GARCIA MORENO,

MODELO DO CHEFE DE ESTADO CATÓLICO

Celso da Costa Carvalho Vidigal

O católico hodierno que deseja a instauração de uma sociedade inteiramente de acordo com a doutrina da Santa Igreja, entre as muitas questões que formula, indaga quais as possibilidades que teria um chefe de governo católico de contribuir eficazmente para a formação de tal sociedade. A vida de Garcia Moreno é um exemplo que ajuda a responder tal pergunta. Embora distante no tempo quase um século, a atividade de quem foi o mais católico dos chefes de Estado deste hemisfério em todos os tempos, ensina aos homens de hoje importantes aplicações da doutrina da Igreja à arte de governar. As circunstancias históricas que cercaram a vida do grande Presidente do Equador não o tornam tão distante de nós como dele nos fazem próximos os princípios universais que constituíram a dominante de sua existência.

A CONSCIÊNCIA DE UMA VOCAÇÃO

Garcia Moreno desde jovem lutou por seus ideais. Ao contrário de muitos que enveredam pela política para satisfazer seus interesses, ainda que legítimos, o que fez o nosso personagem envolver-se ativamente na vida de seu país foram sempre os princípios que o norteavam. Certa vez, já Presidente, a um de seus irmãos que, ao testemunhar a ingratidão de seus compatriotas, o exortava a deixar a pátria, oferecendo-lhe tantos recursos financeiros quantos desejasse para levar uma vida despreocupada e tranquila, respondeu: «Deus não me criou para fazer o bem em qualquer lugar, mas no Equador».

Essa consciência do dever diante de Deus, que amadureceu na alma de Garcia Moreno ao longo dos anos em que se dedicou a salvar o seu país da impiedade e da imoralidade, levou-o desde cedo a uma oposição ativa contra o governo do General Urbina. Irritado com os violentos ataques que Garcia Moreno lhe fizera através do primeiro número de seu periódico «La Nación», lançado em 8 de março de 1853, Urbina mandou adverti-lo de que seria preso se ousasse publicar o segundo número. Não logrando êxito essa ameaça, a 15 de março foi consumada a violência, com a prisão de Garcia Moreno e dois companheiros, que foram imediatamente deportados para Nova Granada — a atual Colômbia — onde deveriam ser encarcerados pelo governo de Bogotá, do qual Urbina era títere.

A caminho, recolhidos à prisão de Pasto, cidade colombiana fronteiriça com o Equador, conseguiram os prisioneiros burlar a vigilância e evadir-se. Alguns dias depois, disfarçado, Garcia Moreno penetrava em Quito a fim de tentar levantar seus correligionários contra o ditador. Pouco tempo bastou para que percebesse que seus amigos, os conservadores, não haviam ainda sofrido o suficiente para se rebelarem contra a tirania urbinista. Vendo que nada conseguia, retirou-se para o Peru, de onde passou a aguardar e apressar os acontecimentos. Seus amigos de Guaiaquil elegeram-no senador: não teve dúvida Urbina, ao abrir-se a sessão parlamentar, em mandar prender e deportar novamente para o Peru o adversário ostensivo de seu governo, violando dessa forma as imunidades que a constituição garantia ao eleito.

ANOS DE EXÍLIO

Exilado no Peru, vivendo na pequena cidade marítima de Payta, aguardou Garcia Moreno por dezoito meses que a situação de seu país se modificasse. Por fim, momentaneamente desesperançado, embarcou para a França a fim de ali dedicar-se a estudos.

Em Paris, sofreu o fenômeno de entibiamento que tanto persegue aqueles que são chamados às grandes obras. Não que anteriormente trilhasse com segurança os caminhos do Evangelho. Quando anos antes defendera os Jesuítas ameaçados de expulsão pelo governo equatoriano, confessara: «Sou católico, sinto-me orgulhoso de sê-lo, se bem que não possa ser contado no número dos cristãos mais fervorosos». Mas o ambiente parisiense, tão deletério em muitos de seus aspectos, ia pouco a pouco privando-o do ardor apostólico que apesar de tudo o animava até então.

Um incidente providencial arrancou-o dessa vertente perigosa. Certo dia em que um grupo de amigos atacava a Religião Católica, Garcia Moreno pôs-se a defendê-la com veemência. «Falais bem, meu caro, objetou-lhe um dos seus interlocutores; mas essa Religião tão bela, parece-me que negligenciais um pouco a sua prática. Quanto tempo faz que vos confessastes pela última vez?» Desconcertado um instante, respondeu: «Retrucastes-me com um argumento pessoal que pode vos parecer excelente hoje, mas que amanhã, dou-vos minha palavra, não valerá mais». Deixando o local, recolheu-se a longa meditação, depois da qual foi diretamente confessar-se em uma igreja; no dia seguinte acercava-se da mesa eucarística. Retomou então seus hábitos de piedade, para nunca mais deixá-los. Quase todos os dias era visto na Missa. Rezava diariamente o terço, devoção que sua mãe lhe havia ensinado. Foi nessa época que empreendeu a leitura da história da Igreja de Rohrbacher, obra ultramontana que leu três vezes e que o inspirou deveras quando mais tarde procurou levar o seu país para os caminhos que a Divina Providencia lhe apontara.

DE VOLTA AO EQUADOR

O fim de 1856, pouco após a substituição de Urbina por Roblez na presidência, como este procurava ganhar popularidade à custa de indulgencia para com aqueles que seu antecessor e mestre havia perseguido, os amigos de Garcia Moreno lhe obtiveram um salvo-conduto para voltar ao Equador. Recebeu inúmeras homenagens logo ao chegar. A municipalidade de Quito nomeou-o alcaide, o que correspondia a juiz de primeira instância. Vagando a reitoria da Universidade de Quito, os professores elegeram-no para o cargo, em cujo exercício soube dar àquela instituição de ensino um grande impulso, atuando com uma severidade que fazia com que os alunos se empenhassem nos estudos; criou ali uma cadeira de química, da qual foi o primeiro professor.

Entretanto, não tinha outro objetivo senão o de implantar no Equador uma ordem de coisas que favorecesse a Religião verdadeira, e, assim sendo, achou que devia reingressar na política, candidatando-se ao senado. Para apoiar o partido oposicionista que então organizou, fundou um novo jornal, «La Unión Nacional», o qual imediatamente passou a atacar os desmandos do governo e a fazer propaganda da oposição. O periódico saiu à luz pela primeira vez em abril de 1857; a 15 de setembro do mesmo ano seus esforços eram coroados de êxito com a posse de Garcia Moreno e de seus co-candidatos, os quais conseguiram eleger-se para o senado apesar do grande esforço de coação que o governo de Roblez exerceu — recorrendo até mesmo à pressão policial no momento da votação — para evitar que vozes dissonantes se erguessem na câmara alta.

Durante os anos em que ocupou seu lugar no senado teve Garcia Moreno muitas ocasiões de atacar o governo e as irregularidades administrativas que este praticava. Não perdeu também a oportunidade de apresentar projeto de lei proibindo a existência de lojas maçônicas no país, isso em nome da aversão que um Estado oficialmente católico, e com maioria absoluta de católicos, deve ter à seita. Como resultado de sua ação vigilante contra um governo que se esmerava em atitudes anticristãs e despóticas, tentaram Roblez e Urbina assassiná-lo, o que não foi possível porque o povo de Quito, sabendo da ameaça, cercou o futuro Presidente no momento em que, ao sair do senado, deveria ser morto, não permitindo assim a ação dos sicários encarregados do crime. Em desespero de causa, determinou o governo que os seus representantes no Congresso não mais comparecessem às sessões, vindo a faltar desse modo o quorum essencial à realização dos debates e passando Roblez a governar sem a colaboração das casas legislativas.

A essa altura dos acontecimentos já era tão grande o caos administrativo no país que, na falta de outros recursos para fazê-lo voltar à ordem, e com forte apoio da opinião pública, Roblez foi declarado deposto e, a 1º de maio de 1859, formou-se um governo provisório do qual Garcia Moreno assumiu a chefia. Resultou daí uma ação armada que durou cerca de quinze meses e teve seu término com a tomada de Guayaquil, último reduto do governo deposto, a qual se deu no dia 24 de setembro de 1860, festa de Nossa Senhora das Mercês. Decretou então Garcia Moreno que, «para agradecer à Mãe do Divino Libertador, bem como para merecer sua assistência no futuro, o exército da república seria colocado sob a proteção especial de Nossa Senhora das Mercês e, cada ano, no dia desse grande aniversário, o governo e o exército assistiriam oficialmente às solenidades da Igreja».

CHEFE DE ESTADO

Terminada a campanha militar, restava ainda a batalha política a vencer, e Garcia Moreno, contando com o apoio incondicional da opinião pública, tinha diante de si não só os seus adversários, mas ainda os seus aliados. Vejamos o que diz o seu biógrafo, Pe. A. Berthe, sobre a situação então reinante: «Cercado pelas repúblicas vizinhas, ciumentas umas das outras, mas sempre prontas a se darem as mãos para sustentar os direitos da Revolução, o Equador não poderia aceitar a direção da Igreja sem levantar tempestades na Nova Granada e no Peru. No interior, todos os partidos infatuados de ideias modernas bradariam traição. Os liberais, com efeito, não viam na Igreja senão uma escrava a serviço do Estado; os radicais maçons, uma inimiga a destruir; os próprios católicos hesitavam, na maior parte, entre os direitos inalienáveis da Igreja e os pretensos direitos do povo. Partidários da conciliação «à outrance» empenhavam-se em resolver o problema da Igreja livre no Estado livre, como outrora se procurava a quadratura do círculo. Esses elementos disparatados, Garcia Moreno tinha podido reuni-los um instante sob a bandeira da união nacional, por isso que o instinto de conservação material era suficiente para determinar os liberais e democratas a lhe prestarem apoio contra Urbina, o inimigo comum. Mas, excelentes para ganhar a batalha, as coligações apresentam graves inconvenientes no dia seguinte à vitória: cada um dos partidos ergue-se em toda a sua estatura, e pede sua parte no produto da vitória, quando não o quer inteiro para si. Essas considerações são suficientes para fazer conhecer o ambiente dentro do qual Garcia Moreno, chefe do governo provisório, iria procurar orientar o Equador para caminhos mais de acordo com a doutrina da Igreja.

Competia-lhe em primeiro lugar promover as eleições que dariam ao país uma Convenção Nacional, a qual por sua vez elaboraria a nova constituição e escolheria o novo Presidente. Devia, pois, manobrar no sentido de obter, que os eleitos fossem, na medida do possível, elementos que apoiassem as reformas que pretendia realizar. Para esse efeito modificou a legislação eleitoral de modo a facilitar a eleição de pessoas católicas e honradas. Os políticos da oposição não deixaram de se manifestar contra essa reforma, mas as eleições processaram-se normalmente, atingindo os objetivos do chefe do governo.

Na sessão de abertura da Convenção Nacional o governo provisório entregou a esta o poder, depois de ter-lhe prestado conta de seus atos. Garcia Moreno foi, no mesmo dia, eleito Presidente interino, ao mesmo tempo que era confirmado o decreto que colocara o Equador sob a proteção da Virgem das Mercês. A unanimidade que sufragou essas duas decisões não impediu que logo após, ao começarem os debates que deveriam dotar o país de uma constituição, se patenteasse a profunda divergência existente entre os que, junto com Garcia Moreno, queriam que ela fosse católica e os que desejavam que não fosse mais que um reflexo das ideias liberais e positivistas que já infeccionavam a maior parte das constituições dos novos Estados americanos.

UM GRANDE REFORMADOR

Garcia Moreno queria dar ao Equador uma constituição visceralmente católica, como único meio de «moralizar o pais pela enérgica repressão do crime e pela educação sólida das jovens gerações, de proteger a santa Religião de nossos antepassados, e de realizar as reformas que nem o governo nem as leis ordinárias podiam fazer por si mesmos». Isso dizia ele em sua mensagem presidencial de 1861. Mas, a fim de evitar cristalizações que poderiam fazer cair por terra seus planos, contentou-se no começo com impedir que fosse promulgada qualquer disposição capaz de paralisar a restauração católica que colimava.

A constituição votada dizia, logo de início, que a Religião Católica Apostólica Romana era a Religião do Estado, com exclusão de qualquer outra. Essa declaração não era novidade nas repúblicas americanas; mas os legisladores não costumavam tirar daí todas as consequências, bastando dizer que, por liberalismo, em geral restringiam muito os poderes presidenciais, privando o chefe do Estado dos meios essenciais à manutenção da ordem, condição indispensável à sobrevivência de qualquer sociedade. Assim, quando, aprovada a constituição, Garcia Moreno foi eleito Presidente, sentiu-se na obrigação de recusar o cargo por julgar os poderes deste insuficientes para atingir os objetivos que tinha em vista. Com a intervenção de amigos, contudo, acedeu, assumindo a presidência. Aliás, para lhe manifestar sua boa vontade, os deputados aprovaram diversas leis orgânicas que permitiriam ao novo chefe do governo realizar muitos dos planos que a constituição aparentemente obstava. Uma dessas leis determinava que o Presidente proporia uma concordata ao Soberano Pontífice, a qual seria posta em execução independente de ratificação do futuro Congresso. Por essa porta aberta iria Garcia Moreno fazer passar todas as liberdades da Igreja que a constituição não reconhecia.

Não vamos aqui descrever a enorme atividade desenvolvida pelo grande estadista ao promover a restauração administrativa, financeira, do exército, da instrução pública, e de outros setores da vida nacional; descrevê-la escapa ao objeto deste artigo, se bem que o homem que a realizou só por isso já se tenha tornado digno da gratidão de seus compatriotas. Mais importante ainda foi a concordata por ele proposta e assinada com a Santa Sé, e que possibilitou a reforma religiosa e consequente reforma moral da nação equatoriana. É o que veremos em próximo artigo.

GARCIA MORENO — gravura da época