«Amicizia», Cavaleiros da Fé, «Messieurs de Lyon» e Missões
F. F. A.
O élan missionário suscitado pela graça nos séculos XVII e XVIII deu novo impulso às missões católicas e colocou a França na vanguarda das nações empenhadas na propagação da Fé. Muito desse florescimento apostólico se deve à atividade das Missões Estrangeiras, sociedade de Padres seculares fundada pela misteriosa «Aa» com o auxílio decisivo da Companhia do Santíssimo Sacramento, a célebre «cabale des dévots» do tempo de Luís XIII.
A aceleração do processo revolucionário, representada pela Revolução Francesa, e o alastramento dos erros desta, imposto por Napoleão, colocaram em perigo todo esse esforço de penetração da Fé nos povos que não conheciam a Revelação. A perseguição religiosa, a destruição sistemática de tudo o que representava a civilização católica, além da desordem e das guerras contínuas em que as nações se viam imersas, obrigaram os católicos da época a combater pela Fé na própria Europa e a lutar pela sobrevivência. As missões ficaram quase ao abandono e só a muito custo alguns centros missionários conseguiram se manter.
Derrotado o Usurpador, a Europa precisava se reorganizar, pôr ordem na confusão em que se encontrava, razão por que a muitos parecia não ser esse o momento oportuno para pensar nas missões. É característica nesse sentido a atitude do Cardeal Consalvi, Secretário de Estado de Pio VII, recusando-se a dar andamento ao projeto de reorganização geral das missões elaborado pelo Secretário da Propaganda.
A graça, no entanto, superou a crise que os homens não se animavam a enfrentar. Tocando as almas, fez renascer dos escombros da Revolução um movimento católico pujante que, arrostando todas as dificuldades, conseguiu reorganizar a vida católica e reerguer o ideal missionário. O século XIX pôde assistir assim a um reflorescimento das missões em nada inferior ao dos séculos anteriores.
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O estudo dos primeiros tempos desse novo surto apostólico é muito atraente e oferece ainda muitos aspectos por explorar. Assim, por exemplo, seria importante caracterizar bem a contribuição das heróicas associações que haviam lutado valorosamente durante as perseguições revolucionarias e que, depois, procuraram restaurar a sociedade católica. Essas associações, entre as quais se deve pôr em relevo a dos Cavaleiros da Fé, na França, e as «Amicizie» italianas, tiveram certamente um papel decisivo no ressurgimento a que aludimos, mas o segredo que as circunstancias as obrigavam a guardar dificulta muito uma avaliação mais exata de sua contribuição. A análise dos poucos documentos que se têm encontrado desvenda, em todo caso, um apostolado muito mais fecundo e variado do que se poderia imaginar.
Ainda há pouco, o Revmo. Pe. Robert Rouquette, S. J., estudando a «Aa», encontrou, por acaso, os arquivos da Congregação de Homens de Lyon, cujos membros eram conhecidos como «les Messieurs de Lyon». Essa Congregação desenvolveu no início do século passado atividades de caráter secreto, que tinham desafiado até então a curiosidade dos historiadores. Essa descoberta permitiu ao Pe. R. Rouquette, num artigo publicado na revista «Etudes»(1), lançar muita luz sobre a história da Obra da Propagação da Fé e sobre o controvertido papel de Pauline Jaricot em sua fundação.
Mais recentemente, as «Edizioni Missioni Consolata» de Turim lançaram o livro «La Rinascita Missionaria ia Italia», do Revmo. Pe. Candido Bona, I. M. C.(2), cuja tese de doutorado sobre as «Amicizie» dos Padres Diesbach e Lanteri já comentamos nesta folha(3). É um livro excelente e muito bem documentado. Nele, com o seu profundo conhecimento da história das «Amicizie», estuda o Autor, detalhadamente, o concurso prestado por essas sociedades católicas italianas ao reerguimento do ideal missionário.
Três são os aspectos dessa contribuição que o Pe. Candido Bona põe mais em evidencia: as «Amicizie» recordaram aos católicos os fundamentos doutrinários do apostolado de propagação da Fé e relembraram a importância e beleza do ideal que o anima; prestaram apoio constante às primeiras Dioceses norte-americanas, que viviam numa extrema pobreza e insistentemente pediam socorro à Europa; e introduziram a Obra da Propagação da Fé na Itália.
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Antes de prosseguir, relembremos rapidamente o que eram as «Amicizie».
A «Amicizia Cristiana» era uma associação católica de caráter secreto, fundada no Piemonte pelo Padre Nicolas Diesbach e consolidada pelo Servo de Deus Padre Pio Brunone Lanteri. Durante a Revolução e o Império ela combateu pela liberdade da Igreja, enfrentando as perseguições e colaborando ativamente com outras sociedades semelhantes para assegurar a ligação entre os chamados Cardeais negros e o Papa Pio VII, o que atenuou as funestas consequências que teria para a Igreja a prisão a que Napoleão os condenara. Apesar da resistência que seus membros opuseram à polícia de Fouché, ao chegar a Restauração estava a «Amicizia Cristiana» com os seus quadros gravemente desfalcados.
Em 1817, no palácio do Marquês Cesare d'Azeglio, reuniram-se os remanescentes da direção da sociedade para estudar a sua reorganização. O Cavaleiro Luigi Provana di Collegno mostrou a necessidade de reestruturá-la em outras bases, propondo a fundação de uma nova sociedade, sem caráter secreto e constituída exclusivamente de leigos, com o fim de difundir a boa imprensa. Aprovada a proposta, nasceu a «Amicizia Cattolica» (nome sugerido por Joseph de Maistre), tendo como secretario o Marquês d'Azeglio. Essa nova associação conservou o mesmo espírito de luta que animava a «Amicizia Cristiana» e foi grande propulsora do apostolado leigo na Itália, quer pelo prestigio pessoal de seus membros, quer pelo zelo com que estes serviam à Igreja onde fosse necessário.
Estudando mais particularmente a ação da nova «Amicizia» no terreno da propagação da Fé, mostra o Pe. Candido Bona a importância dos livros de Joseph de Maistre e dos artigos do Marquês Cesare d'Azeglio para o reflorescimento do ideal missionário.
Joseph de Maistre, nos últimos anos de sua vida, frequentou a «Amicizia Cattolica» e foi nesse período que terminou os seus principais livros, isto é, «Du Pape», «De l'Eglise gallicane» e «Les Soirées de Saint-Petersbourg». Era natural, pois, que neles tratasse dos temas ventilados nas reuniões da «Amicizia». De fato, no capítulo II de «Du Pape» considera a questão das missões sob o ângulo da supremacia pontifícia, e volta a tratar do assunto no décimo primeiro «entretien» das «Soirés de Saint-Petersbourg». Esse novo modo de considerar o problema, apresentado com profundidade e brilho incomparáveis, chamou a atenção dos católicos para a importância do apostolado de propagação da Fé. O grande êxito que tiveram essas obras contribuiu para que o ideal missionário se difundisse pela Europa, favorecendo o reflorescimento das missões.
O Marquês Cesare d'Azeglio foi incansável no esclarecimento da opinião pública sobre o problema. Fundador de «L'Amico d'Italia», um dos primeiros grandes jornais católicos italianos, as colunas deste estavam sempre abertas a todos os missionários que vinham pedir ajuda para os seus trabalhos. D'Azeglio os auxiliava publicando seus apelos e escrevendo inúmeros artigos em favor deles, fazendo a «Amicizia» trabalhar por essa finalidade, e usando o prestigio da sua posição na corte piemontesa para aplanar as dificuldades que o governo, cheio de preconceitos revolucionários, criava para impedir o pleno êxito das «demarches» dos missionários.
É conhecida a influência de Joseph de Maistre sobre o Lamennais da primeira fase, ultramontano e vibrante de zelo. Pode-se, pois, legitimamente filiar à ação da «Amicizia Cattolica» o folheto «Des sociétés bibliques» que Lamennais escreveu nessa mesma época, e no qual se batia também pelo ideal missionário.
Para quem conhece a atual abundância de recursos econômicos do Catolicismo norte-americano torna-se difícil conceber a extrema pobreza das primeiras Dioceses criadas nos Estados Unidos depois da independência. Viviam em dificuldades permanentes e, para mantê-las, seus Bispos eram obrigados com freqüência a percorrer a Europa pedindo o auxílio dos católicos. O Pe. Candido Bona fez um estudo pormenorizado dos contactos que esses Prelados mantiveram com a «Amicizia Cattolica», mostrando o apoio constante que nela deparou a nascente Hierarquia norte-americana. A visita ao Marquês d'Azeglio, alma da associação, era obrigatória para todos esses Bispos, pois sabiam que nele encontrariam o amigo capaz de conseguir todo o auxílio que se lhes poderia dar.
As pesquisas do Pe. Candido Bona são muito interessantes e lhe permitiram, inclusive, corrigir algumas interpretações falsas sobre a conduta de um aventureiro, o Padre Inglesi, que iludiu a boa fé de Monsenhor Du Bourg, um dos fundadores da Hierarquia norte-americana, e amargurou o fim de sua vida. São igualmente interessantes as considerações que o Autor faz sobre a participação do Padre Inglesi na primeira fase da Obra da Propagação da Fé.
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O sistema excogitado por Pauline Jaricot para angariar donativos para as missões, assim como a Obra da Propagação da Fé que consolidou o seu apostolado, são bem conhecidos. A história da fundação dessa obra é, no entanto, obscura e tem dado margem a grandes discussões. Compreendem-se essas dificuldades. A Propagação da Fé foi apoiada, no início, por todas essas associações católicas de caráter secreto, e a campanha de difamação organizada que elas sofreram envolveu a obra de Pauline Jaricot, pondo quase a perder o seu benemérito apostolado.
Foi no dia 3 de maio de 1822 que se realizou em Lyon a reunião de que nasceu a Obra da Propagação da Fé. O Pe. R. Rouquette, no estudo citado, demonstrou que essa reunião foi promovida pelos «Messieurs de Lyon», entre os quais se encontravam Philéas Jaricot, irmão de Pauline, e Henri Didier Petit de Meurville, filho da protetora desta, Mme. Petit. Nessa reunião foi criado o Conselho Central de Lyon, com nove membros, dos quais oito eram também «Messieurs de Lyon».
O Conselho Central pediu aos congregados de Paris que fundassem a obra na capital francesa e foram os Cavaleiros da Fé que disso se encarregaram, ficando o Conselho de Paris constituído por três deles: o Príncipe de Croy, presidente, o Marquês de Rivière, vice-presidente, e o Duque de Rohan, tesoureiro. Esse fato seria suficiente por si só para demonstrar o papel decisivo que os Cavaleiros da Fé tiveram na difusão da obra pela França, se ademais não fosse bem sabido que o capelão deles, Padre Perreau, foi o grande animador da Propagação da Fé naquele país.
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O Padre Candido Bona expõe no seu livro como se deu a instalação da obra no Piemonte, e as negociações que a precederam. É uma contribuição importante para a história dessa associação. A «Amicizia Católica» se encarregou de difundi-la ali, e, como era de esperar, o Marquês d'Azeglio a ela se dedicou inteiramente, enfrentando as prevenções do governo, que não queria permitir a instalação de um Conselho em Turim.
A campanha desencadeada mais tarde, pelo Conde de Montlosier, contra as Congregações Marianas francesas repercutiu na Itália através de uma ofensiva revolucionaria dirigida contra a «Amicizia Cattolica». Nos dois países os objetivos da campanha foram atingidos e tanto os Cavaleiros da Fé como a «Amicizia Cattolica» se viram obrigados a Se dissolverem.
Essa ofensiva atingiu também a Obra da Propagação da Fé, que só pôde sobreviver graças à proteção do Cardeal Mauro Cappellari, Prefeito da Propaganda e mais tarde Papa sob o nome de Gregório XVI. Hoje, a sua existência benéfica rende um testemunho do que foi o apostolado fecundo da «Amicizia Cattolica» e dos Cavaleiros da Fé que ajudaram os seus primeiros passos e a tornaram conhecida na França e na Itália.
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É um prazer acompanhar o Revmo. Pe. Candido Bona nesse estudo tão atraente e sugestivo. Ele dá à sua exposição uma orientação segura e a fundamenta numa documentação abundante, que sabe apresentar sem tornar pesada a leitura. Trata-se de um ótimo livro.
1. Pe. R. Rouquette — «Pauline Jaricot et les Messieurs de Lyon» — «Etudes», tome 313, avril 1962, pp. 3-22.
2. Pe. Candido Bona, I. M. C. — «La Rinascita Missionaria in Itália» — Quaderni Missionari — Edizioni Missioni Consolata — Corso Ferrucci, 14, Turim — 1964.
3. «O Padre Diesbach e as Amicizie» —«Catolicismo», no 159, de março de 1964.
Da Revolução Francesa ao comunismo
Alberto Luiz Du Plessis
O ignominioso processo movido pelo comunismo húngaro contra o Cardeal Mindszenty, com a iníqua condenação que dele resultou, provocou uma imensa emoção não só nos meios católicos, mas em todos os ambientes onde os verdadeiros direitos da pessoa humana merecem algum respeito. A coragem e a sobranceria demonstradas pelo insigne Purpurado, nessa ocasião e ao longo de todas as lutas e sofrimentos que se seguiram, tornaram-no um símbolo autêntico de grandeza de alma católica e magiar; o papel que lhe coube no heroico levante anticomunista de Budapest veio acrescentar à sua legenda um halo de gloria imperecível.
Por ocasião daquele processo, Sua Eminência o Cardeal Eugenio Tisserant, Bispo suburbicário de Porto e Santa Rufina e Decano do Sacro Colégio, publicou uma Pastoral(1) que lançou novas luzes sobre a dolorosa situação da Igreja nos países dominados pelo comunismo, bem como sobre os métodos ali postos em prática com vistas à erradicação da fé. Entre os pontos importantes focalizados no documento há um que chama particularmente a atenção, não só pelo seu valor histórico-sociológico, como pelo fato de não ser comumente posto em relevo como merece. Trata-se da similitude dos processos adotados pela Revolução Francesa e pelo comunismo, no combate à Religião.
Como bem diz o egrégio Cardeal Decano, «na perseguição religiosa os governos atuais (comunistas) não fazem outra coisa senão inspirar-se nos formulários redigidos pela Assembleia Constituinte da Revolução Francesa, há cento e sessenta anos, na tentativa de separar o povo fiel do centro da unidade católica e de sufocar nas nações a vida cristã». Tomando como exemplo o caso da Rumania, mostra Sua Eminência que as medidas ali adotadas pela ditadura comunista apresentam um paralelismo absoluto com o que se passou na França revolucionária: «fechamento das escolas religiosas, supressão das obras católicas de beneficência, dissolução das comunidades, dispersão e condenação dos membros dos institutos religiosos», passando-se logo depois às disposições contra o Clero secular. Tal como os revolucionários de 1789 reduziram arbitrariamente as Arquidioceses e Dioceses francesas de 135 a 83, assim também os comunistas da Rumania suprimiram em um só mês seis circunscrições eclesiásticas católicas (três de rito oriental e três latinas) e depuseram sete Prelados.
O passo seguinte não podia deixar de ser, como o foi na França, a tentativa de estabelecer uma igreja «nacional», forçando o Clero católico a submeter-se à hierarquia cismática romena. Para este fim, todas as pressões, chantagens e ardis foram empregados. Infelizmente muitos Sacerdotes, iludidos com promessas ou aterrorizados com ameaças, assinaram documento que importava, em última análise, na adesão a dita «igreja nacional». Sobre os Bispos a pressão foi mais forte ainda, não tendo nenhum deles porém cedido, do que resultou a prisão dos seis Prelados católicos de rito oriental do país.
As considerações do Emmo. Cardeal Tisserant constituem preciosa confirmação das teses defendidas pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira na sua conhecida obra «Revolução e Contra-Revolução», que justamente aponta, como um de seus conceitos fundamentais, a unidade desse fenômeno chamado Revolução, do qual o protestantismo, a Revolução Francesa e o comunismo nada mais são, respectivamente, do que a faceta religiosa, política e econômica. Cada um desses estágios da Revolução continha em germe o seguinte e, a menos que uma salutar reação se processasse, o ciclo protestantismo-Revolução Francesa-comunismo era inevitável. Aliás, como bem aponta o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira («Revolução e Contra-Revolução», p. 20), alguns revolucionários, antecipando-se e levando às últimas consequências os seus falsos princípios, tentaram criar sociedades igualitárias e comunistas. Assim, enquanto São Francisco de Sales, no século XVII, já, prevenia o Duque da Sabóia contra as tendências republicanas dos protestantes, algumas seitas, como a dos anabatistas, chegavam praticamente ao comunismo. E da Revolução Francesa, como é sabido, nasceu o movimento comunista de Babeuf.
Essas diversas fases revolucionarias têm em comum o ódio a toda desigualdade legítima, que surgiu com o primeiro «non serviam» (Jer. 2, 20). È, pois, muito lógico que no combate à Igreja Católica adotem as mesmas táticas. Mas, as considerações do Emmo. Cardeal Eugenio Tisserant, demonstrando — com apoio nos fatos, e na alta autoridade do eminente Purpurado — a unidade da Revolução na aparente diversidade de suas duas etapas mais recentes, são tanto mais valiosas e oportunas quanto menos se cultiva hoje em dia a velha ciência da lógica.
1) «Sesta Lettera Pastorale di S. Em. Il Card. Eugenio Tisserant» — Edizione Liturgiche e Missionarie, Roma, 1949.
AMBIENTES, COSTUMES, CIVILIZAÇÕES
Arquitetura moderna e totalitarismo
Plinio Corrêa de Oliveira
O que são os edifícios acima? Uma escola, uma estação, um teatro, uma fábrica, um hospital? Tanto podem ser tudo isto, como nada disto. Na realidade o primeiro é o depósito de cenários da Ópera Alemã de Berlim, e o segundo é um pavilhão da secção de “Energia e Produção” do Festival da Inglaterra de 1951.
E o outro edifício, o que é? Um club? Uma capela? Onde se acha? Nos Alpes? Nos Pirineus? Na realidade, é uma residência de veraneio à margem de um lago... do Japão!
Qual a doutrina, a mentalidade, a tendência de alma que explica o estranho gosto da chamada arquitetura moderna por obliterar as diferenças entre os edifícios da mais diversa destinação e localização geográfica?
A arte moderna é má em si? Basta à arte ser moderna para ser má? A estas perguntas capciosas e mal formuladas, temos vontade de responder com outras não menos capciosas, nem menos mal formuladas: a arte moderna é boa em si? Basta à arte ser moderna para ser boa?
Dizemos que essas perguntas são tolas e mal formuladas, porque jogam com uma noção confusa: o que é "moderno"? É da resposta a esta pergunta que tantas vezes fogem os entusiastas incondicionais da modernidade.
Se moderno é sinônimo de hodierno, tudo quanto hoje se faz é moderno. O jornal "Catolicismo", sua secção de "Ambientes, Costumes, Civilizações" são então modernos, porque redigidos em pleno ano de 1964.
Mas este sentido desagradaria a muito leitor ufano de ser "moderno". Moderno, diriam eles, não é hodierno. No hodierno há coisas que são modernas, e outras anacrônicas, reacionárias, e por isto mesmo odiosas.
Para quem assim pense, tudo quanto hoje em dia não é moderno é ruim. E o moderno em si é bom.
De nosso lado, concluímos: se "moderno" não é igual a hodierno, mas representa o que de hodierno se faz sob o bafejo de certa doutrina, de certa mentalidade, de certas tendência s da alma, para julgar se o "moderno" é intrinsecamente bom, cumpre explicitar e julgar essa doutrina, essa mentalidade, essas tendências. O "moderno" valerá na medida em que estas últimas valerem.
Esse trabalho, fê-lo sob certos ângulos, de modo bastante lúcido, o romancista Norman Mailer em artigo de grande repercussão, publicando na revista "Esquire" e condensado pelo magazine de arquitetura "Forum", ambos norte-americanos.
Traduzimos os trechos essenciais da condensação desse artigo, acrescentando-lhe subtítulos.
· "O totalitarismo tem obcecado o século XX... Ele está proliferando nesta nova arquitetura que se ergue como um pesadelo sobre a paisagem norte-americana, mas que não pode ser chamada de arquitetura moderna, simplesmente porque não é arquitetura, mas seu oposto.
· Origem da arquitetura moderna. A arquitetura moderna surgiu em conseqüência do desejo de utilizar materiais de construção do século XX – aço, vidro, concreto armado – e algumas técnicas, como a das estruturas em balanço, a fim de aumentar a beleza escultural dos edifícios, ao mesmo tempo que se procurava aumentar-lhes a funcionalidade.
· Totalitarismo – o mito da simplicidade – aniquilamento. Esta foi a primeira arte a ser empolgada pelos totalitários, que distorceram a procura da simplicidade na arquitetura moderna a ponto de convertê-la em monotonia. O aniquilamento é essencial ao totalitarismo. Ele aniquila a personalidade, a variedade, a diversidade de sentimentos ( ... ); ele cega a visão, mata os instintos e oblitera o passado.
· Irracionalidade. Por ser também irracional, o totalitarismo ergue edifícios com telhados achatados e grandes paredes de vidro em climas árticos, e depois sufoca os moradores com sistemas de superaquecimento, enquanto os telhados achatados afundam sob o peso da neve.
· Gelatina totalitário-confusionista. O totalitarismo é um câncer no corpo da História, pois chega até mesmo a obliterar as distinções. Faz as fábricas parecerem escolas ou hospitais para débeis mentais - ao passo que as fábricas tinham, antes, a beleza específica consistente em revelar seu tamanho, e às vezes sua função brutal, pois a beleza não pode existir sem revelação da verdade, nem o homem, talvez, sem a beleza. Ao mesmo tempo, as escolas são construídas como se fossem fábricas. Isso deprime o povo norte-americano, porque ele percebe, embora inconscientemente, que está instalado numa verdadeira gelatina de ambiente totalitário, que leva ao aniquilamento de seus esforços individuais.
· Incompatibilidade com a tradição. Essa nova arquitetura, essa arquitetura totalitária, destrói o passado. Ela não deixa vestígios das formas que existiram nos séculos anteriores a nós; nada de sua altivez, de seus privilégios, de suas aspirações, de sua subtileza, de suas criações, e nada, até, de suas banalidade. Estão-nos deixando com uma compreensão cada vez menor da vida dos homens que nos precederam. Deste modo, vamos ficando menos capazes de julgar os valores completamente psicóticos do presente: crimes, abrigos anti-atômicos, ameaças ( ... ).
As pessoas que admiram a nova arquitetura acham-lhe valor porque ela oblitera o passado. Essa gente é suficientemente totalitária para desejar fugir das conseqüências do passado. Isso naturalmente não quer dizer que elas próprias se vejam como totalitárias. A paixão totalitária é inconsciente. Qual o liberal que, ao lutar por uma maior expansão habitacional e por maior cubagem de ar nas salas de aula das escolas primárias, não se vê como um benemérito? Poderá ele compreender que o prazer meio viscoso que sente ao ver pronta a nova escola – esse horror de arquitetura – é reflexo de um prazer baixo e subconsciente, é, enfim, a alegria totalitária de ver que agora estão sendo extirpados os florões góticos e a opressão românica, que entraram em sua mente já nos bancos escolares da infância? ( ... ).
· O totalitarismo igualitário é imbecilizante. O ímpeto totalitário não apenas faz desaparecer as distinções, mas procura um estilo nos edifícios, nas roupas, e na decoração das máquinas, utensílios e objetos de uso diário, que irá diminuir o senso da função de cada um, bem como irá minguar nas pessoas o senso da realidade, reduzindo às mais grosseiras formulações de jargão emoções como, por exemplo, o espanto, o medo, a beleza, a piedade, o terror, a calma, o horror ou a harmonia.
· Necessidade de uma reação. ( ... ) Sim, as pessoas que admiram a nova arquitetura são inconscientemente totalitárias. Elas querem projetar nos ambientes e paisagens a mesma solidão e monotonia que a vida colocou dentro delas. Uma vasta solidão e uma colossal monotonia, uma náusea sem espasmo, têm sido parte dos proventos da vida norte-americana nos últimos quinze anos – e continuaremos a sofrer nos próximos quinze se esta vida morta continuar a se arrastar nos edifícios que nossos dirigentes totalitários tratarão de construir para nós. A paisagem norte-americana será roubada por mais meio século, se não se criar uma Resistência. Na verdade, ela poderá ser roubada para sempre se não formos suficientemente corajosos para enfrentar a desanimadora contemplação do que já perdemos, e do que ainda temos a perder".
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Feita a essa extensa e brilhante análise uma ou outra reserva que ao leitor certamente ocorreu, vê-se nas palavras do Sr. Norman Mailer uma descrição e refutação eloqüente da Revolução em tantas manifestações de arte de nossos dias.