quando vagava a sede ambrosiana. Os outros cargos eclesiásticos eram vendidos sem o menor escrúpulo, chegando-se ao extremo de cotá-los no mercado local. Na moeda do tempo, o numi, o subdiaconato custava 12, o diaconato 18, e 24 o presbiterato. A par disso, a corrupção moral dominava a cidade. O próprio clero fora atingido por ela do modo mais vergonhoso. São Pedro Damião proclamava que o clero milanês estava profundamente corrompido, e que vários padres que levavam má vida procuravam desculpar os piores excessos com textos das Sagradas Escrituras e invocando a fraqueza humana.

Para combater esses desvios, organizaram os católicos fervorosos da cidade uma associação conhecida como Pataria, que deu à Igreja dois santos e um Papa: Santo Arialdo, Santo Eslembaldo e Alexandre II, este último antecessor imediato de

São Gregório VII no sólio pontifício. Vamos dedicar uma série de artigos à história dessa associação.


NOVA ET VETERA

O ALIADO INCERTO

J. de Azeredo Santos

Segundo uma visão ingênua e excessivamente esquemática do panorama internacional nos dias que correm, o mundo estaria dividido entre dois gigantescos blocos opostos per diametrum: de um lado o imperialismo soviético, de outro o imperialismo norte-americano, ambos tendo atrás de si toda uma enorme esfera de influência.

Que as coisas não se passam com esta simplicidade, a realidade, gritante se encarrega de o demonstrar ao nosso entendimento. Mas, se além de exercermos o elementar ofício de manter os olhos abertos, nos dermos ao trabalho de encarar os fatos à luz do fenômeno que se chama Revolução, fácil nos será descobrir os fios que compõem essa ciclópica trama que envolve todo o orbe, e assim chegar à conclusão de que a separação dos campos não é tão nítida quanto a apresenta a propaganda dirigida.

DUAS FRENTES REVOLUCIONÁRIAS

A figura da quinta-coluna se tornou clássica desde o início da segunda guerra mundial. Verdadeiro Proteu, não é somente de turista que a Revolução se fantasia. Se é universal e satânica, se seu propósito é, segundo Leão XIII, «destruir até os fundamentos toda a ordem religiosa e civil estabelecida pelo Cristianismo, levantando à sua maneira outra nova, com fundamentos tirados das entranhas do naturalismo», o fato de agir de modo mais claro e descabelado por detrás da cortina de ferro e da cortina de bambu não exclui sua atuação por métodos mais velados e cautelosos no mundo ocidental.

Vez por outra deparamos com espíritos lúcidos aos quais não escapam estas verdades. Assim é que o Sr. John BiggsDavison, combativo membro da bancada conservadora no Parlamento britânico, em seu recente livro «The Uncertain Ally» (Ed. Christopher Johnson, Londres, 1957), passa em revista certos aspectos vitais da história do mundo, desde 1917, ao surgirem os Quatorze Pontos de Wilson, ao ano de 1957, quando foi formulada a doutrina Eisenhower, focalizando de modo especial o papel aparentemente contraditório da política norte-americana nos grandes acontecimentos que sacudiram a humanidade nesse período. São os Estados Unidos esse «aliado incerto» que, por assim dizer, desmancha com a mão esquerda o que faz com a direita.

Explicando o processo mediante o qual a Revolução tenta formar aquilo a que Wendell Wilkie deu o nome de «um Mundo só», visado pelo internacionalismo liberal na América e pelo comunismo internacional na União Soviética, mostra o autor que, haja ou não a Revolução comunista alcançado o seu Termidor, os Estados Unidos, como outros países do mundo ocidental, estão se tornando cada vez mais socialistas e igualitários, enquanto a Rússia permanece totalitária. E acrescenta. «Em todas as sociedades humanas as ideias e teorias sofrem uma certa defasagem em relação aos fatos e acontecimentos, e assim é que o bolchevismo marxista ortodoxo pode palmilhar o caminho do áspero individualismo da história e do mito americano. A livre-empresa permanece o orgulho e a base da economia dos Estados Unidos, mas o New Deal e o Fair Deal fizeram profundas incursões nos redutos do capitalismo privado. Os sindicatos cresceram assustadoramente e as fortunas pagam um pesado tributo através da taxação fiscal e dos encargos sociais. As entidades estatais e os organismos internacionais dominados pela América do Norte assumiram muitas das funções anteriormente desempenhadas pelo capital e pela finança privada. Mais que em outros lugares, escreveu André Siegfried, a sociedade na América é a sociedade de um homem, e é nesse mesmo homem que sua força econômica repousa... A procura da eficiência desce a mesma rampa coletivista em Pittsburgh e em Magnitogomsk» (obra cit., pp. 20-21).

FALSOS PRINCÍPIOS IGUALITÁRIOS

Na vida internacional a política norte-americana procura inculcar esse mesmo ideal individualista e igualitário, sobretudo através da inclusão, nos tratados, de uma cláusula que impõe a não-discriminação econômica, ou proibição de tratamento preferencial, tentando assim destruir aquilo a que se pode chamar uma comunidade orgânica de povos, para dar curso forçado «à heresia sem alma do laissez-faire». Em outros termos, alegando o princípio tão santo de que todos os povos se devem um auxilio mútuo desinteressado, chega-se sofisticamente à conclusão de que todos eles têm igual direito a este auxilio, sem preferências fundadas em proximidade de origem, em comunidade de ideais, etc. Ora, diz o autor, pela atuação prática da não-discriminação econômica entre os povos, «o patriotismo generoso é amargamente transformado em um estreito e suspeito nacionalismo; o agrupamento das nações, com ideais ou interesses comuns ou ligadas pela História e pela geografia, é deformado ou frustrado». E o veneno procura uma saída: o demagogo ou a junta discricionária é guindada ao poder.

Qual a razão que impede, no terreno político ou econômico, de dispensar tratamento preferencial a determinado pais, uma vez satisfeita a justiça e cumpridos os deveres de humanidade no trato com os demais? Nenhuma existe, a não ser que a procuremos na obsessão revolucionária da igualdade, o que leva o autor a afirmar: «A não-discriminação é um princípio cosmopolita, tão revolucionário quanto o internacionalismo dos comunistas. O fim lógico é o mesmo: o império mundial incompatível com o governo por consentimento, ou seja, a Catástrofe Mundial. É um erro pernicioso da mesma ordem que a ilusão internacionalista de que a soberania nacional é causa de conflito. Há uma concepção sem alma, de que a nação é um fenômeno transitório e primitivo fadado a ser submergido em um Superestado. É isto mero determinismo (...). Ignora a natureza orgânica das sociedades humanas. A família tem seu domínio próprio que as leis de Deus e da natureza decretam inviolável pelo Estado. A nação é uma família maior com alguma coisa especial para oferecer à riqueza e à civilização dos homens» (obra cit., p. 196).

Mesmo um princípio legítimo, como é o da autodeterminação dos povos, vem sendo farisaicamente invocado pelos falsos líderes do Ocidente para acobertar seu jogo pro- Revolução. Mostra o autor como em sua aplicação prática se usam dois pesos e duas medidas, dando como exemplo elucidativo o contraste entre a atitude da ONU na Hungria e no Egito.

E todo esse conjunto de atuações no campo internacional por parte desses estranhos líderes do Ocidente livre tem dado invariavelmente como resultado o alargamento do campo de influência do comunismo soviético, como no caso do Extremo Oriente, do Oriente Próximo, das colônias africanas.

UM MUNDO VERDADEIRAMENTE LIVRE

Impossível resumir em um simples rodapé toda a massa de informações e toda a argumentação cerrada que nos oferece esse substancioso livro, ao qual não falta um sem número de citações nas quais «os vilões e os heróis falam por si mesmos», segundo a pitoresca expressão do autor.

Mas, ao encerrar, queremos deixar bem clara nossa posição em face deste palpitante assunto. Diante dos avanços do comunismo soviético, com suas linhas auxiliares constituídas pelos movimentos esquerdistas de vários matizes espalhados por toda parte, não descremos da capacidade de resistência do mundo livre. Entretanto, para que essa resistência não se veja minada pela retaguarda, e para que tenhamos um verdadeiro mundo livre, necessário se torna que vozes corajosas como a do autor de «The Uncertain Ally» se levantem para denunciarem os embustes dos falsos pregoeiros de «um Mundo só» que se acha nos antípodas daquele «Ut omnes unum sint» (Jo. 17, 21), derradeira súplica, do Divino Salvador a seu Pai pela pobre humanidade neste peregrinar pela terra.