A REFORMA AGRÁRIA

ANIZ BADRA – IVÃ LUZ

JANGUISMO SEM JANGO

Causou profundo abatimento e desolação nos círculos rurais esclarecidos de todo o País o fato de ter a Câmara Federal aprovado o substitutivo do deputado integralista Ivã Luz ao projeto do pedecista Aniz Badra, sobre a reforma agrária. A aprovação se deu em sessão do dia 7 de abril p.p. por votação simbólica, sendo a propositura imediatamente remetida ao Senado, onde se encontra até agora.

Comentou-se em muitos círculos que a Câmara tomou essa deplorável decisão no momento em que todas as atenções estavam voltadas para a crise política. De sorte que não foi possível à verdadeira opinião pública acompanhar o andamento do assunto, nem exercer sua natural e legítima influência sobre as deliberações. Foi a bem dizer — é a nossa impressão — uma rasteira, segundo a expressão vulgar, pregada no País pelo pugilo de prosélitos da reforma agrária socialista que fazem parte da Câmara.

Que saibamos, as únicas vozes que se ergueram em todo o Brasil para tentar impedir o estabelecimento da ditadura agro-reformista da SUPRA, consagrada naquela propositura, foram as dos ilustres autores de «Reforma Agrária — Questão de Consciência», D. Geraldo de Proença Sigaud, Arcebispo de Diamantina, D. Antonio de Castro Mayer, Bispo de Campos, Prof. Plinio Corrêa de Oliveira e economista Luiz Mendonça de Freitas.

Em magnífico estudo, entregue em mãos, com uma mensagem, a cada deputado e a cada senador, esclareceram eles as gravíssimas consequências da eventual aprovação do projeto Badra-Luz.

O texto desse pronunciamento reproduz, no que é aplicável ao projeto em questão, o memorial enviado pelos autores de RA-QC aos senadores e deputados em julho do ano findo (e publicado no n° 152 de «Catolicismo», de agosto de 1963), sobre o substitutivo Afranio Lages, substitutivo este transcrito em grande parte na propositura que a Câmara vem de aprovar.

DITADURA AGRÁRIA

O documento lembra, inicialmente, a condição de seus signatários, que, alheios às lutas partidárias e não tendo qualquer interesse pessoal a defender na questão agrária, visam tão somente, com o seu novo pronunciamento, servir os princípios em prol dos quais publicaram, há três anos, o livro «Reforma Agrária — Questão de Consciência».

E observam: «A grande maioria, dos brasileiros — e mesmo dos agricultores — não conhecia senão muito vagamente o contendo do projeto Aniz Badra. Entre os próprios Srs. Deputados, provavelmente muitos não conheciam o substitutivo Ivã Luz que festivamente aprovaram. Convém esclarecer urgentemente a opinião pública brasileira sobre essa nova lei, que, nesta hora de magnífica e sadia reação nacional contra o comunismo, consola de seus dissabores o Sr. Luis Carlos Prestes, pois ela dá um grande passo no sentido de reduzir a lavoura brasileira a escrava do Estado, tal qual acontece na URSS, em Cuba, etc.».

Passando à análise do substitutivo Ivã, Luz, os autores registram que nele foram eliminados os dispositivos confiscatórios do projeto Aniz Badra, salvo porém o art. 16, «que fulmina com verdadeira pena de confisco sem indenização todo imóvel rural susceptível de aproveitamento econômico e mantido totalmente inexplorado e sem benfeitorias por mais de dez anos». Desta duríssima penalidade não são sequer excetuados os bens de órfãos, viúvas ou inválidos. O documento mostra como, num país como o nosso, no qual cerca de 6 milhões de quilômetros quadrados pertencem ao Poder Público, nada há, de modo geral, que torne ilícito ao particular manter incultas as suas terras.

Por outro lado, «o substitutivo contém em todos os seus elementos essenciais a parte talvez mais despótica e reprovável do projeto Aniz Badra. Como veremos, ele instaura no Brasil uma ditadura agrária cem vezes mais férrea do que todos os regimes autoritários por que tem passado o País. Ele confere ao Presidente da República um poder discricionário sobre todos os fazendeiros, reduzidos a parias. Ele aumenta de tal maneira o poder da União, que destrói na prática o regime federativo».

Os autores recordam que uma das diferenças mais características entre um Estado cristão e um Estado socialista, consiste na atitude respectiva em face do chamado princípio de subsidiariedade, cuja mais ampla explanação se encontra na Encíclica «Mater et Magistra». Este princípio estabelece que uma sociedade maior não deve fazer aquilo que uma sociedade menor ou o indivíduo possa fazer com seus próprios recursos. Consagra, portanto, o valor da iniciativa privada, que o socialismo, tanto quanto o comunismo, rejeitam.

Ora, por força deste novo projeto, a direção de cada propriedade rural é transferida ao Poder Público, que através da SUPRA dirigirá a política agrária em todo o País. E assim, todo um «aparatoso edifício burocrático será construído sobre o pressuposto de que o fazendeiro, seja ele grande, médio ou pequeno, é o profissional mais inepto do Brasil. De sorte que, ao passo que os industriais, os comerciantes, os advogados, médicos e engenheiros, por exemplo, exercem suas profissões sob responsabilidade pessoal, o fazendeiro, reduzido a menor de idade, para quase tudo precisa da tutela do Poder Público».

Realmente, de acordo com o projeto, «não é mais o fazendeiro que sabe plantar em suas terras. Por ele pensa e decide o Poder Público, a quem incumbe fazer os planos de zoneamento agrícola e adotar as medidas para incrementar a sua produtividade (arts. 18 e 19)». E «não é mais o proprietário que adapta as dimensões de sua propriedade às necessidades da produção. Pois, como vimos, é em função do zoneamento feito pelo Poder Público, que o mesmo Poder Público fará a distribuição e redistribuição da terra».

Note-se que isto é verdade não só com relação ao grande e médio fazendeiro, mas também no que diz respeito ao pequeno proprietário.

E quem não se conformar com esse totalitarismo agrário sofrerá a represália do poder estatal contrariado: «Não terá direito à assistência técnica e creditícia e aos demais favores desta lei o proprietário que se recusar ao cumprimento das diretrizes emanadas do zoneamento agrícola» (art. 20).

VITÓRIA DO JANGUISMO

O proprietário ficará, assim, reduzido em suas terras a mero gerente do Estado. Para cada passo precisará de uma licença. Para cada licença, de um requerimento, com toda a sequela de embaraços que lhe oporá a burocracia. «No ápice de tanta papelada, de tanta engrenagem, de tanta repartição, estará, onipotente, tanto ou mais do que um déspota oriental, o Poder Público».

«Como é obvio, no dia em que for aprovado o projeto, o cargo de Presidente do Brasil passará a ser institucional e inevitavelmente o de ditador do Brasil, por força da reforma agrária que se pretende adotar, e por mais afável, liberal e condescendente que seja, por índole e convicção, quem exercer a suprema magistratura do País. E, supremo paradoxo, é para pôr nas mãos do Chefe de Estado tal soma de poderes que, aprovando tal projeto, confluiriam os partidos políticos que acabam de derrubar o Sr. João Goulart. Eles criariam uma ditadura econômico-social de sentido totalitário e janguista. Jango teria caído, e o janguismo teria triunfado».

Os signatários do documento observam que, «pelo capítulo III do malfadado projeto de lei de reforma agrária, qualquer fazendeiro que não se submeta dócil e pacientemente à política dominante no cenário federal pode ser facilmente fulminado pela SUPRA. Estabelecer-se-á o zoneamento na região em que ele é fazendeiro, e sobre ele desabarão todas as calamidades da lei agrária. Cada fazendeiro será assim um escravo político, o poder do governo federal em cada Estado será imenso. A autonomia política dos Estados e o regime federativo terão cessado de existir».

A HISTORIA REGISTRARÁ

E depois de lembrar a ineficácia do dirigismo estatal no Brasil, onde já existem 72 organismos oficiais relacionados com a atividade rural, os autores de RAQC concluem:

«Na presente exposição, feita com a franqueza que nos impõe o patriotismo inquieto e até alarmado, não tivemos em vista pessoas, mas apenas a defesa das máximas sagradas da civilização cristã e dos mais altos interesses da nacionalidade. Golpeada a Propriedade agrícola, e agrilhoado pela burocracia o Trabalho rural, definharia inevitavelmente a Família no campo. E com ela pereceriam alguns dos melhores valores da nossa Tradição de país cristão, mutilada segundo as utopias igualitárias do socialismo. É isto que, sem qualquer acepção de pessoa, desejamos evitar.

«É pois, numa atitude de respeitosa e cordial expectativa que apelamos para os detentores do Poder Legislativo, na Câmara e no Senado, para que depois de madura reflexão, e no exercício das suas altas atribuições constitucionais, detenham o passo à reforma agrária socialista e confiscatória que ora parece na iminência de ser aprovada.

«A História registrará com gratidão e aplauso o benefício que assim prestarão à Tradição, à Família, à Propriedade e ao Trabalho, que são valores básicos da grandeza cristã no Brasil».

QUESTÃO DE CONSCIÊNCIA

O documento foi, conforme salientamos, entregue em mãos a cada um dos membros do Congresso Nacional, acompanhado de uma mensagem cujo teor é o seguinte:

«Os autores de «Reforma Agrária — Questão de Consciência», nesta hora de suprema confusão, de grandes esperanças e não menores perigos para a nacionalidade, vêm solicitar a V. Excia. a maior atenção no estudo das objeções junto, relativas ao projeto de reforma agrária cuja aprovação açodada está sendo pedida ao Congresso Nacional.

«Transformando em lei tal projeto, nossos legisladores chocariam a fundo a consciência cristã, com ele radicalmente incompatível. Lançariam a valorosa classe votada à produção rural em uma crise econômica das mais graves. E, no momento mesmo em que acaba de ser derrubado o governo do Sr. João Goulart, colocariam nas mãos do futuro Presidente da República o cetro de ferro de uma ditadura rural de estilo socialista. Seria, pois, a permanência do que se tem chamado janguismo, ainda que sem Jango.

«Do grave dano que a aprovação desse projeto ocasionará à consciência cristã do povo brasileiro é prova irrefutável o abaixo-assinado de mais de 27 mil agricultores e pecuaristas por nós entregue aos Srs. Presidentes do Senado e da Câmara Federal em 17 de julho de 1963, e a voz de mais de 200 mil brasileiros que acabam de afirmar, em interpelação à Ação Católica de Belo Horizonte, que os católicos não podem aceitar, em consciência, uma reforma agrária de caráter confiscatório, socialista e anticristão.

«Pedimos pois a V. Excia. a sua esclarecida atenção, e seu voto cristão e patriótico no sentido de evitar para nossa Pátria essa grave calamidade».

NÃO TÊM ARGUMENTOS

O oportuno pronunciamento dos autores de RA-QC teve grande divulgação na imprensa.

Não nos constam todas as reações que ele provocou no seio da Câmara Federal e do Senado. Sabemos apenas de três pequenos discursos dos Deputados Dias Menezes, do PTN, Ewaldo Pinto, do MTR, e Aniz Badra, do PDC, todos de São Paulo.

O Deputado Dias Menezes, em tom veemente e desabrido, qualificou-o — sem dar argumentos — de «um dos documentos mais retrógrados, mais inconcebíveis, que poderiam ser trazidos a debate», tachando-o três vezes, em seu curto pronunciamento, de «impertinente». Acrescentou que, depois de o projeto ter «passado pelo crivo de altas autoridades e pelo exame acurado de nossas comissões técnicas», «o Bispo (sic!) de Diamantina, apoiado também pelo Bispo de Campos, D. Antonio de Castro Mayer, em documento assinado ainda por dois ilustres desconhecidos, se permitem aqui declarar que o projeto que deverá ser aprovado pela Câmara dos Deputados não representa senão a criação de uma ditadura de ferro, num estilo rural socialista, representando a permanência do que se tem chamado de «janguismo» sem Jango» (o orador não explicou porque rejeita esta alegação). Condenando a intervenção dos autores de RA-QC, que classifica textualmente de «intromissão indébita», o Deputado Dias Menezes destoa da posição extremadamente democrática que alardeia. Por outro lado, ao mencionar como «ilustres desconhecidos» dois dos eminentes autores de uma obra de enorme repercussão no Brasil e no Exterior, dá prova de que não está habituado a acompanhar os livros que se publicam no País.

O Deputado Ewaldo Pinto diz em seu discurso: «Esse livro de oitocentas páginas foi escrito para provar que reforma agrária é pecado. Oitocentas páginas de dois Bispos, D. Geraldo de Proença Sigaud e D. Antonio de Castro Mayer, e dois economistas, com o objetivo fundamental de produzir impacto sobre a tentativa de revolução agrária paulista». E acrescenta indignado: «Agora vêm com uma circular — que chegou tarde — através da qual pretendiam bloquear a tramitação até do projeto de reforma agrária através de lei ordinária, de iniciativa do Deputado Anis Badra, chamando de anticatólica, anticristã, socializante, destruidora da produção rural, essa proposição que a Câmara votou por expressiva maioria na sessão de anteontem». Também esse fogoso parlamentar se julgou desobrigado de dar qualquer argumento para justificar a indignação que ostenta. «O Congresso não pode pactuar com essa gente, continua o Sr. Ewaldo Pinto, com esse reacionarismo vesgo, esse reacionarismo cego e feroz».

FALA O AUTOR DO PROJETO

Também o deputado pedecista Aniz Badra, autor do projeto primitivo, tentou, em tom aliás mais comedido, repelir as censuras feitas à sua propositura: «Fui honrado com uma crítica ao meu projeto sobre reforma agrária pelos autores do livro «Reforma Agrária — Questão de Consciência». Lamento ter que discordar da extensa argumentação formulada pelos meus oponentes. O meu projeto nada tem de totalitário, tirânico ou estatista, mas não é também um projeto conservador. A questão agrária, ao contrário do que pretendem os meus opositores, não é uma simples questão de consciência. Evidentemente a consciência é um dos pressupostos humanos em qualquer empreendimento social, mas o que se impõe no momento é também a reforma da estrutura agrária. Este o propósito do projeto que acaba de receber aprovação maciça da Câmara dos Deputados, reforma pacifica, mas efetiva, para superar o atraso, o abandono e a injustiça que recaem sobre a nossa população agrária. Daí, Sr. Presidente e Srs. Deputados, chegaremos à conclusão que a reforma agrária não é apenas questão de consciência». Como se vê, o Sr. Aniz Badra limita-se a afirmações e negações, não desenvolvendo qualquer argumentação que lhes sirva de base. E quanto à questão de consciência, demonstra não ter sequer entendido em que consiste ela na conceituação dos autores de «Reforma Agrária — Questão de Consciência».


OPORTUNAS DECLARAÇÕES DE UM GRANDE PRELADO

Entre tantos discursos, muitos dos quais vazios e ribombantes, a que os acontecimentos políticos têm dado lugar, destaca-se pela elevação dos princípios em que se inspirou, a saudação que o Exmo. Revmo. Sr. D. Geraldo de Proença Sigaud, S. V. D., Arcebispo de Diamantina, dirigiu ao Vice-Presidente da República, Sr. José Maria Alkmim, na grande manifestação a este feita pelo povo de Belo Horizonte no dia 17 do mês próximo passado.

O discurso do ilustre Antistite teve tal difusão na imprensa diária, que seria de todo supérfluo reproduzi-lo aqui.

O comentário de alguns tópicos, entretanto, interessará por certo o leitor.

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Antes de tudo, parece essencial recolher o corajoso depoimento do Prelado, para abrir os olhos dos católicos que ainda não os tenham aberto, sobre a verdadeira natureza e gravidade do perigo que o Brasil correu. Diz S. Excia. Revma.:

«Realmente, o Governo que acaba de ser deposto estava preparando a entrega da Pátria à Rússia. Nós todos brasileiros víamos estarrecidos esta suprema traição. E a perspectiva de vermos nossa Pátria escravizada e transformada em satélite da Rússia fazia ferver de indignação o nosso coração, e significava para todos os legítimos brasileiros um brado de convocação às armas para a defesa da Pátria.

«Mas não era somente a Pátria que estava sendo vendida ao imperialismo soviético. Preparavam também para a Igreja o calvário do seu martírio. Nós brasileiros, filhos da Santa Igreja, víamos brasileiros desnaturados preparar os instrumentos com que a Igreja ia ser martirizada». «Víamos a Igreja fugir para as catacumbas e a Pátria mergulhada no silêncio dos campos de concentração».

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Importa, além disto, notar estas palavras sabias sobre o nexo entre o agro-reformismo confiscatório e os propósitos de bolchevização do Brasil:

«Sabíamos que a porta pela qual o comunismo queria entrar em nossa Pátria era a reforma agrária confiscatória. Por isto decidimos impedir este tipo de reforma, e atacar todas as chamadas — «reformas de base» janguistas, porque sabíamos que elas eram instrumentos da escravização do País. Por isto nos lançamos na luta ideológica, e publicamos o livro «Reforma Agrária — Questão de Consciência», em colaboração com o venerando Bispo de Campos, D. Antonio de Castro Mayer, e com o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira e o economista Luiz Mendonça de Freitas. Lançamos a «Pastoral sobre a Seita Comunista» e o «Catecismo Anticomunista». O magnífico grupo «Tradição, Família e Propriedade», apoiado pelos formidáveis marianos da Boa Viagem, se mobilizou e sacudiu Minas Gerais, São Paulo e o Brasil para a luta ideológica e religiosa contra o comunismo».

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Por fim, não pode passar sem um registro, por seu valor como subsidio histórico, a afirmação feita pelo eminente Arcebispo de Diamantina, de que o movimento de opinião de que resultou a queda do Sr. João Goulart, se em sua etapa suprema e final teve testa, nos respectivos setores, figuras da projeção dos venerandos Cardeais do Rio e da Bahia, militares do porte do Gen. Mourão, do Gen. Guedes e do Cel. José Geraldo, e homens públicos com a influência, a sagacidade e o espírito de iniciativa do Sr. José Maria Alkmim, foi na sua essência um imenso movimento popular, com base em todas as camadas sociais, que bem representou a inexorável e fundamental repulsa do País ao comunismo em todos os seus aspectos, em sua tintura-mãe como em suas várias diluições.

O que é necessário que conste, para ilustrar até que ponto o reformismo confiscatório — que não morreu — é antipático ao genuíno povo brasileiro.


AMBIENTES, COSTUMES, CIVILIZAÇÕES

Fé, senso artístico, bem-estar popular na civilização orgânica e cristã

Plinio Corrêa de Oliveira

Se Antero de Figueiredo houvesse feito pela causa da Revolução, e especialmente pela do comunismo, todo o bem que fez pela Igreja, seria ainda hoje, no Brasil, um escritor famoso. Todas as oficinas de popularidade que a esquerda tem tão numerosas e ativas, celebrariam amiúde a original beleza de seu estilo, a sua "verve", seu pensamento profundo, substancioso e límpido, bom como a finura de seu senso de observação. E numerosos críticos católicos, da cátedra e da imprensa, diriam encomplexados e enfáticos: "quanto a esse grande, esse imortal escritor, embora não tenha eu bem precisamente suas ideias, compraz-me em reconhecer e proclamar com a mais intransigente imparcialidade que teve de sobejo as seguintes qualidades...", e viria em continuação a cantilena laudatória copiada com humildade e precisão dos textos da propaganda subversiva.

Mas acontece que Antero foi católico, e, crime ainda mais grave, católico genuíno, apóstolo destemido e eficiente da Contra-Revolução.

Eis porque vai caindo no olvido. É que o mesmo complexo feito de pouca fé, de tibieza e de faceirice, que nos leva a ser turiferários da Revolução, nos tira a altaneria necessária para afirmar em face dela os verdadeiros valores da verdadeira cultura, verdadeiramente católica.

* * *

Transcrevamos pois uma passagem de Antero, em que ele glorifica um dos mais belos aspectos do que é o povo na civilização cristã ( "Espanha", 4ª edição, pp. 280-285 ).

Bem o contrário da massa anônima, vazia, cansada e revoltada dos bairros proletários nas grandes cidades modernas, é esse povo hispânico estuante de fé, trasbordante de personalidade e de saúde, das Vascongadas.

Os filhos da Guipuzcoa — parte das Vascongadas — se reputam todos fidalgos, mesmo quando são simples trabalhadores do campo... sem SUPRA nem reforma agrária. E Antero de Figueiredo nos dirá porque.

Nossos clichês, com casas da Biscaia — também parte integrante das Vascongadas — ilustram adequadamente as descrições do literato português. Descrições que constituem um excelente conjunto de observações sobre a sociedade orgânica, qual floresceu na Espanha, nossa nobilíssima e cristaníssima irmã.

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"É nestes verdes outeiros ( da Guipuzcoa ) que assenta a casa basca, típica, de lavradores, casa ao mesmo tempo rústica e senhorial, — singela nas suas linhas aldeãs, nobre no seu aspecto grave, e pitoresca no conjunto. ( ... ) aqui é que ela, a casa basca, é como Deus a deu, quero dizer simples e natural, autóctone, nascendo do solo e do clima, para servir o lavrador em suas precisões domésticas, agrícolas, pastoris, e também em seus brios de raça de lavradores-cavaleiros, como assim se consideram estes rústicos vasconços de avoengas linhagens. "...Hidalgos todos, que por derecha línea descendían de la primera sangre", como diz Lope de Vega dos navarros aldeões de Baztan.

Ela é sempre um casarão de paredes sólidas, onde se encontra num só edifício o que em outras terras anda separado em construções distintas: a casa de habitação do amo, a dos servos, os currais, os palheiros, os alpendres dos carros, das caniçadas, do arado, das grades — de toda a alfaia agrícola. O basco instala debaixo do mesmo teto a família, os criados, os gados, os fenos, a adega do vinho, a tulha da azeitona, o celeiro do grão, Nestas casas, o enorme telhado de duas águas ( ... ) diz a vida patriarcal que em comum fazem homens, mulheres, crianças, animais, utensílios, coisas, albergando todos e tudo sob a sua proteção.

Na fachada, esse beiral colabora esteticamente com sua sombra; materialmente, com seu conforto; moralmente, com seu carinhoso gesto de abrigo. Que honrados e afetuosos são estes telhados e beirais! Dão a impressão de que, nas longas seroadas invernosas, à hora benta da leitura dos livros santos e das rezas em comum, todas as pessoas e coisas — família, servos, arados, rocas, a masseira do pão, os tonéis da sidra, as talhas do azeite — acompanham as orações do senhor e amo; e que nos currais os rebanhos se quedam em silêncio religioso e as almas dos brutos e as dos objetos se cristianizam, ouvindo as palavras de Jesus.

( ... ) Para o primeiro andar sobe-se por uma exterior escada de pedra, com alpendre à entrada - galilé de religioso e hospitaleiro acolhimento. O arquiteto, a visar somente a função útil do edifício, pensou menos, talvez, na função bela da construção; no entanto, esta lá floriu espontânea, logicamente nascida do próprio arranjo arquitetônico, em ornatos tão naturais que sua arte é da melhor por ser arte em que se não vê propósito de o ser. Assim, são ornato os grossos cachorros do beiral, que vêm a ser o prolongamento ( topos apenas cabeçados, e arestas apenas afagadas ) do forte travejamento, galgado com o da cumeeira, e vindo de fora a fora, das traseiras à frontaria, com é também o grande telhado, que desce e esborda nas ilhargas sustidas por espeques, cuja fileira, obliquando da parede às telhas vermelhas, toma, na perspectiva, o aspecto de lanças paralelas, enristadas, a sustentar um toldo carmesim: - o beiral. Nos andares de enxaiméis, para melhor segurar os enchimentos de barro e cal, as vigas ao alto têm de ser próximas e salientes; e, pintadas de verde, - seus traços verticais, equidistantes e simétricos, ornam a fachada. O pouco acabamento, em apicoado grosso, no calcáreo amarelento do arco e nos umbrais da entrada para as lojas, é tão bem cabido que dir-se-ia um rústico florentino; e, pelo cunhal acima, as agulhas de pedra, grandes e pequenas, que o vão travando, postas à vista e em relevo, tostadas pelo sol e musgadas pelo tempo, adornam a fachada com as suas rachas coloridas a destacarem-se na cal. As paredes exteriores da casa enchem-se de cores - luz e sombra - dos topos e das fileiras dos barrotes que sustentam o varandão, e pela cepa que por sobre o seu peitoril debruça festões de parras verdes ligados aos verdes dos campos e das copas das faias - fundos em que ela pousa. E nenhuma destas famílias de lavradores deixa de patentear suas crenças religiosas e seus pergaminhos heráldicos: cravados nas paredes há velhos baixos-relevos de Santas ou Santos protetores do casal, ao lado de pedras de armas, nesta região em que o maior número se julga fidalgo, porque, segundo o basco Perochegui, "Vascongadas e Navarra são o seminário da nobreza de Espanha", visto Sancho VIII, "El fuerte", agasalhador dos aldeões navarros, a todos haver feito fidalgos: - "todos igualmente nobles, porqué su nobleza tiene una sola origen", dizia". ANTERO DE FIGUEIREDO"