O direito de propriedade e a livre iniciativa no projeto de emenda constitucional no 5/64 e no projeto de Estatuto da Terra
A presente análise do projeto de emenda constitucional n° 5/64 e do correlato projeto de Estatuto da Terra exigiu de seus autores, como podemos informar, um esforço incomum, especialmente no que diz respeito a este último.
Pelas dificuldades extraordinárias que o estudo do projeto de Estatuto da Terra oferece, é que provavelmente se explica o fato de que não se publicou — ao que saibamos — nenhum exame exaustivo das duas proposituras agrárias do Governo Castello Branco, do duplo ponto, de vista da propriedade privada e da iniciativa particular.
"Catolicismo" se alegra em apresentar a seus leitores um documento que parece ser, pois, único no gênero. Alia ele à profundidade e rigor lógico da análise uma clareza de exposição e uma elevação de linguagem bem características dos vários pronunciamentos emanados dos quatro ilustres autores de "Reforma Agrária — Questão de Consciência" ao longo da controvérsia agro-reformista.
Não é ocioso insistir sobre as dificuldades que o estudo do Estatuto da Terra oferece. Pois elas explicam também, não só que apenas no dia 16 de novembro — isto é, quando já ia em meio o prazo de 30 dias concedido ao Legislativo para apreciar o projeto — tenha podido ser distribuído aos membros do Congresso Nacional (pela Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família, e Propriedade) o luminoso trabalho que aqui estampamos, como também a ignorância em que ficou o povo brasileiro relativamente ao projeto. Ignorância esta que por sua vez — e aqui chegamos a uma consideração que em seu gênero tem importância suprema, como mostramos mais detidamente em outro local desta edição — é a verdadeira causa do fato de não haver o Estatuto da Terra encontrado da parte do público toda a oposição que, se conhecido, teria despertado inevitavelmente.
Importa que os leitores de "Catolicismo" conheçam o presente parecer dos autores de "Reforma Agrária — Questão de Consciência", que é o lance mais recente de uma epopeia pela observância de dois mandamentos da Lei de Deus, e que exprime também o pensamento da pujante e generalizada corrente de opinião criada pelo livro. Pôde, portanto, este importante matiz da opinião nacional fazer-se sentir no Legislativo Federal apesar de toda a estreiteza do tempo.
A emenda constitucional foi aprovada e, ao sair à lume esta edição, é possível que o mesmo tenha acontecido com o Estatuto da Terra. Restará então apresentarmos um estudo comparativo sobre o que tiver sido transformado em lei e o pronunciamento que hoje estampamos. "Catolicismo" promete a seus leitores que o fará.
• À última hora nos chega a notícia de haver sido aprovada a lei do Estatuto da Terra, a qual corresponde, na enorme maioria de seus dispositivos, ao projeto aqui comentado.
1 — Introdução: o direito de propriedade e a livre iniciativa, direitos da pessoa humana e princípios fundamentais da civilização cristã
Os autores do presente estudo desejam esclarecer preliminarmente o alcance do duplo critério sob o qual consideram os projetos de Estatuto da Terra e da correspondente emenda constitucional, ora em curso no Congresso Nacional.
Não é raro ouvirem-se, sobre a matéria, considerações segundo as quais o direito de propriedade constituiria um privilégio pessoal, oposto por natureza ao bem comum. E a livre iniciativa seria, na mesma ordem de ideias, uma forma de atividade voltada fundamentalmente para o bem do indivíduo, mas esquecida por isso mesmo dos interesses da coletividade.
O defeito de ambas essas maneiras de ver está em que consideram o indivíduo, com suas posses e suas liberdades, como um perigo para a coletividade. Importa isso em esquecer que é, em última análise, de indivíduos que se constitui a sociedade. Tudo quanto engrandece o indivíduo engrandece a sociedade. E reciprocamente.
Essas considerações bastam para mostrar que velar pela propriedade privada e pela livre iniciativa implica em velar por elementos fundamentais do bem comum.
*
Mas, dir-se-á, quando ocorre conflito entre os direitos do indivíduo e da sociedade, é cabível velar por aqueles e não por estes?
Nos casos em que tal conflito ocorre, os direitos individuais são chamados a cumprir sua função social. Pois todo direito individual — e não apenas o de propriedade tem uma função social a cumprir.
Mas ainda aqui há uma ponderação a fazer. É que a verdadeira solução em casos de conflito não consiste em imolar as pessoas em holocausto à sociedade, ou permitir que esta se dissolva para não sacrificar as pessoas.
Quem fala em função fala em órgão. A função social de um direito individual está para este como qualquer função está para o respectivo órgão. Nestas condições, o ponto de equilíbrio consiste em que o órgão execute plenamente sua função, mas esta não mutile nem extenue o órgão.
É o que objetivamos com os presentes reparos e sugestões aos projetos de emenda constitucional e de Estatuto da Terra.
*
Digamos algo agora a respeito da livre iniciativa. Sendo o homem um ente dotado de inteligência e vontade, está em sua natureza prover por si mesmo à própria subsistência. Este é o fundamento do direito do homem à livre iniciativa. Quando se lhe nega esse direito, ele é um escravo.
Esse direito, como todos os outros, tem suas legítimas limitações:
1 — Ele não pode ser exercido contrariamente aos direitos de terceiros ou da sociedade;
2 — Nenhum homem é capaz de prover só por si a todas as suas necessidades. No que ele não se baste, deve auxiliá-lo subsidiariamente a família. No que esta não baste a si própria, deve auxiliá-la o município. E assim por diante se chega, de ação subsidiária em ação subsidiária, até o Estado (ou União, na atual estrutura política do Brasil). É o que se chama o princípio de subsidiariedade, esplendidamente desenvolvido na Encíclica "Mater et Magistra".
A ação do indivíduo só deve ser coarctada quando comprovada e gravemente nociva ao bem comum. A ação dos grupos e órgãos subsidiários, de si, não é feita para coarctar mas para completar a ação individual.
Está na índole desta doutrina admitir que habitualmente os homens sabem exercer com suficiente capacidade as profissões a que se dedicam, e que "grosso modo", ressalvadas as situações excepcionais, a serem comprovadas em cada caso, o exercício reto dessas miríades de atividades individuais realiza o bem comum.
Infelizmente, a esses conceitos, que nada têm de comum com o liberalismo desenfreado da Revolução Francesa e das escolas econômicas do século XIX, são infensos não só os liberais, raros em nossos dias, como as pessoas de formação consciente ou subconscientemente socialista.
Tendem estas cada vez mais a ver no progressivo dirigismo estatal a normalidade da vida. O homem, elas o veem, sempre mais, agindo quando a lei e o Estado mandam agir e parando quando eles mandam parar. Esta tendência aflora em vários dispositivos do Estatuto da Terra, que adiante analisaremos.
Ainda aí há, para a consciência cristã, um justo equilíbrio a preservar entre livre iniciativa e Poder Público.
*
Velando por que a propriedade privada e a livre iniciativa não sejam mutiladas pela emenda constitucional e pelo Estatuto da Terra, cumprimos um dever de nossa consciência cristã.
A livre iniciativa e a propriedade privada são princípios basilares da civilização cristã. Encontram elas fundamento na própria lei de Deus.
Se violentar a consciência da menor e mais obscura das pessoas traz para quem sofre e para quem pratica a violência consequências imprevisíveis e das piores, o que se dirá dos efeitos que podem advir da imposição de uma lei — antes diríamos de todo um código rural — que violente a consciência cristã de toda uma nação, da mais populosa nação católica da terra?
O Poder Público se verá obrigado a desenvolver uma ação cada vez mais rígida para, ao longo dos anos, ir sujeitando a Nação ao molde que sua consciência repele. Com isto se deteriorará progressivamente nossa vida pública, nossas instituições tomarão uma fisionomia sombria e draconiana, a que é tão avesso o feitio afável e até carinhoso do brasileiro, e com tudo isto só poderá lucrar a demagogia que a imensa maioria de nosso povo repudiou formalmente através do glorioso movimento de 31 de março.
II — O direito de propriedade no projeto de emenda constitucional n° 5/64 e no projeto de Estatuto da Terra
Segundo a doutrina católica, o direito de propriedade, em seus vários aspectos — isto é, a propriedade dos bens, e dos instrumentos e fatores necessários à sua produção — não resulta de uma concessão do Estado, mas da ordem natural das coisas, posta por Deus.
As seguintes considerações explicam a gênese e a legitimidade do direito de propriedade:
"Todo ser vivo é dotado por Deus de um conjunto de necessidades, de órgãos e de aptidões que estão postos entre si numa íntima e natural correlação. Isto é, os órgãos e as aptidões de cada ser se destinam diretamente a atender às necessidades dele.
"O homem se distingue dos outros seres visíveis por ter uma alma espiritual dotada de inteligência e vontade. Pelo princípio de correlação que acabamos de enunciar, a inteligência serve ao homem para conhecer suas necessidades e saber como satisfazê-las. E a vontade lhe serve para querer e fazer o necessário para si. Está, pois, na natureza humana conhecer e escolher o que lhe convém.
"Ora, estas faculdades não seriam úteis ao homem se ele não pudesse estabelecer um nexo entre si e aquilo de que precisa. De que adiantaria, por exemplo, ao habitante do litoral saber que no mar há peixes, como estes são pescados, ter vontade firme de enfrentar as ondas e efetuar a pesca, se não lhe fosse lícito formar um nexo com o peixe pescado, de forma a poder trazê-lo à terra e dispor dele, com exclusão de qualquer outra pessoa, para sua nutrição? Esse nexo se chama, no caso, apropriação. O pescador se torna proprietário do peixe. Este direito de propriedade resulta para ele — para qualquer pessoa, pois — da sua natureza de ser inteligente e livre. E Deus criou os seres úteis aos homens, para que estes se servissem deles habitualmente por apropriação.
"Se é lícito ao homem apropriar-se desse modo dos bens que existem, sem dono, na natureza, e consumi-los, pelo mesmo motivo lhe é permitido apropriar-se destes bens, já não para os consumir, mas para fazer deles instrumento de trabalho. Assim aquele que se apropria de um peixe, não para o comer, mas para usá-lo como isca. Esta verdade é ainda mais fácil de perceber quando alguém toma um objeto inapropriado e sem utilidade, um sílex, por exemplo, e, afiando-o, lhe confere uma utilidade que não tinha. Pois esta utilidade nova do sílex é produto do trabalho, e todo homem, por ser naturalmente dono de si, é dono de seu trabalho e do fruto que este produz.
"Mas o homem vê que suas necessidades se renovam. Sua natureza, capaz de apreender e recear o perigo de um suprimento instável, desejosa por si mesma de estabilidade, pede que ele disponha de meios para se garantir contra as incertezas do futuro. É pois lícito que ele, além de ser dono de bens e de meios de produção, acumule pela poupança o produto de seu trabalho, prevenindo assim o futuro. E, sendo o caso, se torne também dono da fonte de produção. A apropriação de reservas móveis e de bens imóveis assim se justifica inteiramente" ("Reforma Agrária Questão de Consciência" — D. Geraldo de Proença Sigaud, Arcebispo de Diamantina, D. Antonio de Castro Mayer, Bispo de Campos, Plinio Corrêa de Oliveira e Luiz Mendonça de Freitas — 4ª edição, p. 33).
Assim, não tem o Estado, em princípio, o direito de cercear a propriedade privada a não ser nos casos em que, comprovadamente, contrarie ela necessidades graves do bem comum, e não haja outros meios de atender a essas necessidades.
Em princípio a emenda constitucional e o Estatuto da Terra chocam-se com essas considerações, pois: a) declaram desapropriáveis os imóveis rurais não usados, ou inadequadamente usados; b) ressalvando, na aparência, da ação desapropriatória do Estado os imóveis rurais adequadamente usados, na realidade sujeitam a ela grandíssimo número destes. Esse último ponto será objeto de ulterior desenvolvimento.
1 — A doutrina católica e a desapropriação das terras não cultivadas, ou inadequadamente cultivadas, nos projetos
Cuidemos agora do problema da legitimidade da desapropriação dos imóveis rurais não usados ou mal usados.
A esse respeito, afirmemos antes de tudo que, segundo a doutrina católica, o direito de usar ou não usar um imóvel rural é inerente à propriedade. Ensinou-o o Papa Pio XI na Encíclica "Quadragesimo Anno” “... a fim de pôr termo às controvérsias que acerca do domínio e deveres a ele inerentes começam a agitar-se, note-se em primeiro lugar o fundamento assente por Leão XIII, de que o direito de propriedade é distinto do seu uso (Enc. Rerum Novarum, § 35). Com efeito, a chamada justiça comutativa obriga a conservar inviolável a divisão dos bens e a não invadir o direito alheio, excedendo os limites do próprio domínio; mas que os proprietários não usem do que é seu, senão honestamente, é da alçada não da justiça, mas de outras virtudes, cujo cumprimento "não pode urgir-se por vias jurídicas" (cf. Enc. Rerum Novarum)". E mais adiante: "É alheio à verdade dizer que se extingue ou se perde o direito de propriedade com o não uso ou abuso dele".
O direito de não usar inclui "a fortiori" o de usar de modo deficiente ou inadequado.
Esse direito só pode sofrer restrição caso o uso insuficiente ou o não uso da terra traga à sociedade um dano grave, que não possa ser remediado de outro modo.
Mas esse dano grave precisa ser comprovado. Não se pode restringir ou aluir com fundamento em um fato incerto um direito certo.
Baseados nesses princípios, dizemos que a emenda constitucional e o Estatuto da Terra ferem o direito de propriedade enquanto expõem ao risco de desapropriação os imóveis rurais não usados ou insuficientemente usados, e admitem como notório que nossa situação agrária apresenta problemas graves que tais desapropriações, e só elas, podem resolver. Ora, nem isto é notório, nem as mensagens e justificativas de ambos os projetos apresentam nesse sentido a menor prova. Como mostramos no livro "Reforma Agrária - Questão de Consciência", os dados estatísticos de que se pode dispor orientam o espírito em sentido oposto, e esses dados não foram, até agora, objeto de qualquer refutação convincente.
Por outro lado, o Brasil é um país de Constituição escrita e rígida, a qual só pode ser reformada em condições muito especiais, e mais difíceis que as que se exigem para modificar a legislação ordinária.
Está na índole de nossa Constituição, como das congêneres, que os direitos fundamentais da pessoa humana fiquem inscritos nela, a salvo do vai-vem das leis ordinárias.
Ora, aprovado o projeto de emenda constitucional, o direito de propriedade dos imóveis não usados ou usados insuficientemente ficará exposto a todos os riscos. Como provaremos no item seguinte, algo de análogo se poderá dizer da propriedade das terras convenientemente aproveitadas. É, pois, todo o direito de propriedade relativo a imóveis rurais que ficará desprotegido.
E isto, repetimos, sem que se tenha provado a necessidade da desapropriação dos imóveis rurais não usados e insuficientemente usados (nem, ainda menos, dos convenientemente usados) na realidade brasileira.
*
Para compreender os dispositivos concernentes à desapropriação dos imóveis não explorados ou mal explorados, cumpre antes de tudo ter em vista os seguintes conceitos adotados pelo Estatuto da Terra:
• «Art. 4.. — Para os efeitos desta lei são estabelecidas as seguintes definições de imóvel rural, suas várias modalidades, bem como as de parceleiro, Cooperativa Integral de Reforma Agrária, e Colonização:
I — «Imóvel Rural», o prédio rústico, de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destina à exploração extrativa, agrícola, pecuária ou agroindustrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através da iniciativa privada;
II — «Propriedade Familiar», o imóvel rural que atenda simultaneamente as seguintes condições:
a) seja direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e sua família, ou com eventual ajuda de terceiro;
b) absorva toda a forma de trabalho do conjunto familiar;
c) garanta-lhes a subsistência, progresso social e econômico;
III — «Minifúndio», o imóvel rural que, dentro das condições regionais, ainda que suficiente para o sustento de uma família, não lhe possibilite progresso social e econômico conforme os termos do inciso II deste artigo;
IV — «Latifúndio», o imóvel rural que:
a) exceda a dimensão máxima fixada na forma do art. 48, § 1o, alínea «b», desta lei, tendo em vista as condições e sistemas agrícolas regionais;
b) ainda que não excedendo o limite referido na alínea anterior, mas de área igual ou superior à dimensão do módulo de propriedade rural, seja mantido inexplorado em relação às possibilidades físicas, econômicas e sociais do meio, visando a fins especulativos, ou seja explorado com formas manifestamente deficientes ou inadequadas, de modo a vedar-lhe a inclusão no conceito a que se refere o inciso seguinte;
V — «Empresa Rural», a pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que explora racionalmente imóvel rural, o qual, simultaneamente:
a) apresente rendimentos considerados satisfatórios e explore uma altura_imgagem mínima de área agricultável, a ser fixado pelo IBRA, de acordo com as condições ecológicas e econômicas da região;
b) adote práticas conservacionistas;
c) ofereça aos que nele trabalham, condições que garantam nível de vida não inferior ao assegurado pela remuneração que constitui o salário mínimo regional;
(…).
II único — (...).
• Art. 5° — A área fixada nos termos do art. 4°, inciso II, alínea «d», é o módulo da propriedade rural para todos os efeitos desta lei.
1. — Em cada zona, com características econômicas e ecológicas homogêneas, serão fixados módulos, na forma do art. 48, alínea «a», separadamente para tipos de exploração que nela possam ocorrer: hortigranjeira; agrícola intensiva; agrícola extensiva; pecuária intensiva; pecuária extensiva; extrativa florestal e outras.
§ 2o — Nos casos de exploração mista, os módulos serão fixados pela média ponderada das partes do imóvel destinadas a cada um dos tipos de exploração considerados no § 1o».
A desapropriação dos latifúndios será feita "especialmente nas áreas prioritárias" (Estatuto da Terra, art. 23 — item I) e portanto também fora delas. Note-se que, segundo a estranha terminologia do projeto de Estatuto, da Terra, latifúndio não é só um imóvel de dimensões superiores às permitidas pela lei, mas qualquer propriedade de área igual ou superior ao "módulo", desde que não seja usada, ou seja explorada "com formas manifestamente deficientes ou inadequadas" (art. — item IV — letra "b"). Uma propriedade de dimensão familiar pode ser considerada latifúndio. E todo latifúndio cuja área seja superior a três vezes o "módulo" é desapropriável (art. 22 — § 3° — letra "a"). Fica, pois, plenamente caracterizado o papel do não uso ou do uso inadequado da propriedade, como elemento de desapropriação.
O art. 23, item VII, do Estatuto da Terra também é inteiramente concludente neste sentido:
• «Art. 23 — O Poder Público, para efeito de, realizar desapropriações, nos termos da presente lei e da sua regulamentação, observados os planos regionais, deverá ter em vista a seguinte prioridade:
(...);
VII — as terras cujo uso atual não seja, comprovadamente, através de estudos procedidos pelo IBRA, o adequado à sua vocação de uso econômico».
Há uma circunstância que agrava a colisão entre esse sentido expropriatório dos projetos de emenda constitucional e de Estatuto da terra, e a doutrina católica.
O art. 45 prevê que em certas áreas, nas quais se verificam crises ou tensões, se deve proceder à Reforma Agrária, "com progressiva eliminação dos minifúndios e dos latifúndios". Assim, nessas áreas o remédio normal para a tensão ou crise é pelo menos em parte a desapropriação.
Esse modo de proceder não parece tomar em consideração que a região crítica constitui parte integrante de um País em cujo imenso território cabem uma área apropriada considerável e uma imensa reserva de terras devolutas. O art. 45 procede como se cada área crítica fosse um pequeno país independente.
Ora, a justiça manda que só se recorra à desapropriação no caso de os problemas da área crítica não terem nenhuma possibilidade de serem resolvidos pelo Poder Público através do povoamento de outras áreas já ocupadas mas suscetíveis de melhor aproveitamento, ou, conforme o caso, de terras devolutas.
Segundo esse princípio, caberia quanto às zonas críticas a seguinte ordem de prioridade: a) aproveitamento das terras devolutas, no interesse da expansão interna do País; b) não sendo isso possível por motivo de excesso de despesas ou outras razões, deve o Poder Público canalizar o superávit de população para as áreas não sobrecarregadas do ponto de vista demográfico; c) só em último caso a desapropriação.
Mas, perguntar-se-á, pelo menos as áreas devidamente cultivadas e de tamanho permitido pelo Estatuto da Terra escapam à ação desapropriatória do Estado? É o que veremos no item seguinte.
2 — Também as terras bem cultivadas estão expostas ao arbítrio do IBRA em matéria expropriatória
Quem ler sumariamente os 133 artigos do projeto de Estatuto da Terra poderá ficar com impressão de que ele confere ao Poder Público meios efetivos para promover a expropriação e fracionamento de imóveis rurais, mas que só ficam sujeitos a essa ação expropriatória os imóveis inexplorados, ou mal explorados, cujos proprietários, indolentes, incompetentes, ou ávidos de ganhar na mera especulação, não proporcionem existência condigna ao trabalhador rural e sua família, nem produzam suficientemente para contribuir para o progresso rural do País.
Assim, pense-se o que se pensar da desapropriação das terras acima referidas, pelo menos afigurar-se-ia certo que os proprietários diligentes e bem sucedidos estarão fora do perigo de uma expropriação.
O art. 4°, com suas várias definições, e especialmente as de "minifúndio" (item III), "latifúndio" (item IV) e "empresa rural" (item V), parece deixar claro que esta última nenhuma sanção tem que temer. E isto tanto mais quanto o art. 22, § 3°, letra "b", declara taxativamente que as "empresas rurais" não estão sujeitas a desapropriação.
É compreensível que esta restrição à ação expropriatória do Poder Público seja reputada como preciosa pelos que, por motivos ideológicos, ou na defesa de seus direitos de proprietários, têm o desejo de evitar que, sob a alegação especiosa de combate ao latifúndio e ao minifúndio, o Estatuto da Terra propicie de fato a fragmentação de todos os imóveis rurais para impor ao Brasil uma estrutura agrária constituída exclusivamente de propriedades de dimensão familiar.
Realmente, abolida a garantia constitucional contra os abusos da ação expropriatória do Estado, mercê da emenda constitucional proposta pelo Executivo, contra esses abusos a única defesa que resta são os mencionados dispositivos do Estatuto da Terra.
Isto posto, legítimo é que perguntemos de que alcance concreto serão essas garantias, uma vez que seja aprovado o Estatuto da Terra.
*
Ponderemos inicialmente que o latifúndio (art. 4° — item IV) ou é tal em virtude de seu tamanho, ou em virtude de ser inexplorado ou explorado de modo deficiente ou inadequado.
Ora, quanto ao tamanho, dir-se-ia talvez, feita uma primeira leitura do art. 4°, inciso IV, letra "a", combinado com o art. 48, § 1°, letra "b", que ele é bem definido: será latifúndio toda propriedade que exceda a seiscentas vezes o módulo médio da respectiva zona. Essa impressão, porém, se desfaz com uma análise mais atenta dos aludidos dispositivos. Estes estabelecem "os limites máximos", acima dos quais toda e qualquer propriedade é latifúndio. Mas deixam aberta a possibilidade de ser marcado um nível qualquer, inferior a este, para caracterizar o latifúndio. Qual a medida mínima deste nível? O Estatuto da Terra não o diz. Fica ele, pois, ao critério dos regulamentos que o Executivo pode fazer e alterar a qualquer momento, e que forçosamente deverão ter adaptações às diversas zonas e culturas, adaptações essas também deixadas ao arbítrio do Executivo.
O latifúndio ainda pode ser tal em razão de outro critério (art. 4° — item IV — letra "b"). É o de estar inexplorado, ou "explorado com formas comprovadamente deficientes ou inadequadas".
Ora, em que casos uma forma de exploração é "deficiente"? Em que casos é simplesmente "inadequada"? Quem decidir dessa questão — e é o Poder Público — terá a faculdade de classificar ou desclassificar como latifúndio ou empresa rural um imóvel determinado. E poderá fazê-lo, dado o silêncio do Estatuto da Terra, por meio, também, de regulamentos.
Assim, apesar da aparente nitidez das classificações contidas no art. 4°, fica facultado ao Poder Público voltar a sua ação expropriatória contra um número indefinido, e certamente muito grande, de propriedades.
Análoga afirmação se pode fazer, como se verá pouco adiante, no que se relaciona com a qualificação das zonas prioritárias pelo IBRA, e correspondentemente nas respectivas esferas, com a atuação das IBRAR.
Também se poderiam fazer essas observações, "mutatis mutandis", a propósito das possibilidades de pressão tributária contra as propriedades grandes e médias.
*
Antes de entrar nestes pormenores, cumpre acentuar que alcance prático eles têm.
Muitos são, no Brasil e fora dele, os estudiosos que, levados por uma visualização romântica da pequena propriedade familiar, nela vêem a solução perfeita e quiçá única de todos os problemas rurais. Dedicam-se eles a inquéritos, análises e estatísticas cujos resultados se lhes afiguram sempre comprobatórios da tese bem amada. Se pessoas com essa tendência — enfática e impetuosa como soem ser as tendências utópicas — forem nomeadas por algum Presidente da República para constituir o órgão supremo do IBRA, nenhum recurso há no Estatuto da Terra para garantir contra elas a sobrevivência da propriedade grande e média. A isto ficará reduzida a garantia do direito de propriedade no Brasil!
Fatos bem recentes mostram quanto é possível à demagogia iludir a opinião pública e através do exercício regular do sufrágio universal assenhorear-se do poder. Se o Estatuto da Terra estivesse vigente sob o governo de nossos dois últimos Presidentes, nada, absolutamente nada os teria impedido de exercer uma ação tremendamente niveladora na estrutura rural brasileira.
Para isto lhes teria sido de especial socorro o art. 26, que, considerando irreversíveis as desapropriações feitas pelo IBRA, expõe os proprietários a uma ação dispendiosa, longa, resolvível tão somente em perdas e danos calculados em nossa moeda eventualmente depreciada.
*
Vejamos agora, através da análise de diversos artigos, que oportunidades o Estatuto da Terra oferece para que pessoas dotadas da aludida mentalidade deem livre curso, caso colocadas à testa do IBRA ou das IBRAR, às suas tendências expropriatórias:
• «Art. 45 — O IBRA promoverá a realização de estudos para o zoneamento do País em regiões homogêneas do ponto de vista sócio-econômico e de características da estrutura agrária, visando a definir:
I — As regiões críticas que estão exigindo uma Reforma Agrária com progressiva eliminação dos minifúndios e dos latifúndios;
II — As regiões em estágio mais avançado de desenvolvimento social e econômico e nas quais não ocorram tensões nas estruturas demográfica e agrária;
(...)».
Que características deve ter uma zona para ser considerada crítica? Em outros termos, que é definidamente uma crise? Qualquer que seja o grau de intensidade de uma crise, constituirá ela razão suficiente para determinar uma reforma de estrutura? Na hipótese negativa, a partir de que grau passa a crise a ser razão suficiente para o dito fim? Que características se exigirão para definir esse grau? Quem determina quando a crise deve ser resolvida pela "progressiva eliminação dos minifúndios e latifúndios"? Por exemplo, se há vários meios, entre os quais também este, para debelar a crise, quando é o caso de usar este ou os outros meios?
O inciso II se refere às regiões onde não cabe a Reforma Agrária. Como esta cabe nas "regiões críticas" (I) e não cabe nas regiões "nas quais não ocorram tensões" (II), vê-se que, para o Estatuto da Terra, crise equivale a tensão, pois para ele existe crise onde há tensão, e reciprocamente. De si a palavra "crise" é mais enérgica do que a palavra "tensão”: uma pequena crise sempre importa em uma apreciável tensão. Uma pequena tensão não importa, de si, em crise.
A terminologia do Estatuto da Terra, pela inesperada sinonímia entre crise e tensão, amplia muito o conceito de crise, e com isto torna ainda maior o número de casos em que a Reforma Agrária pode ser aplicada.
Para se dar conta disto, basta repetir a propósito do conceito de tensão as perguntas acima feitas relativamente ao conceito de crise.
• «§ 1.0 (do art. 45) — Para a elaboração do zoneamento e caracterização das áreas prioritárias serão levados em conta, essencialmente, os seguintes elementos:
a) a posição geográfica das áreas, em relação aos centros econômicos de várias ordens, existentes no País;
b) o grau de intensidade de ocorrências de áreas em imóveis rurais acima de 1000 hectares e abaixo de 50 hectares;
c) o número médio de hectares por pessoa ocupada;
d) as populações rurais, seu incremento anual e a densidade específica da população agrícola;
e) a relação entre o número de proprietários e o número de rendeiros, parceiros e assalariados em cada área».
O advérbio "essencialmente", na cabeça deste parágrafo, se presta a confusão. Significa apenas "necessàriamente"? Ou também "principalmente"? Em que medida esses fatores se deverão conjugar com os outros, não "essenciais", para os quais o Estatuto da Terra deixa a porta aberta? Quais são esses fatores não "essenciais", variáveis provavelmente, pelo menos em grande número de casos, de zona para zona?
Em que medida se combinarão entre si os elementos definidos nas letras "a" e "e"? Segundo que critérios?
E se considerarmos cada um desses elementos isoladamente, como determinar, quanto a cada um deles, em que consiste uma situação de "tensão"?
Uma observação que se pode relacionar com vários dos fatores analisados a seguir é que eles são considerados de um modo apenas estático, abstração feita das formas de exploração que existam nas áreas respectivas ou a que estas se prestem. Ora, tais fatores só exprimirão a realidade concreta se se tiver em conta essa forma de exploração. Mas, a ser ela tida em conta, tal é a multiplicidade de aspectos a ponderar quanto a cada elemento, que nenhuma lei e nenhum regulamento poderá abranger todos esses aspectos. E isto porá em mãos do IBRA uma latitude de apreciação às vezes indefinida.
Consideremos agora em si mesmos alguns destes elementos:
(continua)