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Para o Sr. Tristão de Ataide, quem provocou o conflito entre Igreja e Estado na Hungria foi o Cardeal Mindszenty

(continuação)

modere os detentores do poder político.

Pelo seu próprio mecanismo interno, o Estado liberal, que tudo pode contra os cidadãos isolados e destrói gradativamente as justas liberdades do corpo social, vem sendo impotente contra as paixões populares, como bem acentuou Leão XIII no texto acima citado. Temos assim as consequências visadas pelo nivelamento de todas as classes e pelo estabelecimento de um direito igualitário: a anarquia e a mediocridade precursoras da tirania socialista.

Liberalismo e socialismo são, portanto, duas faces do mesmo mistério de iniquidade, ou cabeças da mesma hidra da Revolução, ao contrário do que se contém no frágil esquema do Sr. Tristão de Ataide.

Ora, dirá alguém, tudo isto são generalidades, que pouco provam contra a afirmação dos progressistas de que o liberalismo econômico foi o causador direto da reação representada pelo socialismo proletário.

De acordo com o esquema do Sr. Alceu Amoroso Lima, a revolução proletária teria surgido como um clamor espontâneo contra as injustiças da ordem social reinante no regime liberal. A verdade é que, como tem acontecido com outros movimentos demagógicos, a miséria do povo foi então explorada como meio para a realização de um plano tenebroso que nada tinha de popular, mas que de há muito vinha sendo engendrado por uma cúpula de celerados. Eis um dos muitos trechos em que Leão XIII alude a este aspecto conspiratório da trama revolucionaria: "Depois que os que se gloriavam com o nome de filósofos atribuíram ao homem uma desenfreada liberdade, e se começou a formar e sancionar um direito, chamado por eles de novo, contrário à lei natural e divina, o Papa Pio VI, de feliz memória, demonstrou cabalmente em documentos públicos a natureza perversa e a falsidade dessas doutrinas; anunciando ao mesmo tempo, com previsão apostólica, as ruínas a que o povo, miseravelmente enganado, era arrastado. Sem embargo, como não se adotaram meios eficazes para impedir que estes dogmas tão depravados penetrassem cada vez mais nos povos e se convertessem em axiomas do governo público dos Estados, os Papas Pio VII e Leão XII anatematizaram as sociedades secretas e preveniram de novo o Estado, na medida de suas possibilidades, do perigo que o ameaçava. Todos, por fim, conhecem perfeitamente as gravíssimas palavras e a firme constância de ânimo com que Nosso glorioso Predecessor Pio IX, de feliz memória, combateu, tanto em suas Alocuções como em suas Encíclicas enviadas aos Bispos de todo o mundo, contra os iníquos intentos das seitas e particularmente contra a peste do socialismo, que do seio delas ia surgindo" (Encíclica "Quod Apostolici Muneris").

Por ai se vê o caráter unitário da Revolução e como o liberalismo, longe de se opor ao socialismo, lhe preparou o caminho.

Em que se fundamenta este último senão na coerção exercida, pelo Estado sobre a sociedade? Ainda aqui a concepção liberal, pretensamente oposta ao socialismo, lhe serviu de precursor: "O Estado, origem e fonte de todos os direitos, goza de um direito que não é circunscrito por nenhum limite" — proposição liberal condenada por Pio IX no "Syllabus", sob no 39.

Outro aspecto fundamental do socialismo é o poder discricionário do Estado sobre os bens dos cidadãos. Também nesse particular o liberalismo preparou as veredas para o socialismo : "As propriedades pertencem ao Estado antes de pertencerem aos cidadãos" — tese liberal denunciada à Santa Sé em 1862 (cf. "La Cité Antichrétienne au XIXe siécle", Dom Paul Benoit, Paris, 1894, tomo I, p. 422). Por conseguinte, é a lei civil que cria os direitos de propriedade e de herança, que estabelece o direito de testar, de alienar por venda ou doação. "A propriedade não se fundamenta no direito natural e das gentes, mas unicamente no direito civil" — outra tese liberal denunciada à Santa Sé em 1862 (cf. op. cit., ibid., p. 423).

Assim, segundo os princípios liberais, a lei pode suprimir o regime de propriedade individual, e substituí-lo pelo da comunidade de bens, como, por exemplo, já se tentou fazer em vários países em regime liberal, sobretudo sob o artifício de reformas agrárias espoliativas. Qual a linha demarcatória, também aqui, entre liberalismo e socialismo?

Sob a tirania socialista a Igreja se vê privada de seus direitos fundamentais. Segundo os progressistas, isto se explica pelo fato de que Ela se teria aliado a poderosos capitalistas nos lugares onde a ordem de coisas liberal veio a ser substituída pelo regime socialista, como aconteceu em Cuba. Mas ainda aqui a Revolução, em sua fase liberal, preparou os caminhos para o socialismo: "A imunidade da Igreja e das pessoas eclesiásticas tira sua origem do direito civil" — proposição liberal condenada, sob no 30, pelo "Syllabus" de Pio IX. Como se isso não fosse suficiente, sustentavam os liberais em pleno século XIX: "Pertence ao poder civil definir quais são os direitos da Igreja e traçar os limites dentro dos quais Ela pode exercê-los" — proposição liberal condenada pelo "Syllabus" de Pio IX, sob no 19. Não é justamente o que está hoje acontecendo à Igreja atrás da cortina de ferro e de bambu? Está na lógica dos acontecimentos, portanto, que os regimes comunistas agora vigentes em várias partes do mundo continuem a obra dos regimes liberais e procurem sufocar as legítimas liberdades dessa Igreja que, fiel à sua missão, não pode calar-se diante da injustiça intrínseca do socialismo (cf. "A liberdade da Igreja no Estado comunista", artigo do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, "Catolicismo", no 152, de agosto p. p.).

O CARDEAL MINDSZENTY, ESTORVO A COEXISTÊNCIA

É este um aspecto do totalitarismo moderno que não causa espanto nem indignação aos católicos progressistas, pois se acham eles eivados desse mesmo espírito liberal. Daremos um exemplo frisante. Está na memória de todos a perseguição empreendida contra a Igreja pelos opressores comunistas da Hungria, ao findar a segunda guerra mundial. Nesse ambiente de horrores, ergueu-se diante dos olhos do mundo civilizado a figura desse atleta da Fé que é o Eminentíssimo Cardeal Mindszenty. Defensora do depósito da Revelação e da lei natural, não pode a Santa Igreja pactuar com o regime comunista, dado o caráter intrinsecamente perverso deste. Profere assim o egrégio Purpurado o non licet perante os hodiernos êmulos de Herodes, e, qual novo São João Batista, é preso pelos agentes comunistas. Submetido à farsa de um julgamento sacrílego, em que foram empregados os métodos modernos de tortura conhecidos por lavagem do cérebro, o Primaz da Hungria foi a seguir condenado a prisão perpétua, sendo libertado pelo povo durante o levante que ali explodiu no ano de 1956 contra o despotismo soviético. Sufocado pelos tanques e pelos canhões russos esse legítimo anseio de autodeterminação, refugiou-se o Cardeal Mindszenty na embaixada dos Estados Unidos, onde permanece até hoje.

É evidente, portanto, que o conflito entre a Igreja e o Estado na Hungria é fruto da injustiça representada pelo comunismo, que atenta contra os preceitos mais fundamentais da lei natural, além de cercear de todos os modos as legítimas e impostergáveis liberdades da Igreja. Ora, esse Atanásio do século XX, que é o Cardeal Mindszenty, dá testemunho vivo contra o tremendo agravo que os algozes comunistas da Hungria fazem a Deus e a sua Igreja.

Que nos diz, porém, o Sr. Alceu Amoroso Lima a respeito da tragédia que aflige o povo húngaro? Com incrível desenvoltura e falta de respeito para com tão eminente vulto da Hierarquia Católica, afirma-nos que "o conflito entre a Igreja e o Estado" na Hungria foi "provocado pelo refúgio do Cardeal Mindszenty na embaixada americana" (artigo "Três grandes gestos", na "Folha de São Paulo", de 29 de agosto p. p.). Por outras palavras, resolvido o caso desse refugiado, tudo correria às mil maravilhas na terra magiar. E prossegue S. Sa.: "Contou-me Heloneida Studart o fervor religioso que encontrou em Budapest e a esperança geral dos católicos húngaros em ver restabelecida a paz religiosa em seu país, com o fim do velho regime de privilégios sociais que o feudalismo legara à Hungria e permaneceu até a Revolução. Os excessos desta, como sempre, foram uma consequência de situações anacrônicas e insustentáveis" (artigo citado).

Como vêem os prezados leitores, o Sr. Tristão de Ataide admite que para os bons católicos húngaros o regime comunista não é um mal, ou pelo menos é um mal muito menor que os restos de feudalismo ainda existentes antes de implantada em sua pátria a Revolução comunista. E somente os reacionários e partidários das "alienações" capitalistas é que responsabilizam Kruchev e seus sequazes pelos massacres executados na Hungria pelo exército vermelho. Pois os verdadeiros culpados por esse e outros "excessos" revolucionários são os responsáveis pelas "situações anacrônicas e insustentáveis", pelas quais tantos heróis anônimos, pertencentes a todas as camadas do povo magiar, atacados de imbecilidade congênita, derramaram seu sangue generoso nas ruas de Budapest... Positivamente, o Sr. Tristão de Ataide anda passando das medidas, e parece querer apostar carreira com os folicularios da "Última Hora" e do "Brasil, Urgente" no seu afã de fazer demagogia esquerdizante.

A "SOCIALIZAÇÃO" E A "MATER ET MAGISTRA"

Mas onde os malabarismos do Sr. Tristão de Ataide chegam a inesperados extremos é nas passagens em que, num esforço para atribuir ao Papa João. XXIII aquilo que este não disse, procura justificar o emprego da palavra "socialização" para "traduzir" estas expressões do texto oficial, em latim, da Encíclica "Mater et Magistra": a) "socialium rationum incrementa" — o incremento das relações sociais; b) "socialis vitae processus" — o progresso da vida social; c) "progressio rationum socialium" — o progresso das relações sociais; d) "increbescentes socialis vitae rationes" — as crescentes relações da vida social; e) "socialis vitae incrementa" — o incremento da vida social; f) "socialium rationum progressus" — o progresso das relações sociais (ver "Catolicismo", no 129, de setembro de 1961).

Se são essas as expressões latinas utilizadas no texto oficial publicado nas "Acta Apostolicae Sedis", o lógico é concluir que o Papa não quis usar a palavra "socialização" que tantas esperanças deu aos esquerdistas do mundo inteiro, mas quis dizer isso mesmo que essas várias expressões latinas querem dizer. E o Sr. Alceu Amoroso Lima parece não perceber o ridículo de sua argumentação quanto ao fato de a palavra "socialização" haver aparecido em documentos pontifícios anteriores, "se bem que com um sentido ligeiramente distinto" ("Mater et Magistra — Pacem in Terris", introdução à M. et M., p. 46). Se a palavra já fora usada, e não o foi desta vez, mais uma razão para entender-se que a omissão foi proposital, para não dar pretexto às confusões que, apesar desse cuidado, surgiram nos arraiais progressistas de todo o orbe católico.

Finalmente, os filhos da Igreja devem combater o regime político-social do comunismo, não por causa da simples agravante de ser ele ateu, mas por ser intrinsecamente perverso em sua própria estrutura e em sua concepção do mundo e da vida social. O que a história do Cristianismo nos ensina é que o socialismo e o comunismo têm sido sequela, no campo social, de erros religiosos. Não nos consta que heresias tais como a dos ebionitas, dos gnóstico-maniqueus, dos pelagianos ou dos albigenses, fossem sistemas ateus ou materialistas, pelo menos de modo direto, embora pudessem levar ao ateísmo e ao materialismo pelo ulterior desenvolvimento de seus falsos princípios. Quando a Santa Igreja proíbe o trato de seus filhos com os sectários do comunismo é porque tem em vista a insanável malícia desse erro e o perigo de contagio que adviria dessas relações. Ainda recentemente o Exmo. Revmo. Mons. Ugo Lattanzi, Qualificador da Suprema Sagrada Congregação do Santo Oficio e Consultor da Comissão Teológica do Concílio, assim se referia à "apertura a sinistra" do Partido Democrata Cristão italiano: "Constitui uma política imoral e desonesta representar o Cristianismo como uma carroça que tenha necessidade de um motor socialista para progredir" (apud telegrama da ANSA e da AFP publicado em "O Estado de São Paulo", de 5 de outubro p. p.).

Ora, que diz o Sr. Tristão de Ataide, insinuando uma modificação dessa atitude da Santa Sé em relação ao comunismo? Eis suas palavras: "E precisamente a condenação do isolamento, entre as nações, é que vem completar essa tríplice condenação — contra os males sociais modernos, contra a violência como método de solução dos problemas sociais, e finalmente contra o isolamento, isto é, o método da avestruz, que tantos ainda recomendam como meio farisaico de ignorar o inimigo ou de reduzi-lo pela separação do mundo em duas metades: nós, os bons; eles, os maus, segundo um neomaniqueismo muito em voga..." ("Mater et Magistra —Pacem in Terris", introdução à M. et M., p. 23). Por onde se vê que S. Sa. deseja que abramos as portas ao comunismo, numa operação a ser rigorosamente vigiada pelos agentes soviéticos através dos muros da vergonha que cercam o Leste europeu, num "intercambio" que evidentemente só beneficiaria a propaganda vermelha.

O neomaniqueismo se acha de fato em voga e a Revolução gnóstica é que o propaga sub-repticiamente em todos os setores religiosos, políticos, econômicos e artísticos da vida social contemporânea. Adotasse o Sr. Tristão de Ataide a ampla perspectiva em que se colocou o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira ao escrever seu magistral ensaio "Revolução e Contra-Revolução", e fácil lhe seria descobrir esta verdade. Acresce notar que diante da realidade contundente da Revolução no mundo moderno, S. Sa., como intelectual católico, é inescusável: coloca-se em uma incrível posição de negação dos fatos e, pior ainda, só tem elogios, velados ou abertos, para os vários setores através dos quais se desenvolve a Revolução, reservando apenas impropérios para aqueles que se entregam à imprescindível tarefa da Contra-Revolução.


COMENTANDO...

SOCIALISMO ESPIRITUAL

Fabio Vidigal Xavier da Silveira

Um dos pressupostos principais da mania de planejamento, tão comum no mundo moderno, é a ideia de que Deus não sabe fazer previsões e, por isto, precisa ser «assessorado» pelo técnico, instrumento eficiente do Estado sapientíssimo. O socialista previdente desconhece a frase do Evangelho: «Procurai primeiramente o Reino de Deus e a sua Justiça, e o resto vos será dado por acréscimo» (Mateus 6,33).

Enquanto pensava nestas coisas, lendo um número de «Historia», caiu-me sob os olhos o anúncio: «Mariages Catholiques. Catholiques qui cherchez à, vous marier, ecrivez à Promesses Chrétiennes». Que barbaridade! pensei comigo, é a maneira socialista de se arranjar marido ou mulher. Mas, certa de que é quanto basta para não chocar os leitores pios, esta agencia de casamentos se apresenta como partidária convicta da monogamia, acrescentando logo a seguir: «Divorcés s'abstenir». O homem moderno esquece que, se Deus destina alguém ao matrimonio, não precisará de empresas especializadas para fazer surgir em seu caminho o cônjuge adequado.

Continuava a folhear as páginas de anúncios da mesma revista, quando, mais adiante, deparo com este igualmente horroroso: «Jusqu'où peut-on reculer les limites de la mémoire?» Era uma longa (e cacete) carta de um subindivíduo relatando como, pelo método X, adquirira uma memória espetacular.

Algumas páginas mais além, surge a propaganda de um outro eficientíssimo «Instituto de Memória». E, depois, a de um Curso Técnico de Conversação, para ensinar os interessados a terem uma conversa «culta». E, por fim, um Instituto Cultural que dá a seus alunos uma cultura «valable, accessible à tous et assimilable rapidement» (!), permitindo-lhes «réussir et mener une vie intéressante». Trata-se de um método de «formation culturelle accélérée»!

No conceito católico e tradicional, a pessoa recebe de Deus os dons do espírito, e os desenvolve por um esforço sério. A própria sociedade, por sua vez, forma o ambiente onde desabrocha naturalmente a verdadeira cultura. Mas, para a mentalidade socialista, tudo se adquire por um método planejado, rápido, milagroso.

Quando a sociedade decai, a cultura mingua e o terra-a-terra domina. Para sanar esses males, inventam-se institutos técnicos e cursos-relâmpagos.

Graças a Deus, o «socialista católico», ou seja, o democrata cristão «sinistroso», não pensa em vida espiritual, em vida interior. Do contrário, planejaria logo a fundação do Instituto da Vida Interior, no qual se ensinaria a Reforma de Base da alma. E a propaganda (tenho até medo de sugerir) poderia ser: «Santifique-se pelo método acelerado. Em 12 aulas conheça seus vícios capitais. Em outras 12 conheça as virtudes opostas. Venha, veja, e volte virtuoso...»

Seria o Socialismo Espiritual...


A LIÇÃO DAS JAULAS DE FERRO DA CATEDRAL DE MUNSTER

Orlando Fedeli

No seu luminoso ensaio «Revolução e Contra-Revolução», o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira mostra que há uma unidade na Revolução mundial. O orgulho e a concupiscência desencadearam o fenômeno revolucionário, o qual se desenvolveu na História em três fases: a Reforma protestante, a Revolução Francesa, e finalmente o comunismo. Foram os mesmos princípios igualitários da Reforma que produziram a revolução de 1789 e o bolchevismo.

Ora, o caminho que o mundo levou quatrocentos anos para percorrer — de Lutero até Kruchev — foi percorrido em pouco tempo por alguns próceres reformistas do século XVI. Homens coerentes, levaram eles os erros luteranos às suas últimas consequências religiosas, políticas e sociais, e o resultado é que, em pleno século XVI, surgiu um movimento que foi um prenuncio de todos os horrores que o comunismo traria ao mundo no século XX. Este movimento foi o anabatismo.

ATÉ ONDE PODE LEVAR O LIVRE-EXAME

Baseando-se no princípio luterano do livre-exame, concluíam os anabatistas que cada fiel era inteiramente livre de crer no que bem entendesse, e de seguir a moral que lhe aprouvesse. O nome com que passaram à História lhes veio do fato de que afirmavam ser necessário um segundo batismo, o qual reconduziria o homem ao estado de Adão antes do pecado.

Esta seita anárquica se subdividiu em numerosas facções, que pregavam os maiores absurdos gnósticos. Para algumas delas Deus Pai era o demônio, para outras a tese principal era o comunismo de bens. Havia entre seus sequazes quem defendesse o incesto, o nudismo, quem condenasse toda alegria como um mal, quem tivesse «êxtases» acompanhados de tremores estranhos. Não faltava quem dissesse que o segundo batismo tornava o homem incapaz de pecar e por isso todos os vícios passavam a ser lícitos. A semelhança desses hereges com os revolucionários atuais é tão grande, que se pode encontrar entre aqueles o mesmo ódio à arte que estes manifestam: não só destruíam imagens, mas quando pintavam faziam «arte moderna» (cf. «Ainda a tendência maniquéia da arte moderna», Cunha Alvarenga — «Catolicismo», n.° 105, de setembro de 1959).

UMA CIDADE QUE NÃO ERA SUBDESENVOLVIDA

Tendo-se multiplicado assustadoramente na Turíngia, os anabatistas foram perseguidos pelos príncipes luteranos e pelos católicos. Essa perseguição culminou em 1525 com a batalha de Frankenhausen, onde morreram cem mil deles, e depois da qual o anabatismo ressurgiu na Renania e nos Países Baixos.

Escolheu, então, como meta de seus esforços a conquista de Munster. Essa opulenta cidade, cujo senhor era o próprio Bispo, estava minada pelo espírito revolucionário. «Em nenhuma cidade da Alemanha desta época — escreve em seu diário um habitante de Munster — se encontravam tantos edifícios suntuosos, nem tanto bem-estar em todas as classes da população. Mas, com a prosperidade material, a corrupção entrou na cidade. Nenhuma classe queria continuar em sua posição. Os burgueses se insinuavam nas fileiras dos patrícios; estes, desprezando o governo da cidade, viviam com a nobreza e procuravam fazer entrar nela seus filhos e filhas. Vendo isto, os trabalhadores de todas as corporações deram atenção a todas as pregações de revolta e espoliação». Note-se que a cidade era rica: não foi o subdesenvolvimento que levou seus habitantes à Revolução, e sim o desejo de não ter superiores.

Em 1531, Bernhard Rothman, padre apóstata amigo de Melanchton, começou a pregar em Munster contra o Purgatório e contra o culto das imagens. Proibido pelas autoridades católicas de falar em público, Rothman não obedeceu, e bem depressa levou o povo a invadir as igrejas e destruir as imagens.

Cedendo à violência, o Conselho da cidade deu liberdade de pregação aos reformistas, e o Bispo renunciou.

O novo Prelado — Franz de Waldeck — inicialmente combateu os hereges, mas a burguesia acabou por obrigá-lo a permitir em Munster o livre exercício do protestantismo, a par da Religião Católica.

Rothman, que a princípio hostilizara os anabatistas, repentinamente se declarou partidário deles. Passou a pregar contra a Eucaristia, contra o batismo das crianças, e proclamou a chegada do reino de Deus pelo comunismo de bens. Além de um conselheiro muito popular — Knipperdolling, podia ele contar com um bom auditório: bandos de anabatistas tinham acorrido dos Países Baixos para a cidade que já chamavam de Nova Jerusalém. Eles tinham sido trazidos por Jan Mathys, padeiro de Harlem, e por Johannes Beukelszoon, alfaiate de Leyde. O primeiro, orador fogoso e violento, julgava-se o novo Enoch, vindo para preparar o reino da Jerusalém Espiritual que se iniciaria em 1533. O segundo, o jovem Johannes de Leyde, era instruído e sedutor, e fora convertido ao anabatismo por Mathys.

NOVA SION: PROIBIDO LER E CANTAR

Durante muito tempo os revolucionários foram-se infiltrando em Munster, até que, julgando que já contavam com possibilidades de dominar a cidade, tentaram um golpe. No dia escolhido Mathys saiu a correr pelas ruas bradando: «Fazei penitencia e batizai-vos de novo, senão a ira de Deus cairá sobre vossas cabeças, porque o dia do Senhor está próximo». A este sinal, seus partidários surgiram de todos os cantos, gritando e ameaçando matar todos os «gentios».

Os burgueses se entrincheiraram, resolvidos a lutar, mas as autoridades preferiram estabelecer um acordo com os revoltosos, que passaram a ter liberdade de pregação igual à dos luteranos e católicos.

Os anabatistas porém não estavam satisfeitos, pois queriam o domínio absoluto da cidade. Continuaram portanto a se preparar para o assalto final. De toda parte afluiu para Munster uma multidão de camponeses iluminados, atraídos pela notícia de que a Nova Sion ia surgir e pela fama dos grandes profetas que lá se encontravam.

Quando se sentiram fortes — em fevereiro de 1534 — os «profetas» organizaram uma grande manifestação e, sem maior resistência, se apoderaram da cidade. A maioria dos católicos saiu de Munster. Knipperdolling foi eleito burgomestre. Igrejas, mosteiros, obras de arte foram destruídas, todos os livros, exceto a Bíblia, foram queimados. Todos os divertimentos, jogos, música e cantos, foram proibidos.

TERROR, COMUNISMO E REFEIÇÕES EM COMUM

Passada a primeira surpresa que lhe causaram esses acontecimentos, o Bispo Waldeck pôs cerco à cidade, enquanto Jan Mathys instaurava dentro de seus muros um regime de terror. Tendo certa vez um cidadão — Hubert Ruscher — falado contra o governo tirânico dos dois profetas estrangeiros, Mathys fê-lo levar à praça pública, aproximou-se dele e atravessou-lhe o corpo com a espada que trazia consigo. Depois, voltando-se calmamente, anunciou ao povo: «O Senhor me inspira e me diz que é preciso que este Hubert morra como criminoso que é».

Ao mesmo tempo, Jan Mathys e Johannes de Leyde estabeleceram o comunismo de bens, aboliram os impostos, e determinaram que as refeições fossem feitas em comum.

MULTIPLICAM-SE AS MENSAGENS DO ALTO

Como o cerco da cidade se prolongasse, Mathys anunciou que Deus lhe ordenara que saísse com um pequeno grupo de soldados contra as tropas do Bispo. O povo correu às muralhas para ver o combate miraculoso.

O heresiarca e seus homens avançaram pela planície enquanto os sitiantes fingiam recuar. As aclamações de entusiasmo dos anabatistas cessaram quando um esquadrão de cavalaria saiu ao encontro do novo Enoch. Os soldados de Mathys fugiram, deixando-o só. Ele continuou a avançar até cair sob os golpes dos cavaleiros, os quais, tomando o cadáver, vieram pregá-lo na porta da cidade.

Para evitar o esmorecimento da resistência, Knipperdolling anunciou imediatamente que João de Leyde dentro de três dias comunicaria ao povo uma revelação que tivera. Até lá teria a língua ligada. Os crentes que se preparassem por meio de orações e penitencias para ouvir a mensagem do Alto.

Na data fixada o «profeta» de Leyde informou que Deus exigia a entrega do poder a doze homens que no ato mesmo nomeou: eram os doze Juízes da Nova Sion. Quanto a ele, João de Leyde, o Senhor o escolhera para dirigir a cidade, honra que não merecia nem compreendia, mas que não podia recusar. Ainda por ordem divina anunciou que se casaria com a viúva de Mathys.

O povo aceitou o domínio do novo chefe com tanto maior facilidade quanto, em maio do mesmo ano de 1534, ele conseguia repelir com êxito um assalto das tropas do Bispo.

OURIVES-PROFETA FAZ DE UM ALFAIATE REI

Se entre os anabatistas não havia loucura que faltasse, às vezes havia um certo método na loucura. Um ourives que passava por profeta, pois predissera a morte de Mathys e o malogro do assalto das tropas episcopais, começou a pregar que vira em sonhos João de Leyde coroado e com um cetro na mão. Deus lhe revelara que o antigo alfaiate seria o rei de toda a terra, o rei da Nova Jerusalém, o sucessor de David.

João de Leyde comunicou ao povo que a profecia era verdadeira. Ele recebera a mesma mensagem de Deus; calara-se por modéstia... Mas era preciso obedecer ao Senhor. Nada de respeito humano.

Depôs, portanto, os doze Juízes, e substituiu-os por quatro homens ignorantes, «cheios do temor de Deus»: estes seriam os ministros do rei de Sion, Johannes, o Justo. Seu título completo, e algum tanto confuso, era: «João, pela graça de Deus e em virtude do Reino, no novo templo de Deus, ministro da Justiça».

O ourives-profeta ungiu o novo rei. O novo rei nomeou único pregador oficial o ourives de profecias tão convenientes.

COROAÇÃO NO CEMITERIO; VICE-REI E CARRASCO

A coroação foi realizada... no cemitério da cidade, em meio a uma pompa extraordinária. O manto de João era de veludo bordado a ouro, no seu cinto estavam fixados rubis e esmeraldas enormes, roubados das igrejas. Dois adolescentes o acompanhavam levando a Bíblia e uma espada. Os dignitários do reino ricamente trajados formavam o séquito real, e alabardeiros a cavalo fechavam o cortejo.

Após a coroação, o novo monarca desafiou quem não estivesse satisfeito, a protestar. E acrescentou : «Não vos trouxe grandes bens? O pobre não ficou igual ao rico? Só vos peço que sejais obedientes a fim de que, todos unidos para o mesmo objetivo, cumpramos a missão de que nos encarregamos e espalhemos até os confins da terra o amor e a liberdade». É assim que terminam as revoluções igualitárias: a tirania coroada no meio dos

(continua)