CEDER PARA NÃO PERDER TOLA, ILUSÃO COM QUE VENCEM AS REVOLUÇÕES
(continuação)
linguagem revelava um grande desejo de acomodação" (P. de La Gorce — ibid., p. 149). Muito característico foi o discurso em que o Arcebispo de Aix, oferecendo um subsídio extraordinário do Clero, juntou na mesma frase uma verdade histórica inegável e uma capitulação perigosa: "O Clero — disse o Prelado — nunca recusou, nas épocas difíceis, ajudar a coisa pública. Decida a Assembleia o que ele deve dar; ele se submeterá" (ibid., p. 150). A Assembleia nada respondeu.
Assim, "a propriedade eclesiástica teve duas espécies de campeões (na Assembleia): Maury, que a defendeu em bloco, e os outros deputados do Clero, que não a sustentaram senão com a idéia conformada de sacrificá-la em parte" (id., ibid., p. 148).
A Revolução gosta de usar a tática do conta-gotas, nunca pedindo tudo, e sempre pedindo mais um pouco. E inoculando em suas vítimas a tola ilusão de que devem "ceder para não perder". Desse modo, cedem elas gota a gota, até a total inanição. Por isto, o decreto que foi aprovado no dia dos mortos de 1789, por 568 votos contra 346, não espoliava formalmente a Igreja, mas rezava que os bens eclesiásticos ficavam "à disposição da nação". Esta fórmula vaga dava esperanças aos tímidos, abafava o grito das consciências. Afinal, pedia-se tão pouco... E, se não se cedesse agora por bem, depois talvez se perdesse tudo diante da violência. Pelo decreto, o Estado proveria às necessidades do culto, à manutenção dos ministros de Deus, ao socorro dos pobres... ah! os pobres... A lei, dizia-se para desculpar a falta de coragem de defender a Igreja, era uma simples lei de princípio, que só seria aplicada muito mais tarde, ou talvez nunca se aplicasse.
Enfim, mil escusas, mil atenuantes eram invocadas para ocultar a trágica verdade: o decreto, que atentava contra a propriedade, contra a justiça, contra a Igreja, não fora devidamente combatido pelos que deviam combatê-lo. Cedia-se tão pouco... Mas cedia-se! E a quem? A Revolução! Tendo-se cedido por bem para não perder tudo de modo violento, acabar-se-ia por perder tudo e por sofrer todas as violências.
É um mero decreto de princípio, diziam aliviados muitos católicos. Não há recear as consequências negras previstas por alguns contra-revolucionários pessimistas...
"Viu-se então aparecer pela primeira vez uma prática que se repetiria durante toda a Revolução. Consistia ela em obter da Assembleia votos de princípio que, parecendo destinados a uma aplicação remota, parecendo mesmo bastante inofensivos, seriam aceitos pelos elementos do centro; depois, utilizar-se-ia o princípio proclamado para tirar dele, peça por peça, todas as consequências" (id., ibid., p. 152). Foi exatamente o que se deu. Tiraram-se todas as consequências do decreto de novembro, até reduzir a Igreja ao desnudamento total, e então, nada mais havendo a roubar, pediu-se a vida dos Padres, monges e freiras. Mas tudo isso, repetimos, a conta-gotas. Cada novo decreto, isolado, parecia nada significar; somadas porém as consequências de todos, resultou o efeito catastrófico que a Historia registra.
No dia 7 de novembro, Monsenhor de Talleyrand pediu que o governo procedesse ao inventario dos bens da Igreja. Não logrou êxito, mas pouco depois outro deputado obteve um decreto que obrigou as comunidades eclesiásticas a declararem elas mesmas seus bens.
No mês seguinte puseram-se à venda imóveis do Clero e da Coroa até atingir a soma de 400 milhões. Em janeiro de 1790 foram sequestradas as propriedades dos titulares de benefícios eclesiásticos que residissem no Exterior. Esta medida evidentemente visava os emigrados.
Em fevereiro, todo beneficiado ficou obrigado a declarar seus benefícios dentro de um mês. Ao mesmo tempo facilita-se a renúncia dos votos religiosos solenes e proíbem-se novas profissões. Em março manda-se inventariar o patrimônio dos conventos masculinos.
Por fim, em abril de 1790, transferiu-se para a autoridade civil a administração dos bens da Igreja. Ao passar esta lei, declarou Tomás Lindet, o futuro bispo constitucional: "Senhores, o último golpe acaba de ser dado no clero".
O Episcopado ergueu então sua voz, grave e entristecida, contra essa medida extrema. Era tarde. Ainda em 1790, dois decretos autorizaram e depois impuseram a alienação geral dos bens eclesiásticos.
As exceções previstas foram pouco a pouco violadas: assim, venderam-se as propriedades das Ordens militares, os bens dos hospitais e estabelecimentos de caridade, e até os palácios episcopais...
*
Que diria, diante disso, Talleyrand? Que diriam os que, para não perder tudo, apoiaram ou não combateram, na Assembleia, o simples decreto de princípio, nascido da moção do corrupto Bispo de Autun?
Se depusessem com lealdade ante o tribunal da História, seriam forçados a reconhecer que os acontecimentos provavam quanto é ruinosa para os que a professam, a máxima "ceder para não perder". Sem ela não se fazem as revoluções.
REFORMA AGRÁRIA QUESTÃO DE CONSCIÊNCIA EM 30 DIAS
Em seu no 136, de abril p.p., «Catolicismo» noticiava que agricultores e pecuaristas de vários Estados, seguindo uma iniciativa que partiu de Bagé (RS), vêm subscrevendo manifestos em que se declaram contrários ao agro-reformismo expropriatório e socialista, e favoráveis a uma reforma agrária autêntica, exprimindo ao mesmo tempo sua solidariedade com as considerações feitas a esse respeito em RA-QC.
Esses documentos, endereçados aos Poderes públicos do País, reúnem até o momento mais de 3 mil assinaturas. Entre os mais recentes signatários se encontram centenas de fazendeiros do Estado de São Paulo, além de numerosos outros do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Rio Grande do Sul e Paraíba.
Dos 80 municípios onde já houve adesões a essa manifestação, cumpre destacar, além dos mencionados em nosso número de abril: Pouso Alegre, Uberaba e Uberlândia, em Minas Gerais; Campinas, Itapetininga, Guaratinguetá, Marília, Jundiaí, Votuporanga, Taquaritinga, Barretos, Piracicaba, Jabuticabal, Amparo, Araçatuba e Catanduva, em São Paulo; e Taquari, no Rio Grande do Sul.
Entre os signatários, além do ex-governador de Minas Gerais, Sr. Bias Fortes, e outros relacionados em nosso número aludido, se encontram o Prefeito e o Vice-Prefeito de Catanduva, o Prefeito de Urupês, o Vigário de Votuporanga, o Presidente da Câmara Municipal de Parapuã, os Presidentes das Associações Rurais de Araçatuba, Itapetininga, Monte Alto e Piedade, e o Vice-Presidente da de Jabuticaba! (SP), bem como grande número de vereadores e diretores de associações rurais de diversos municípios.
* Teve grande repercussão entre o numeroso público visitante a apresentação e venda de RA-QC na V Exposição-Feira de Gado Zebu e outras Raças de Corte, realizada. no Parque da Água Branca, na Capital paulista. Foi mais uma oportunidade para se verificar a grande simpatia que o livro dos Srs. Arcebispo de Diamantina, Bispo de Campos, Plinio Corrêa de Oliveira e Luiz Mendonça de Freitas vem encontrando nos meios rurais. Foram vendidos quase cem exemplares.
* O «trailer» de propaganda de RA-QC, com uma equipe constituída por Hagop Seraidarian, A. Ceron Neto e Giulio Folena, depois de percorrer o Triangulo Mineiro, esteve em Goiás, onde se patenteou mais uma vez a receptividade dos fazendeiros para com a obra. Na volta o veículo esteve em Uberaba, por ocasião da IV Exposição Nacional de Gado Zebu, onde o livro teve apreciável saída.
* O General Nestor Penha Brasil, comandante do III Exército, que se vem destacando por sua decidida posição anticomunista, prestou ao País mais um serviço ao mandar apreender uma edição do jornal «Farrapos», órgão noticioso da Brigada Militar gaúcha, por conter matéria subversiva. Essa enérgica e oportuna providencia certamente concorrerá para estimular a legitima reação dos criadores e agricultores do Rio Grande do Sul contra a agitação agro-reformista naquele Estado, onde RA-QC tem recebido inúmeras e prestigiosas manifestações de apoio.
* Por ocasião da visita que fizeram recentemente a Vacaria (RS), os Srs. José Fernando de Camargo e Fabio Vidigal Xavier da Silveira mantiveram contatos com os líderes rurais daquele município gaúcho, tendo o Sr. Xavier da Silveira feito uma exposição sobre RA-QC na rádio local (ver «Catolicismo», n° 133, de janeiro p.p.). A Associação Rural de Vacaria vem agora de enviar à Editora Vera Cruz um manifesto em que condena o clima de demagogia que se criou no País em torno do problema da reforma agrária, e propugna a suspensão dos debates parlamentares sobre o assunto enquanto perdurar esse clima.
* RA-QC foi o livro mais procurado durante o mês de janeiro último na Biblioteca Municipal desta cidade.
* Por considerar «subsidio de grande valia para os estudiosos da questão» a conferencia sobre «O Problema Rural Brasileiro», pronunciada em Belo Horizonte pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, a convite dos Diretórios Acadêmicos de Engenharia, Medicina, e Odontologia e Farmácia da UMG (ver «Catolicismo», n° 132, de dezembro p.p.), a FAREM — Federação das Associações Rurais do Estado de Minas pediu aos organizadores da sessão o texto integral da conferencia.
* Anotamos a publicação dos seguintes artigos favoráveis a RA-QC: «Reforma agrária e socialismo», do Prof. Paulo Corrêa de Brito Filho, em «A Ação», de Crato (CE); «O infeliz início, o triste enredo e o happy end da Revisão Agrária», de autoria do Sr. Fabio Vidigal Xavier da Silveira, em «O Jornal», do Rio de Janeiro.
* O Deputado Jonas Bahiense, falando na Câmara Federal em apoio ao projeto agro-reformista do Sr. José Joffily, criticou a posição dos autores de RA-QC.
* Comentários elogiosos do Edital do Exmo. Revmo. Sr. Bispo Diocesano a respeito das invasões de terras no Estado do Rio (ver «Catolicismo», n° 134, de fevereiro p.p.) foram estampados no «Monitor Campista» e na «Folha do Povo», desta cidade, no «Jornal do Comercio», do Rio de Janeiro, «O Operário», de São Paulo, Lábaro», de Taubaté (SP), «A Tribuna do Ceará», de Fortaleza, «Alvorada», de Sete Lagoas (MG), «Diário do Paraná», de Curitiba, «Folha de Jacarezinho» (PR), e o «Taquariense», de Taquari (RS).
* Sustentando posições adotadas em RA-QC foram publicados os artigos: «A pequena propriedade», de D. A. C., em «Alvorada», de Sete Lagoas (MG); e «A socialização na Mater et Magistra», do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, no «Diário do Paraná», de Curitiba, e na «Folha de Jacarezinho» (PR).
* «O Operário», de São Paulo, em artigo do Revmo. Frei Venancio Willike, O. F. M., fez elogiosa referência à opinião defendida pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira no debate que travou na TV-Tupi paulista com o ex-prefeito de Brasília, Deputado Paulo de Tarso (ver «Catolicismo», n° 132, de dezembro p.p.).
* A estação de rádio de Mossoró (RN) apresentou em sua programação musical uma canção típica cearense que se refere a RA-QC como tabus de salvação contra uma reforma agrária comunista.
* Notícias da Alemanha Ocidental informam que a imprensa daquele país tem feito diversos comentários sobre RA-QC.
* Referencias favoráveis a RAQC apareceram em «El Bien Público», de Montevidéu, na «Folha do Norte», de Feira de Santana (BA), «O Nordeste», de Fortaleza, «A Estrela Polar», de Diamantina (MG), «O Mossoroense», de Mossoró (RN), e «Gazeta de Minas», de Oliveira (MG). Referencias contrarias, em «Última Hora» de São Paulo e de Curitiba, e em «La Croix», de Paris.
* Escrevendo na «Folha do Comercio» desta cidade sobre a reforma agrária, mostra o Sr. Admardo da Costa Peixoto que RA-QC «se tornou a voz número um na defesa da propriedade privada como meio de melhor servir a humanidade através do incentivo da capacidade pessoal».
* O «Correio do Ceará», de Fortaleza, tem reproduzido vários trechos de RA-QC.
* Transcrevendo de RA-QC o texto do Aviso Preliminar em que os autores distinguem entre uma reforma agrária sadia, em harmonia com nossa tradição cristã, e uma reforma agrária socialista e oposta a essa tradição, «A Cruz», do Rio de Janeiro, se declara de acordo, «em gênero, número e caso», com essas «palavras de um vulto dos mais conspícuos da intelectualidade católica brasileira, que submetemos ao juízo dos leitores inteligentes».
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O Prof. Rafael Gambra, catedrático da Universidade de Pamplona e figura de destaque nos meios intelectuais da Espanha, assim se manifesta a respeito de RA-QC, em carta ao Prof. Plinio Corrêa de Oliveira:
«He leído coa verdadero interés y entusiasmo el libro «Reforma Agraria, Questão de Consciencia» que tuvo la gentileza de enviarme. Me admira el rigor, la profundidad y, sobre todo, la valentía con que descubre Vd. la raíz socialista de casi todas las posiciones reformistas de nuestra época, incluso las de muchos que son católicos y suponen su actitud dictada por los imperativos de su fe.
«Tengo para mí que, lo mismo que el arrianismo fué la gran herejía de la antigüedad y el protestantismo la del comienzo de la modernidad, el socialismo es la gran herejía de nuestra época y, por lo mismo, su espíritu está en el ambiente e, inconscientemente en todo cuanto se piensa y se hace. Los católicos tipo democracia cristiana creen que otorgando al Estado el poder de imponer un «sentido social» a la propiedad y estableciendo unos límites puramente teóricos a ese poder arbitrara una solución «cristiana moderna o avanzada», pero en realidad vienen a ser los pioneros o, al menos, los comparsas de la socialización de los países, que vale tanto como su descristianización. Siempre soluciones ambiguas, paliativos de reformas socialistas, nunca reformas o imperativos que nazcan de verdadero suelo cristiano.
«Me interesó también mucho su polémica ante la radio con el Diputado Paulo de Tarso. El rigor y la responsabilidad de sus afirmaciones contrastaban en todo momento con la demagogia y la superficialidad del «socialista católico». Admiré asimismo el valor con que afirmó Vd. sin concesiones que el capitalismo, en si mismo considerado, no es opuesto al catolicismo ni se puede deslindar del derecho de propiedad en general. En mi opinión, el capitalismo no es un sistema sino la consecuencia de la desaparición en la sociedad de sua estructura interna por obra de la Revolución (liberal) y de su acción desvinculadora de la propiedad respecto de familias, corporaciones, etc. Restaurar esa vinculación y las defensas corporativas de la sociedad es el cauce posible a toda reforma social cristiana, nunca imponer una limitación legal, desde fuera, al derecho de propiedad.
«Ideas difíciles de hacer comprender en el ambiente actual, y que quizá sólo «Catolicismo» se atreva a proclamar hoy día juntamente con la necesidad de desigualdades sociales, de clases (no cerradas) y de aristocracias familiares.
«Mi sincera y ferviente felicitación por todo ello».
CALICEM DOMINI BIBERUNT
ELEITO PAPA UM DOS FUNDADORES DA PATARIA
Fernando Furquim de Almeida
O Papa Nicolau II morreu em 1061, dois anos apenas depois de eleito. No seu curto pontificado prestou à Igreja relevantes serviços, que contribuíram eficazmente para o progresso da reforma iniciada pelos monges de Cluny. Entre esses serviços, deve se destacar o decreto que reservou aos cardeais a eleição do Pontífice, suprimindo definitivamente a desastrosa participação da nobreza romana na escolha do sucessor de São Pedro.
Os tempos estavam mudados. O Arquidiácono Hildebrando é que dominava a situação na esfera eclesiástica, e sabia se que o novo Papa consagraria a reforma. Alarmados, todos os que a ela se opunham se aliaram, criando em Roma um ambiente de revolta. Era necessário impedir a execução do decreto de Nicolau II, e para obter a sua revogação os nobres romanos e o episcopado da Lombardia recorreram à Imperatriz Inês, regente do Império durante a menoridade de Henrique IV.
Para mais vincular o Império a seus propósitos, a nobreza de Roma concedeu a Henrique IV o título de patrício romano. Uma delegação foi enviada à Alemanha para comunicar ao soberano a honraria e os desejos dos adversários de Hildebrando.
Mais grave foi a atitude dos bispos lombardos. Reunidos por iniciativa de Guiberto de Parma, chanceler da Itália, resolveram só aceitar um Papa que fosse da Lombardia, esse “paraíso da Itália”, e que se comprometesse a não exigir uma disciplina que qualificavam de contrária à natureza humana. Para defender suas pretensões, mandaram também alguns delegados à corte germânica.
Prudentemente, para não dar a seus opositores o menor pretexto, Hildebrando enviou à Imperatriz Regente o Cardeal Estêvão, encarregando o de informá la dos fatos e destruir as intrigas armadas contra a Santa Sé.
Chegado à corte imperial, três dias esperou o cardeal, inutilmente, por uma audiência. Quando Hildebrando soube que a Imperatriz não recebera seu enviado, convenceu se de que não podia contar com ela, e sem mais demora convocou os cardeais para a eleição do Papa. Foi então eleito Anselmo da Baggio, o qual tomou o nome de Alexandre II.
Anselmo da Baggio fundara a Pataria, e não só a animara de Luca, onde era bispo, como fora o seu maior protetor junto à Santa Sé. A sua eleição dava um novo impulso ao movimento pátaro e indicava o firme propósito, que animava os cardeais, de apoiar a reforma gregoriana, apesar dos protestos e ameaças do episcopado lombardo.
A reação não se fez esperar. Protegidos pela Imperatriz Inês, reuniram se em Basiléia bispos alemães e lombardos, os nobres romanos e o Cardeal Hugo o Branco, personagem astuto que, conforme os seus interesses pessoais, ora apoiava ora combatia a reforma. Henrique IV recebeu o título de patrício romano, foi declarado nulo o decreto de Nicolau II, e o Bispo de Parma, Cadalo, foi eleito Papa com o nome de Honório III. Esse antipapa era natural da Lombardia, de acordo com os desejos do episcopado daquela região, e homem riquíssimo, o que lhe permitia comprar as adesões necessárias para poder entrar em Roma.
Tendo porém o Abade de Monte Cassino, Desidério, conseguido para Alexandre II o apoio de Roberto Guiscard, senhor dos normandos, foi possível ao Papa legítimo antecipar-se a seu contendor, entrando na cidade e tomando posse da Igreja de Latrão, onde foi coroado.
A entrada de Alexandre II em Roma foi rica de incidentes. Os monges, que lhe eram todos favoráveis, organizaram uma guarda de honra para o novo Pontífice, enquanto os inimigos da reforma postavam gente paga em todo o trajeto para injuriá lo e, se possível, impedir a sua posse. Apesar do tumulto, o apoio de Roberto Guiscard não permitiu que os simoníacos e nicolaítas conseguissem o seu principal objetivo.
São Pedro Damião, ao ter conhecimento da eleição de Cadalo, tentou demovê lo de se opor a Alexandre II, enviando lhe uma carta na qual lembrava que sua elevação o deixava mais exposto às justas acusações que lhe faziam. "Até agora, dizia o santo cardeal, não se comentava senão em uma pequena cidade o tráfico vergonhoso que fazíeis das prebendas e das igrejas, e outras ações bem mais infamantes que tenho vergonha de mencionar; agora, todo o mundo fala disso em toda a extensão do reino".
Essa intervenção não convenceu Cadalo. Acompanhado pelos bispos da Lombardia, tentou entrar em Roma para ser coroado pelos seus amigos. 0 Duque da Lorena, Godofredo o Barbudo, se opôs a isso e o obrigou a ficar fora da cidade. Dali o antipapa solicitou o auxílio da Imperatriz Inês, que enviou Benzone, Bispo de Alba, com plenos poderes para resolver o impasse.
Benzone seria mais tarde o historiador parcial desses acontecimentos. Chegando a Roma certo de que o prestígio imperial facilitaria o cumprimento de sua missão, hospedou se no Palácio Otaviano e imediatamente convocou o povo para uma assembleia no Circo Máximo, na qual contava que Cadalo fosse aclamado Soberano Pontífice. Compareceu a ela, porém, o próprio Alexandre II, acompanhado pelos monges e escoltado por soldados bem armados, o que provocou enorme confusão. Benzone foi forçado a se retirar sem ter conseguido o seu intento.
No dia seguinte, do Palácio Otaviano os amigos de Cadalo convidaram no a entrar em Roma. O antipapa se manteve apenas cinco dias na cidade. Godofredo o Barbudo obrigou o a se recolher ao castelo dos Condes de Tusculum, onde ficou cercado e vigiado, não podendo nem sequer receber o embaixador que o Imperador bizantino lhe enviara, oferecendo o seu apoio.
O Duque da Lorena propôs então a Alexandre II que, a exemplo de seu antagonista, também saísse da cidade, e que ambos esperassem nos arredores o pronunciamento de Henrique IV. O Papa legítimo, sentindo-se incapaz de resistir às forças de seus inimigos, acedeu.
Toda a atitude de Godofredo o Barbudo, nesta fase do pontificado de Alexandre II, leva a crer que ele estava a par da conspiração contra a Regente, que vinha sendo promovida pelo Arcebispo Annon de Colônia e foi coroada de êxito na mesma época em que esses fatos ocorriam em Roma.
A Imperatriz Inês e Henrique IV desciam o Reno com destino a Nimega, para assistirem às festas da Páscoa, quando pararam na ilha de Kaiserwerth. Lá se encontrava ancorada uma esplêndida barca preparada pelo Arcebispo Annon, toda adornada de ouro e prata e ricamente atapetada. Henrique IV, maravilhado, quis visita-la. Tão logo subiu ele a bordo, a embarcação se pôs em movimento, e a Imperatriz, que ficara na ilha, foi presa. 0 jovem soberano foi levado até Colônia, onde uma assembleia convocada per Annon depôs Inês da regência, colocando Henrique sob a tutela do Arcebispo.
Essa reviravolta política beneficiou a reforma. Cadalo foi abandonado e viu se obrigado a combater também contra antigos aliados. Os bispos da Lombardia permaneceram lhe fiéis, mas, não contando com o apoio imperial, o antipapa foi perdendo terreno, tanto mais que, depois de várias peripécias, o Arcebispo Annon acabou por reconhecer Alexandre II.
NOVA ET VETERA
UM CONCEITO LIBERAL DE GUERRA E DE PAZ
J. de Azeredo Santos
Será a guerra sempre inútil e absurda? Em pronunciamento recente, depois de o afirmar e de sumariamente condenar o recurso às armas como meio para resolver os problemas da humanidade, conclui o Sr. Alceu Amoroso Lima: «Se a isso juntarmos a voz de todos os Papas desde 1914, — de Bento XV, de Pio XI, de Pio XII e de João XXIII, — sem uma discrepância, pregando invariavelmente a Paz como fim e como meio podemos chegar a uma conclusão, que devo ser um axioma na base de todo exame dos problemas internacionais modernos: a guerra é um mal, em todos os sentidos e deve ser evitada a todo transe. A melhor das guerras, — dado inclusive o poder das armas monstruosas da técnica militar moderna — é pior do que a pior das pazes» (artigo: «Guerra e Paz» na revista «Painel Brasileiro», no 32, janeiro de 1962, p. 28).
Não sabemos se essa apressada afirmação é mais injusta para com os quatro últimos Papas, ou para com os seus Predecessores, de São Pedro a São Pio X.
UMA INUTILIDADE A BATALHA DE LEPANTO?
Com efeito, se atentarmos para a lição da História e mais ainda para o que sobre a guerra nos ensinam as Sagradas Escrituras, veremos que o único modo de evitá-la vem a ser o amor de Deus e a observância de sua Santa Lei. A guerra pode vir como castigo para um povo prevaricador e apóstata. Diz o Senhor a Israel: «Eis que mandarei sobre vós a espada, e destruirei os vossos santuários construídos nos lugares altos; e demolirei os vossos altares, e serão quebrados os vossos simulacros; e farei cair os vossos homens, mortos, diante de vossos ídolos» (Ez. 6, 3-4). Como também serve a guerra de instrumento para se restabelecer a justiça, conforme acentua o Santo Padre Pio XII: «Lei e ordem podem às vezes necessitar do braço vigoroso da força. Alguns inimigos da justiça só podem ser trazidos à razão pela força. Mas a força deve sempre ser refreada pela lei e pela ordem, e ser exercida unicamente em defesa delas» (Alocução à Comissão dos Serviços Militares Norte-Americanos, 8 de Outubro de 1947).
Há guerras injustas que aviltam as nações. Há outras, justas, que as exaltam e as aperfeiçoam. Destas nos diz o Divino Espírito Santo: «A vitória que se alcança na guerra não depende da grandeza dos exércitos, mas do Céu é que vem toda a fortaleza» (1 Mac. 3, 19).
Dizer simplesmente que toda e qualquer guerra é um absurdo inútil a ser banido do seio das nações, e que a melhor das guerras é pior que a pior das pazes, é afirmar que a escravização da Cristandade pelo Islã teria sido preferível à união dos exércitos cristãos para deter a expansão dos muçulmanos, na batalha de Lepanto. Para dar outro exemplo: segundo o Sr. Tristão de Ataide, Judas Macabeu devia estabelecer a pior das pazes com os inimigos de Israel, em vez de se entregar à guerra. O ex-Sumo Sacerdote Alcimo dizia ao Rei Demetrio: «Aqueles dentre os judeus que se chamam assideus, cujo capitão é Judas
Macabeu, fomentam guerras e excitam sedições, e não sofrem que o reino esteja em paz» (2 Mac. 14, 6), razão pela qual acrescentava: «Enquanto Judas viver, é impossível que haja paz no Estado» (2 Mac. 14, 10).
PAZ COMO FRUTO DA JUSTIÇA
Ora, segundo o lema do Santo Padre Pio XII, a paz há de ser obra da justiça. Se «a Igreja, estabelecida por Deus como rocha de fraternidade e de paz, não pode pactuar com os idólatras adoradores da violência brutal, das lutas externas ou intestinas pela hegemonia universal» (Alocução ao Sacro Colégio em 2 de junho de 1947), dizia em outra ocasião aquele inolvidável Pontifico ser «manifesto que nas presentes circunstancias pode verificar-se em uma nação o caso de que, resultando vãos todos os esforços para conjurá-la, não possa a guerra, para defender-se eficazmente e com esperança de favorável sucesso contra injustos ataques, ser considerada ilícita» (Radiomensagem do Natal de 1956).
Ocorre, assim, indagar: vivemos, por acaso, em um mundo no qual a lealdade, a sinceridade, os propósitos honestos oferecem inequívocas garantias de paz, ao contrário do que acontecia em séculos pretéritos, quando pairavam sobre os povos as sombras sinistras de um Nabucodonosor, de um Herodes, de um Calígula? Só um cego não vê que estamos em uma época catastrófica, assinalada pela presença de governos totalitários opressores, que mantêm povos inteiros em um regime injusto e concentracionário, violentando até os mais elementares direitos ditados pela lei natural. «A força do Estado totalitário! Cruel e sangrenta ironia! Toda a superfície do globo, rubra do sangue derramado nestes anos terríveis, proclama altamente a tirania de um tal Estado. “O edifício da paz repousaria sobre uma base vacilante e sempre em situação ameaçadora, se não pusesse fim a semelhante totalitarismo, o qual reduz o homem a não ser mais que uma peça no jogo político, um número nos cálculos econômicos» (Pio XII em Alocução de Natal ao Sacro Colégio, 24 de dezembro de 1945). Estamos em uma época de sensualidade, de orgulho, de esquecimento do Decálogo. Época em que «nas assembleias humanas se insinua despercebido o espírito do mal, o «anjo do abismo» (Apoc. 9, 11), inimigo da verdade, fomentador de ódios, negador e destruidor de todo sentimento fraterno. Julgando próxima sua hora, põe ele tudo em obra para apressá-la» (Pio XII na Radiomensagem do Natal de 1947).
Como confiar, de coração, nos conchavos de paz que se fazem nas chancelarias, quando «o estigma que o nosso tempo leva sobre a fronte, e que é causa de desagregação e de decadência, é a tendência sempre mais manifesta à insinceridade» (doc. cit.), que coloca o mundo cada vez mais longe daquela ordem desejada por Deus, garantia de uma paz real e durável, e deixa os povos cada vez mais à mercê das maquinações das cúpulas dirigentes: «Como Herodes, ansioso por matar o Menino de Belém, ocultou seu propósito sob a máscara da devoção e estudou o meio de transformar os Magos de coração reto em espiões inconscientes, assim agora os seus modernos limitadores põem tudo em obra para ocultar dos povos seus verdadeiros desígnios e para fazer deles instrumentos ignaros de seus intentos» (doc. cit.).
A paz é um instrumento inestimável para a fruição dos bens que recebemos do Criador, mas o que acontece em imensas áreas do mundo contemporâneo? «Milhões de homens não estão em condições de exercer seu influxo cristão em favor da liberdade moral, em favor da paz, porque estas palavras — liberdade e paz — se converteram em usurpado monopólio de agitadores profissionais e de adoradores da força» (Pio XII na Radiomensagem do Natal de 1951).
PACIFISMO SUICIDA
Acontece que a defesa, mesmo violenta, dos bens essenciais à vida dos povos livres é um direito e um dever. «O preceito da paz é de direito divino — diz Pio XII na Mensagem de Natal de 1948. Seu fim é proteger os bens da humanidade, enquanto bens do Criador. Ora, entre estes bens há alguns de tanta importância para a convivência humana, que sua defesa contra a injusta agressão é, sem dúvida, plenamente legítima. A esta defesa está obrigada também a solidariedade das nações, que tem o dever de não deixar abandonado o povo agredido. A segurança de que tal dever não há de ficar sem cumprir-se servirá para desanimar o agressor e, por conseguinte, para evitar a guerra ou, pelo menos, na pior das hipóteses, para abreviar-lhe os sofrimentos».
Vemos, assim, que a Igreja é realista e não desconhece a possibilidade da existência de malfeitores na vida interna e externa das nações. Eis porque, quando os governos totalitários se armam, como se deu com a Alemanha nazista e agora acontece com a Rússia soviética, só tomados de loucura é que os povos livres se entregam a um pacifismo unilateral e suicida. Pois, que arrazoados levarão os espezinhadores contumazes da lei natural a se desarmarem e desistirem de seus propósitos agressivos?
É esse realismo que faz Pio XII dizer que a «Igreja deve ter em conta os poderes obscuros, que têm operado sempre na História. Este é também o motivo por que Ela desconfia de toda propaganda pacifista, na qual se abusa da palavra paz para ocultar fins inconfessáveis» (Alocução aos membros do Congresso Internacional da «Paz Christi» celebrado em Assis, 13 de setembro de 1952).
Em resumo, longe de considerarmos a guerra como coisa absurda e inútil, encaramo-la como perfeitamente inserta nos planos da Providência Divina. Em um momento de infidelidade dos israelitas, vaticinava o profeta Ezequiel: «Buscarão a paz e não haverá paz» (Ez: 7, 25). Para que esse terrível oráculo divino não se realize em nossos dias, só nos resta um recurso: a volta da humanidade ao redil do Bom Pastor, dando ouvidos às graves advertências de La Salette, de Lourdes, de Fátima.