Figuras do relicário dos Reis Magos, na Catedral de Colônia, século XIII (montagem do Departamento de Arte de Catolicismo)
A tradição católica vê na adoração dos Reis Magos, além da manifestação de Jesus Cristo ao mundo, o reconhecimento de sua soberania pelo poder civil.
Os deveres do Estado para com Deus incluem o de estar unido à Igreja, Esposa de Cristo, e o de conformar suas leis com o Decálogo.
Na Epifania de 1965 temos a oferecer ao Menino Jesus um duplo ato de reparação: porque faz precisamente 75 anos que o Estado brasileiro se separou da Igreja, e porque vem de ser promulgada em nosso País uma lei agrária oposta em vários pontos à Moral católica.
O manifesto da Tradição, Família c Propriedade que hoje publicamos (p. 3) já constitui de si um valoroso ato de reparação, quer pela riqueza da doutrina, quer pela acuidade das observações e pela elevação da linguagem.
75 ANOS DE SEPARAÇÃO DA IGREJA E DO ESTADO
J. de Azeredo Santos
“Vosso é, Senhor, o império, e Vós estais acima de todos os Príncipes. Vossas são as riquezas, e vossa é a gloria; sois o dominador de tudo, na vossa mão estão a fortaleza e o poder; na vossa mão, a grandeza e o império de todas as coisas” (1 Par. 29, 11-12). Esta nota da plena soberania de Deus sobre todo o universo criado pervaga toda a liturgia da festa da Epifania. O Divino Salvador é o Rei dos Reis e o Senhor dos Senhores. DEle disse o Profeta Isaias: "As nações caminharão ao fulgor de vossa luz e os Reis ao esplendor de vossa aurora» (Is. 60, 3 — Epístola da Missa da Epifania).
A tradição cristã vê na adoração dos Magos não somente a manifestação do Messias ao mundo gentio, a toda a humanidade, mas também o reconhecimento de sua divina soberania pelo poder civil. Com efeito, esses Magos vindos do Oriente para adorar o Deus Menino eram os chefes ou reis de seus respectivos povos. Segundo D. Duarte Leopoldo e Silva em sua "Concordância dos Santos Evangelhos", a tradição, os quadros antigos e os mais célebres Padres da Igreja, como Tertuliano, São Cipriano, Santo Hilário, São Basílio e outros, lhes atribuem insígnias reais. De modo que já no alvorecer da era cristã vemos o belo espetáculo de representantes do poder civil que se põem reverentes de joelhos diante do verdadeiro Deus, a Lhe prestar o culto de latria. E o próprio Herodes, ocultando embora sob suas palavras o tenebroso desígnio de matar o Filho de Deus, compreende que para saber onde Ele Se encontra deve exprimir o desejo de O adorar (cf. Mat. 2, 8).
Isto se acha de pleno acordo com a lei natural, pois nada mais justo do que a adoração prestada pela humanidade, tomada coletivamente, ao seu Criador. Com a inserção do direito divino no direito público dos países cristãos, após a plena aceitação do Evangelho não somente pelos indivíduos, mas pelos Estados, vemos que a primeira obrigação do soberano passa a ser a de se professar cristão e de governar cristãmente.
Esta verdade vem sendo sustentada pelos Papas mesmo após os ataques violentos que contra ela tem desferido a Revolução. "Do mesmo modo, diz Leão XIII, que não é permitido a ninguém negligenciar seus deveres para com Deus, dos quais o primeiro é o de abraçar pelo coração e pelas obras a religião, e não a que cada um prefira, mas a que Deus prescreveu e que provas certas e indubitáveis estabeleceram como a única verdadeira entre todas, — assim também as sociedades políticas não podem, sem crime, se conduzir como se Deus simplesmente não existisse, ou deixar de lado a religião como coisa estranha ou inútil, ou escolher indiferentemente uma religião entre tantas, segundo seu bel prazer. Antes pelo contrário, honrando a Divindade, devem elas, absolutamente, seguir as regras e o modo conforme os quais o próprio Deus declarou querer ser honrado» (Encíclica "Immortale Dei", de 1° de novembro de 1885).
Dir-se-á que o pluralismo religioso é a realidade histórica que temos hoje diante dos olhos, e que será inútil relembrar o que vigorava em eras remotas. Por outras palavras, nada ganharíamos em trazer para o proscênio a tese da união da Igreja e do Estado, quando a hipótese da separação é que empolga o mundo hodierno.
Se os Apóstolos e seus sucessores tivessem adotado esse modo de pensar, a sociedade civil teria permanecido pagã e nunca se teria chegado ao esplendor do século XIII. Vale dizer que, diante do laicismo do Estado e da crescente paganização da vida social, longe de nos conformarmos com tão lamentável espetáculo, tudo devemos fazer para que se realize o grande retorno de que falava Pio XII, mesmo porque, sem a plena aceitação do Evangelho, sem o pleno reconhecimento do reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo por parte de todos os homens, de todos os povos, em vão falaremos em paz, em harmonia social, em uma verdadeira sociedade das nações.
Dizia Louis Veuillot que a generalizada apostasia dos povos representou uma queda imensamente grande, pois caíram eles das alturas do Evangelho. E teria essa queda sido obra do acaso ou do incoercível dinamismo de misteriosos "fatores históricos"? Assim como o trabalho de evangelização realizado pela Igreja alcançou, deliberadamente, não só os indivíduos, mas também a família e as demais instituições sociais, assim a demolição da ordem católica vem sendo fruto, não do acaso, mas da ação dessa verdadeira anti-Igreja que é a Revolução. Por todos os modos vai ela promovendo a mudança das mentalidades bem como das instituições, numa porfiada interação dos homens sobre as instituições e das instituições sobre os homens. Esse processo revolucionário ora é lento, ora é apressado, segundo as oportunidades oferecidas pelos acontecimentos.
E tal como a conversão de um monarca, nos albores da Idade Média, apressava a evangelização de seus súditos, numa ação de cúpula para a base, da mesma sorte vemos acelerar-se a apostasia dos povos com o advento de governos de inspiração revolucionaria, instalados a golpes de força, a exemplo da Revolução Francesa ou da revolução soviética.
A separação da Igreja e do Estado, pregada e implantada em todo o mundo pela Revolução (como uma das mais importantes exigências do liberalismo religioso e político), foi um desses golpes desferidos, dentro da subversão universal, para apressar o processo de apostasia dos povos através da laicização das instituições sociais. Do berço ao túmulo tudo foi laicizado, subtraindo-se da esfera eclesiástica o registro dos nascimentos e a educação da juventude, a celebração dos casamentos e a administração dos cemitérios, os juramentos e o cerimonial do Estado. E a verdadeira Igreja foi posta de lado como uma sociedade religiosa qualquer, em igualdade de condições não somente com os ramos secos que se destacaram da videira, mas também com os próprios cultos pagãos. Não é preciso grande esforço para verificar como foi acelerado o processo revolucionário ao se arrancar a Igreja da vida política e social de povos inteiros já resgatados pelo Batismo.
Por que relembrar esta triste realidade no meio das festividades da Epifania? Temos ponderável razão para isso: no dia 7 deste mês de janeiro decorre o 75° aniversário da promulgação do decreto n.° 119-A do Governo Provisório, que estabeleceu no Brasil a separação da Igreja e do Estado.
"Conclusão da página 6"
É o seguinte o texto do ímpio e nefasto diploma:
Decreto n° 119-A, de 7 de janeiro de 1890
Proíbe a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em matéria religiosa, consagra a plena liberdade de cultos, extingue o padroado e estabelece outras providencias.
Art. 1° — Ë proibido à autoridade federal, assim como a dos Estados federados, expedir leis, regulamentos, ou atos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e criar diferenças entre os habitantes do país, ou nos serviços sustentados à custa do orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões filosóficas ou religiosas.
Art. 2° — A todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de exercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos atos particulares ou públicos, que interessem o exercício deste decreto.
Art. 3° — A liberdade aqui instituidor abrange não só os indivíduos nos atos individuais, senão também as igrejas, associações e institutos em que se acharem agremiados; cabendo a todos o pleno direito de se constituírem e viverem coletivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do poder público.
Art. 4° — Fica extinto o padroado com todas as suas instituições, recursos e prerrogativas.
Art. 5° — A todas as igrejas e confissões religiosas se reconhece a personalidade jurídica, para adquirirem bens e os administrarem, sob os limites postos pelas leis concernentes à propriedade de mão morta, mantendo-se a cada uma o domínio de seus haveres atuais, bem como dos seus edifícios de culto.
Art. 6° — O Governo Federal continua a prover à côngrua sustentação dos atuais serventuários do culto católico e subvencionará por um ano as cadeiras dos seminários; ficando livre a cada Estado o arbítrio de manter os futuros ministros desse ou de outro culto, sem contravenção do disposto nos artigos antecedentes.
Art. 7° — Revogam-se as disposições em contrário.
Para ilustrar o que dissemos linhas acima, convém indagar: como foi feita uma tão radical mudança em nossa legislação e em toda a vida do País? Por referendum popular, por um incoercível movimento da opinião pública? Não. O povo tomou conhecimento do decreto pela leitura dos jornais. Vejamos como se passaram os fatos, através da palavra de um historiador que está longe de se mostrar simpático à Igreja: "Na sessão do conselho de ministros de 7 de janeiro, sob proposta do conselheiro Ruy Barbosa, se resolvera afinal unanimemente decretar a separação da Igreja do Estado. Havia sido essa separação proposta por Demetrio Ribeiro, em conferência ministerial, desde o dia 9 de dezembro de 1889, mas fora adiada por ser assunto de grande importância, que exigia ser maduramente estudado. Contudo Ruy Barbosa apresentou agora (a 7 de janeiro) o plano como coisa própria, o que mais tarde produziu notável atrito entre os dois, reivindicando cada um deles a gloria da iniciativa desse ato" (Rocha Pombo na "História do Brasil", vol. V, p. 351).
Como se vê, a união da Igreja e do Estado, que nos vinha dos primórdios da nacionalidade, foi precipitadamente desfeita por proposta de dois revolucionários que depois se desentenderam, um tanto puerilmente, no afã de chamar cada qual para si a responsabilidade por esse ato tramado a portas fechadas e à revelia da imensa maioria do povo brasileiro.
Nem se invoque, para justificá-lo, o argumento sediço dos abusos cometidos pela coroa durante o regime de união da Igreja e do Estado. Esse regime deve ser apreciado em sua inteireza, quando vigorava segundo o espírito que o criou, e não através das ruínas a que foi reduzido pelo trabalho de sapa da própria Revolução. E as ruínas das coisas sagradas devem ser restauradas, não arrasadas.
Do modo como são propositadamente baralhados os dados da questão, não é para admirar que em nossos dias a hipótese se tenha como que transformado em tese, desaparecendo completamente do cenário o regime de união da Igreja e do Estado. Mas estaria ele definitivamente proscrito, como pretendem, entre outros, os maritainistas?
À vista da maneira artificial por que a Revolução introduziu o laicismo nos países cristãos, tendo como instrumento de suas tramas reduzida minoria de revolucionários que se apossaram do poder, o que justifica a ideia de que regime tão artificial não possa ser radicalmente mudado quando a humanidade por fim se cansar de comer as bolotas do exílio como o filho prodigo (cf. Luc. 15, 11-32)?
"Todos virão de Sabá, trazendo ouro e incenso e publicando os louvores do Senhor" (Is. 60, 6), canta a Igreja no Gradual da Missa da Epifania. Possamos nós contemplar em breve o espetáculo santíssimo dessas multidões inumeráveis que virão adorar o Esperado das nações, tendo à frente os novos Reis Magos, os condutores dos povos que reconheçam o império de Jesus Cristo sobre todas as coisas, e tenham para com a Mãe e Mestra infalível da verdade, que é a Santa Igreja, a mesma reverencia e o mesmo acatamento que os Santos Reis manifestaram à Santíssima Virgem que lhes mostrava o Deus Menino.