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A Ordem de Malta nas comemorações paulinas em Malta: cavaleiros assistem um dos atos; chefes das delegações de vários países; o chefe da delegação britânica e Sir Grantham, Governador da ilha.

S. A. R. O DUQUE DE BRAGANÇA FALA SOBRE A ORDEM SOBERANA DE MALTA

Reportagem de Frederico de Sá Perry Vidal

Fotos de S. A. R. o Sr. D. Duarte

A Soberana Ordem Militar de Malta constitui uma das mais altas tradições da civilização cristã. Tradição no sentido preciso em que Pio XII empregava a palavra, isto é, um legado do passado, cheio de vitalidade e de porvir. Nimbada pelas gloriosas recordações das Cruzadas, a Ordem de Malta, fiel a seu ideal cavalheiresco, deve ser vista em seu aspecto hodierno sob dois ângulos de grande importância. Está em sua missão receber em seu grêmio os elementos constitutivos da nobreza católica, a fim de os formar religiosamente e os arregimentar para a luta em prol da civilização cristã. Quanto à importância atual desta atividade, dizem bem os discursos de Pio XII e João XXIII à nobreza e ao patriciado de Roma. De outro lado, a Ordem se vale de seus recursos patrimoniais e das contribuições que lhe são enviadas do mundo inteiro, para "servir os pobres de Jesus Cristo — como rezam as suas Constituições — exercendo as obras de misericórdia, particularmente através da assistência sanitária, em tempo de paz e de guerra". Esta cooperação de grandes em favor de pequenos, à qual todos reconhecem alto grau de eficiência, tem um real valor simbólico nesta época em que o mito da luta de classes precisa ser combatido não só com palavras como com fatos.

Emersa felizmente de longa e dolorosa crise, a Sagrada Milícia participou com relevo nas brilhantes comemorações com que a Ilha de Malta, que ela; outrora governou, celebrou o XIX centenário da passagem do Apóstolo São Paulo. Sua importante participação nessas comemorações constituiu uma reafirmação da pujança e da unidade da Ordem, bem como de seu tradicional acatamento à Santa Sé.

Os leitores de "Catolicismo", aos quais naturalmente o assunto tanto interessa, terão o prazer de se inteirar dele através do depoimento de uma testemunha altamente qualificada.

Como Bailio Grã-Cruz, que é, da Ordem, tomou parte nas solenidades Sua Alteza Real o Príncipe D. Duarte, Duque de Bragança e Chefe da Casa Real Portuguesa.

O ilustre Cavaleiro de Malta, descendente do Beato Nuno Álvares Pereira, e cujo nome lembra tantos fastos da história da Igreja, de Portugal e do Brasil, é casado com uma brasileira, S. A. R. a Princesa D. Francisca de Orleans e Bragança, e representa uma tradição respeitada por brasileiros e portugueses de todos os quadrantes políticos. O Duque de Bragança faz-nos a honra de ser leitor atento e assíduo de "Catolicismo". Assim, aquiesceu S. A. R. em dar ao nosso jovem e talentoso amigo luso, o Sr. Frederico de Sá Perry Vidal, uma entrevista para esta folha, relembrando as referidas solenidades.

Na oportunidade dessa entrevista, desejou o Príncipe proporcionar aos leitores de "Catolicismo" a boa nova de uma eventual restauração da autonomia da Ilha de Malta sob a égide da Ordem, embora mantendo estreita colaboração com a Inglaterra. E ao mesmo tempo quis exprimir seu amável anelo de que se difunda esta folha em Portugal, especialmente entre os jovens.

Apresentando aqui ao ilustre entrevistado o testemunho de todo o nosso reconhecimento por sua deferência para com "Catolicismo", desejamos agradecer também ao Sr. Frederico de Sá Perry Vidal, jornalista, escritor e conferencista português dos de maior destaque na nova geração, a gentileza de se haver constituído nosso repórter voluntario para tão alta entrevista.

SAO PEDRO DE SINTRA (Portugal) — Creio ser esta a primeira entrevista publicada em «Catolicismo» e concedida por um Português a um português.

Dois fatos iniciais me provocaram o desejo de realizá-la: a posição única de «Catolicismo» no mundo da imprensa dos nossos dias, e o meu conhecimento da admiração que Sua Alteza Real o Senhor D. Duarte dedica a este jornal.

Depois, firmou-se-nos a convicção de que a relevância do tema e das opiniões de Sua Alteza Real despertariam justo interesse nos leitores de «Catolicismo».

Ante a honrosa anuência de Sua Alteza Real e a concordância manifestada por esta folha, só me resta a certeza de que, para tão bela tarefa, seria justo que esta entrevista fosse realizada por quem possuísse os méritos indispensáveis de que careço.

PORTUGAL DEVE AOS REIS SUA EXISTENCIA COMO NAÇÃO

A Sereníssima Casa de Bragança, iniciada pelo feliz consorcio de D. Afonso, filho de El-Rei D. João I, e de D. Beatriz, filha do Santo Condestável D. Nuno Álvares Pereira, e na qual «não há Rei ou Príncipe na Europa que se não orgulhe de nela entroncar», possui hoje a representação condigna da grandeza que desde o século XV a caracteriza.

Por isso mesmo, e pela própria autoridade de que se reveste, a voz de Sua Alteza Real o Senhor Duque de Bragança despertará nos leitores de «Catolicismo» a atenção a que tem jus. O Duque de Bragança, até que em 1640 cingiu, por direito próprio e por voto unânime da Nação, a coroa de Portugal, foi, ao longo de toda a gloriosa Dinastia de Aviz, o mais poderoso fidalgo português.

Depois, o título coube sempre ao primogênito do Rei, até que, pela morte sem descendência de El-Rei D. Manuel II, a herança do trono de Portugal pertenceu a Sua Alteza Real

Senhor D. Duarte, na pessoa de quem estavam já então reunidos os legítimos direitos à coroa portuguesa, de Seus Augustos Pai e Irmão mais velho, como Filho e Neto que eram, de El-Rei D. Miguel I.

Hoje, como ontem, o Duque de Bragança, Herdeiro do trono de Portugal, é um Príncipe em cujo coração pulsa o mais encendrado amor à Sua terra, cimentado pelo magnífico exemplo de todos os Seus maiores que, como Senhores do Ducado de Bragança, como Reis de Portugal e como Príncipes no exílio, souberam sempre ter o bem e a honra da Nação, como o primeiro dos seus cuidados mais instantes.

No mundo atual, varrido pelas paixões mais desvairadas, as doutrinas políticas imperantes negam aos Príncipes o direito que têm de atuar, e de se pronunciarem com o equilíbrio, a ponderação e o sentido de justiça de que particularmente são dotados, graças, em grande parte, àquele saber de experiência feito, de que fala o poeta.

No entanto, é curioso notar que, muito embora nada se lhes queira pedir, paradoxalmente tudo se lhes exige.

Por isso mesmo, a atuação dos Príncipes, que verdadeiramente o sabem ser, enche de júbilo quantos consagram à tradição monárquica uma bem justificada dedicação.

Portugal, como a grande maioria dos povos europeus, deve aos seus Reis a própria existência como Nação.

A Casa de Bragança é o penhor dessa mesma dívida.

Dizem-no a atuação dos primeiros Duques, as nobilíssimas atitudes da Duquesa D. Catarina, em 1580, e do Duque D. João, em 1640, e confirma-o enfim o exemplo da vida austera de Sua Alteza Real o Senhor D. Duarte.

ASPECTOS DOMINANTES DE UMA NOBRE PERSONALIDADE

Agora, que o atual Duque de Bragança fala para «Catolicismo», parece-me oportuno recordar as facetas dominantes da personalidade de Sua Alteza Real.

Nasceu o Senhor D. Duarte no Castelo de Seebenstein, no Baixo Danúbio, a 23 de setembro de 1907, em quarto atapetado de terra portuguesa, e foi batizado com água de Guimarães.

O lar profundamente católico e caracteristicamente português em que nasceu, exerceu natural influência no caráter de Sua Alteza Real, que desde a primeira infância compreendeu a razão de ser da total dedicação à Pátria distante.

Em 1920 recebeu de Seu Pai e de Seu Irmão mais velho a sagrada herança dos direitos ao trono português e, desde então, o único fito da laboriosa existência de Sua Alteza Real tem sido contribuir para o prestigio de Portugal, cônscio dos deveres que lhe assistem e que foram singularmente reforçados quando, em 1932, faleceu sem descendência o Senhor D. Manuel II.

Nesse mesmo ano, a Causa Monárquica aclamou Sua Alteza Real o Príncipe Senhor D. Duarte, Duque de Bragança, herdeiro da coroa de Portugal, com o nome de D. Duarte II.

A educação de Sua Alteza Real foi realizada com os maiores cuidados, e fiel, como sempre, aos interesses da Pátria, resolveu fazer o curso de engenheiro agrônomo, pelo que passou a viver em Toulouse, em cuja Universidade se formou.

Certo dia, quando um português percorria aquela cidade francesa, na companhia de um habitante seu amigo, disse-lhe este, apontando determinado prédio: «Naquela casa mora um rapaz da sua terra que está fazendo um curso brilhante». Tratava-se justamente do Senhor. D. Duarte.

Depois, pela primeira vez e sob o mais rigoroso incógnito, visitou Portugal, aonde voltou mais tarde para se dirigir ao Brasil, que percorreu demoradamente, e onde ficou noivo de Sua Prima, a Princesa D. Maria Francisca, bisneta do Imperador D. Pedro II e filha de Sua Alteza Imperial e Real o Príncipe Senhor D. Pedro de Alcântara de Orleans e Bragança, realizando-se o casamento na Catedral de Petrópolis, em 15 de outubro de 1942.

Em 1940 o Governo Português convidou Sua, Alteza Real o Senhor Duque de Bragança a fazer-se representar nas comemorações do duplo centenário da Fundação e da Restauração da Monarquia Portuguesa.

Foi assim que Sua Alteza Real a Senhora Infanta D. Filipa de Bragança, irmã do Senhor D. Duarte, esteve presente em todas as grandes cerimônias daquelas comemorações, representando o Duque de Bragança, residindo no Palácio de Queluz e recebendo as mais expressivas homenagens da Nação.

Sua Alteza Real o Senhor D. Duarte tem visitado todos os países da Europa, e depois do Seu casamento, até à data da revogação da Lei do Banimento, viveu em Gunten, na Suíça, onde nasceram Seus três Filhos, D. Duarte, Príncipe da Beira, afilhado de Sua Santidade o Papa Pio XII e de sua Majestade a Rainha D. Amélia, viúva de El-Rei D. Carlos I, e os Senhores Infantes D. Miguel e D. Henrique.

Os dois Príncipes mais velhos são atualmente alunos do Colégio Militar de Lisboa.

Revogada a Lei do Banimento, a Família Real Portuguesa passou a residir em Vila Nova de Gaia, junto do Porto, e hoje habita o Palácio de São Marcos, próximo de Coimbra.

Uma vez em Portugal, o Senhor D. Duarte está diariamente a par de todos os problemas nacionais, e dos estrangeiros que possam interessar ou refletir-se em nosso País.

Estuda, medita, conhece como poucos as grandes correntes do pensamento contemporâneo.

Tem percorrido Portugal de norte a sul, e embora tivesse já visitado Angola e a Guiné portuguesa, realizou há dois anos, acompanhado de Sua Alteza Real a Senhora Duquesa de Bragança e dos Príncipes Seus Filhos, uma demorada viagem ao Ultramar português, para conhecer de perto as maiores parcelas do Império e ensinar a Seus Filhos a lição prodigiosa de portuguesismo que é todo o nosso Ultramar.

Em São Marcos, ou nos pontos para onde se desloca, Sua Alteza Real o Senhor Duque de Bragança recebe, em cada ano, a saudação de muitos milhares de portugueses.

Finalmente, em 1960, assistiu pessoalmente, como lídimo representante do Infante D. Henrique, às cerimônias evocativas do V centenário da morte do Príncipe Navegador, e neste ano de 1961 tem participado nas celebrações realizadas em todo o País, comemorando o VI centenário do nascimento do grande Condestável-Santo, D. Nuno Álvares Pereira, de quem provém, como já referi, a Sereníssima Casa de Bragança.

Sempre atento às reais manifestações do espírito, bem se compreende, portanto, o interesse que despertaram em Sua Alteza Real as solenidades comemorativas do XIX centenário da chegada do Apostolo São Paulo à Ilha de Malta, nas quais tomou parte a Ordem que governou aquela ilha desde 1530 até 1799.

Sua Alteza Real, Bailio Grã-Cruz de Honra e Devoção da Ordem de Malta, descendente e representante dos Reis Fidelíssimos, herdeiro do trono de Portugal, país que deu à Sagrada Milícia quatro Grão-Mestres, os quais se desempenharam de forma relevante da honrosa missão que lhes foi conferida, não podia, em boa verdade, estar ausente de tão significativa reunião.

«Catolicismo», ao publicar as palavras que lhe foram confiadas por Sua Alteza Real, presta à Ordem Militar e Soberana de São João de Jerusalém a homenagem que o seu passado grandioso e o espírito que atualmente a orienta — um e outro votados sempre à gloria de Deus e da Sua Igreja — plenamente justificam.

QUATRO GRÃO-MESTRES DA ORDEM DE MALTA FORAM PORTUGUESES

As relações entre Portugal e a Ordem de Malta datam de há muitos séculos.

Sua Alteza Eminentíssima o Grão-Mestre Príncipe Ludovico Chigi salientou a importância dessas relações quando em Roma, em novembro de 1935, conferiu a Sua Alteza Real o Senhor Duque de Bragança o grau de Bailio Grã-Cruz de Honra e Devoção da Ordem Militar e Soberana.

O Príncipe Chigi, figura admirável, que ao longo de tantos anos, até falecer, desempenhou as referidas funções, salientou então que a admissão do Chefe da Casa de Bragança era uma honra para a Ordem de Malta, pois deste modo se reatava uma velha e gloriosa tradição.

De fato, a Ordem foi grande e nobilíssima na terra portuguesa. A cruz branca de oito pontas, que é sua insígnia, foi ostentada no peito e nos brasões de armas de muitos portugueses ilustres, e ainda hoje pedras armoriadas e monumentos antiquíssimos apresentam a cruz de Malta — símbolo imperecível de grandeza e de dignidade nunca desmentidas.

Deu Portugal à Sagrada Milícia quatro Grão-Mestres, como referi. Foram eles D. Afonso de Portugal, Luís Mendes de Vasconcelos, D. Antonio Manuel de Vilhena e Manuel Pinto da Fonseca.

De entre todos, permito-me salientar Manuel Pinto da Fonseca, que exerceu o cargo de 18 de janeiro de 1741 até à sua morte, ocorrida em 24 de janeiro de 1773, quando contava 92 anos de idade, dando assim lugar a um dos mais longos governos verificados na história da Ordem, e durante o qual pôs à prova, de forma bem expressiva, a inteligência, a ponderação e o tacto diplomático de que era superiormente dotado.

Hoje, a Milícia de Malta tem sede em Roma e reúne no seu seio a melhor nobreza europeia. A Assembleia Portuguesa, uma das mais distintas, foi presidida, durante longos anos, pelo Senhor Conde das Alcaçovas, há pouco falecido e que no referido cargo acaba de ser substituído pelo Senhor Conde de Vila Flor e de Alpedrinha, descendente do Grão-Mestre D. Antonio Manuel de Vilhena.

NOS PARAMENTOS DO CARDEAL LEGADO O BRASÃO DE PINTO DA FONSECA

O sol doirava a Casa de São Marcos quando atravessei o grande portão senhorial que lhe dá acesso.

A paz de Deus ocupava todo o espaço, as aves meditavam seus cânticos de crepúsculo e eu detive-me, como sempre, emocionado pela certeza de que em breve estaria na presença do Príncipe.

Eu sabia que o Senhor D. Duarte se ocupava dos múltiplos problemas que o absorvem, ou que estaria, talvez, respondendo prontamente à correspondência numerosa que todos os dias recebe.

Sabia também que a um Príncipe não se dirigem perguntas, e não desconhecia o interesse que o Senhor Duque de Bragança dedica a «Catolicismo».

Avancei pois, a passos largos, na ânsia de rever, de cumprimentar e de ouvir o Príncipe generoso e bom que se prontificava mais uma vez a receber-me.

Transpus o vestíbulo, percorri a esplêndida biblioteca.

Quando me curvei diante de Sua Alteza Real que me estendia a mão, transformou-se em alegria a emoção contida, graças ao sorriso do Senhor D. Duarte que já me perguntava se correra bem a minha viagem desde Lisboa.

Depois, com a simplicidade que sempre me encanta, Sua Alteza Real dirigiu a conversa, ofereceu-me cigarros e comentou os isqueiros que não gostam de apresentar a sua chama ao primeiro apelo dos fumantes...

Agradeci então a honra de ser recebido e a tão pronta aquiescência de Sua Alteza Real em conceder uma entrevista a «Catolicismo».

E logo fui interrompido:

- Se «Catolicismo» reconhece interesse em registrar as minhas impressões, bem merece que eu lhas confie. É um jornal admirável que deve ser lido pelos portugueses e, sobretudo, pela juventude da nossa terra.

- Meu Senhor, «Catolicismo» esforça-se por bem servir. As palavras que acabo de escutar serão um poderoso incentivo para que continue, sem desfalecimento, a tarefa que se impôs.

Por isso mesmo — prossegui — a Ordem de Malta, que se mantém inalteravelmente fiel aos princípios que a regem, merece a sua admiração, e as palavras de Vossa Alteza Real serão singularmente oportunas neste momento em que, mais do que nunca, as forças do mal procuram derrubar os mais sólidos sustentáculos da civilização cristã.

- Sim, a Ordem de Malta mantém uma vitalidade admirável e, se não pode já ombrear com as nações em poderio, a sua ação benfazeja é extraordinária.

Como sabe, as cerimônias que se realizaram em Malta e a que assisti, tiveram por objetivo comemorar o décimo nono centenário do desembarque do Apóstolo São Paulo naquela ilha. As comemorações foram promovidas pelo Episcopado local e a Ordem de Malta quis prestar-lhe a colaboração que se impunha.

As celebrações foram grandiosas e bem significativas. Começaram a 20 de julho, com Missa na Capela do Forte de São Telmo, celebrada por Mons. Gonzi, Arcebispo de Malta.

Nessa mesma tarde assistimos, na Catedral de São João, em La Valeta, à chegada e recepção do Cardeal Luiz José Muench, Legado de Sua Santidade o Papa, — e voltando-se para mim mais vivamente, Sua Alteza Real observou: — Disse assistimos porque, como creio que sabe, eu não fui só.

— Sim, Meu Senhor, respondi, sei que Sua Alteza Real a Senhora Duquesa de Bragança também foi, como não podia deixar de ser, além do mais, por ser Dama Grã-Cruz de Honra e Devoção da Ordem de Malta.

O Príncipe sorriu, acendeu outro cigarro e disse-me:

- É certo! E acompanhou-nos o Conde de Campo Bello, Bailio Grã-Cruz da Ordem.

Foi então que sorri também, para informar Sua Alteza Real de que ao Senhor Conde de Campo Bello ficara devendo quanto já sabia a respeito da reunião de Malta.

- No dia seguinte — continuou o Senhor D. Duarte — incorporamo-nos na grandiosa procissão que, saindo da Catedral de Mdina, antiga capital da ilha, se dirigiu para a praça onde o Cardeal Legado celebrou Missa campal vespertina. Foi uma cerimônia imponentíssima. Depois formou-se nova procissão até à gruta, onde viveu São Paulo, segundo reza a tradição.

Quero também dizer-lhe que os riquíssimos paramentos utilizados pelo Eminentíssimo Cardeal Legado tinham o brasão de armas do Grão Mestre Manuel Pinto da Fonseca.

- Eram, certamente, Meu Senhor, os mais ricos paramentos existentes, uma vez que foram utilizados pelo próprio Representante do Sumo Pontífice, — permiti-me observar.

- Sim, sem dúvida, de resto os Grão-Mestres portugueses deixaram bem vincada sua passagem por Malta. A Biblioteca Pública foi também fundada por Pinto da Fonseca, a quem se deve ainda o Palácio dos Grão-Mestres, onde nos foi oferecida uma recepção pelo Governador, Sir Grantham, e por Lady Grantham. Esse Palácio é hoje a sede do Governo da ilha.

Outro edifício magnífico é o Palácio Verdalle, antiga residência de verão dos Grão Mestres. Foi nos seus jardins que se realizou o jantar e a recepção em que fomos convidados dos Cavaleiros de Malta residentes na ilha

No segundo dia das comemorações, e além da recepção do Governador e do jantar no Palácio Verdalle, de que já lhe falei, visitamos, à tarde, o Hospital de São Vicente de Paulo; em cuja esplanada se celebrou Missa.

Como vê, o programa foi intenso.

- Sem dúvida, Meu Senhor, mas sem pensarmos na emoção que a visita a todos estes lugares históricos provoca, estou certo de que o poderemos considerar ainda bem mais intenso...

- Sim, tem razão, retorquiu amavelmente Sua Alteza Real, mas, já que está tão interessado, vou contar-lhe o resto.

- Como o agradeço, Meu Senhor.

- No outro dia, a convite dos Cavaleiros britânicos, assistimos à Missa na Capela do Forte de Santo Ângelo, seguida de recepção na residência do Comandante do Forte.

Por fim, a 24 de julho, saiu da Catedral de São João uma procissão, em que nos incorporamos, e que se dirigiu para St. Publius's Square. Nessa praça grandiosa, a dois passos da estátua do Grão-Mestre português D. Antonio Manuel de Vilhena, se encerraram as comemorações, e não podiam ter tido melhor remate, pois ouvimos o discurso que nos foi dirigido pelo Santo Padre João XXIII.

E, concluiu Sua Alteza Real com a maior afabilidade, creio que já sabe tudo.

Mas logo retomou a palavra para acrescentar:

- Não lhe disse que, além dos monumentos a que me referi, e da Biblioteca Pública, também visitei a Armaria, que é das primeiras senão a primeira de todo o mundo, e que percorri com o maior interesse a Catedral, que tanto fala ao nosso coração, e onde estão os grandiosos túmulos dos portugueses que foram Grão-Mestes de Malta.

VOLTARÁ A ILHA DE MALTA A SER GOVERNADA PELOS CAVALEIROS?

Com que interesse ouvira eu toda a narrativa, ao longo da qual tive o privilégio de assistir ao desenrolar imponentíssimo das comemorações paulinas.

Parecia-me ver, sob o sol de Malta, o refulgir rico do ouro velho dos paramentos do Eminentíssimo Cardeal Legado, ostentando as armas de Pinto da Fonseca, e depois o desfilar dos Cavaleiros, cientes da responsabilidade grave, que a própria dignidade da Ordem a todos naturalmente impõe.

Como que seguindo a linha do meu pensamento, Sua Alteza Real o Duque de Bragança disse-me, com visível satisfação:

- Não pense, no entanto, que a Ordem de Malta vive apenas da contemplação das glorias passadas.

Bem pelo contrário, dedica-se ela, com singular atividade, a obras sociais e de assistência. Dispõe em Roma de um excelente hospital, e a sua ação estende-se por clínicas, hospitais e creches nos mais diversos pontos do mundo.

- É, sem dúvida, Meu Senhor, uma obra admirável. Creio mesmo que está relacionada com os serviços tradicionalmente prestados pelos Cavaleiros de Malta à Religião Católica.

Sua Alteza Real disse-me então:

- A função primaria da Ordem de Malta, desde a sua fundação, tem sido sempre a assistencial, adaptada às necessidades das sucessivas épocas e às características especiais de cada povo.

Largo campo lhe está, portanto, aberto ainda hoje em Portugal, quer na Metrópole, quer no Ultramar.

O mais alto serviço que ela presta à Igreja Católica e à humanidade é justamente o de desenvolver essa sua finalidade, ou seja, pôr em pratica o mais sublime dos preceitos — o da caridade, prestando socorros efetivos, no gênero dos da Cruz Vermelha e da Caritas, em ocasiões de guerra ou de calamidades públicas.

Mas ainda sob o aspecto social a sua ação se torna benfazeja, dado o cuidado escrupuloso que deve presidir à admissão de novos membros, pois, a despeito de todas as vicissitudes dos nossos dias, representa ela ainda uma apreciável reserva de altos valores morais.

- Muito obrigado, Meu Senhor, por tão ampla explicação; afigura-se-me que estou compreendendo o motivo que levou a Ordem de Malta a criar missões diplomáticas em diversos países.

Sua Alteza Real o Duque de Bragança esclareceu logo:

- A começar pela Santa Sé, são muito numerosos os Estados que mantêm relações diplomáticas com a Ordem de Malta, que é uma potência espiritual soberana.

Em muitas nações, não só da Europa como também da América, existem legações da Ordem. Em Portugal, o Ministro é o Conde Alvise Emo-Capodilista, pessoalmente ligado ao nosso País por laços de sangue. O objetivo dessas legações é precisamente incrementar o desenvolvimento das obras assistenciais colocadas sob o patrocínio da Ordem.

Depois de uma breve pausa, Sua Alteza Real dignou-se fazer-me — e a «Catolicismo» — uma revelação de extraordinário interesse:

- Julgo haver razões para novamente alimentarmos a esperança de que a Ilha de Malta, num futuro próximo e embora mantendo uma estreita colaboração com a Grã-Bretanha, readquira a sua autonomia sob a égide da Soberana Ordem de Malta. Aquela grande potência conservaria ali a sua base naval e, por seu turno, os Cavaleiros de Malta, espalhados pelo mundo, teriam de colocar à disposição da Ordem, não só as personalidades capazes de formar um governo, como ainda uma contribuição financeira muito maior para o manter.

E prosseguiu:

- Torna-se escusado salientar as enormes vantagens que essa soberania de fato traria aos habitantes da ilha e, muito em especial, àqueles que fossem admitidos como seus súditos.

Sensibilizado, agradeci a Sua Alteza Real o Senhor D. Duarte a revelação que acabava de ter a bondade de fazer-me, e ainda por dedicá-la a um órgão da imprensa do Brasil, país onde está também representada a Ordem.

- Existem atualmente bastantes membros brasileiros da Ordem de Malta — disse-me Sua Alteza Real. Infelizmente, nenhum compareceu às cerimônias paulinas de 1960, o que profundamente lamentamos.

Depois de agradecer tão esclarecedoras informações, referi a Sua Alteza Real a minha admiração pela Ordem de Malta, e quanto me emocionara, um dia, ao ver Sua Alteza Eminentíssima o Príncipe Chigi, o único Grão-Mestre de Malta que jamais conheci.

- Quando o viu? — perguntou-me Sua Alteza Real o Senhor Duque de Bragança.

- Em 1951, Meu Senhor, quando Sua Eminência o Cardeal Tedeschini veio a Portugal, como Legado a latere de Sua Santidade o Papa Pio XII, para encerrar, em Fátima, as comemorações do Ano Santo.

- Então, foi em Fátima...

- Não, Meu Senhor, foi nos Jerônimo, na inauguração solene da Exposição de Arte Sacra Missionária. Mas — acrescentei — lembro-me perfeitamente da atitude de Vossa Alteza Real para com o Príncipe Chigi, em Fátima...

- É verdade... Não fiz mais do que o meu dever, — volveu Sua Alteza Real, dando por concluída a minha referencia.

Mas, nesse instante, nas ombreiras de uma porta da sala, desenhou-se a figura esbelta de Sua Alteza Real o Príncipe da Beira.

Tinha acabado de chegar de Lisboa, vinha fardado de aluno do Colégio Militar.

Avançou rapidamente e beijou a mão de Seu Pai, tal como eu fizera há pouco ao meu Príncipe e como sempre fiz a meu Pai — que uma única vez teve a alegria de ver e saudar o Príncipe que tanto amou e que acabava de me conceder uma entrevista invulgar.

Depois, o Príncipe Real voltou-se para mim, estendendo-me a mão, e eu li em seus olhos todas as virtudes da raça: a energia, o valor e a decisão que fizeram Portugal.

Então, compreendendo talvez o meu silêncio, perguntou-me com desenvoltura:

De que falava?

Foi Sua Alteza Real o Duque de Bragança que deu a resposta:

- Do Príncipe Chigi, e de sua vinda a Fátima em 1957...

- E porque falava nisso? — volveu sagaz o Príncipe, olhando para mim.

- Porque me recordo, respondi eu, de que estava muito sol nesse dia, e de que o Príncipe Chigi, com mais de oitenta anos, não tinha nenhum toldo a defendê-lo. Foi então que alguém avançou, abriu um guarda-chuva, e prestou ao Grão-Mestre da Ordem de Malta um serviço inestimável...

- Quem foi?

- Foi o Pai de Vossa Alteza Real.

O Príncipe da Beira riu com excelente disposição, e no olhar que volveu para seu Pai brilhou, fugidia, uma centelha de admiração.

Mas o Senhor D. Duarte dizia já, que fora apenas um instante, e procurava diminuir o valor da sua atitude, reafirmando que cumpria, apenas, o seu dever.

É bem certo! Cumprir deveres — é função dos Príncipes. Seguir-lhes o exemplo — é obrigação nossa.

*

Quando, pouco depois, deixei São Marcos, parei em Santa Cruz de Coimbra. Junto do túmulo de D. Afonso Henriques ergui ao Céu uma prece de reconhecimento fervoroso pela plêiade admirável de Reis que deu a Portugal, e pela emocionante certeza de que essa plêiade gloriosa não teve ainda fim.