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Monsenhor Dupanloup e o

Syllabus vistos do longínquo Brasil

Fernando Furquim de Almeida

A 8 de dezembro de 1864, o Santo Padre Pio IX publicava a Encíclica "Quanta Cura". Vinha ela acompanhada de um rol de proposições condenadas, o célebre "Syllabus", ou seja, "Catálogo dos principais erros de nosso tempo, assinalados nas Alocuções consistoriais, nas Encíclicas e nas outras Cartas Apostólicas de nosso Santíssimo Senhor o Papa Pio IX".

Era um duro golpe vibrado contra a Revolução e teve enorme repercussão em todo o mundo, não só entre os católicos, como na opinião pública em geral, que acompanhava com vivo interesse o combate movido resolutamente pela Santa Sé contra a heresia liberal, da qual se achavam contaminados quase todos os governos da época.

Na França, o movimento católico estava dividido em três correntes principais, que reagiram diferentemente, de acordo com sua orientação respectiva. Os remanescentes do galicanismo, unidos em torno de Monsenhor Henri Louis Maret, Bispo titular e professor da Sorbonne, e de Monsenhor Georges Darboy, Arcebispo de Paris, apoiavam Napoleão III, aceitando e mesmo provocando a ingerência do governo imperial nos assuntos religiosos. Os chamados católicos-liberais formavam um pequeno grupo de políticos e intelectuais muito ativos, tendo à frente o fogoso Bispo de Orleans, Monsenhor Felix Dupanloup. A maioria ultramontana, liderada por Monsenhor Louis Pie, Bispo de Poitiers, tinha como intérprete brilhante e combativo, Louis Veuillot, cuja voz o governo abafara temporariamente ao fechar-lhe o jornal, "L'Univers", e ao proibi-lo de colaborar em qualquer outro.

A Encíclica, acompanhada do "Syllabus", foi acolhida com entusiasmo pelos ultramontanos e com pesar pelos galicanos e liberais. Corria que Monsenhor Maret e Monsenhor Darboy pediriam a intervenção de Napoleão III para evitar a divulgação dos dois documentos. De fato, o governo imperial enviou uma circular ao Episcopado proibindo-o de publicá-los e comentá-los. Quanto aos "católicos-liberais", desolados, não sabiam o que fazer para, ao menos, atenuar aos olhos do público a condenação pontifícia em que tinham de novo incorrido.

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MONSENHOR DUPANLOUP recebeu a Encíclica em fins de dezembro e logo se articulou com os amigos para estudar a situação. Depois de muitos encontros e consultas, decidiu-se pela publicação de um estudo interpretativo. Trabalhou febrilmente e conseguiu prepará-lo em poucos dias. A 24 de janeiro de 1865 a editora pôde dar a lume o livro "La convention du 15 septembre et l'Encyclique de 8 décembre".

Habilmente, o Bispo de Orleans não se limita nessa obra a interpretar a Encíclica e seu anexo segundo as intenções católico-liberais, diminuindo a força das condenações através de um largo uso da distinção entre a tese e a hipótese, no que era mestre. Para angariar as simpatias dos católicos de diversa orientação, refuta as interpretações tendenciosas e exageradas da imprensa anticlerical, censura o ato do governo proibindo a divulgação do documento pontifício, e toma a defesa da Santa Sé em uma outra questão, na qual coincidiam as opiniões dos ultramontanos e liberais franceses. Referimo-nos à convenção celebrada entre os governos da França e do Piemonte no dia 15 de setembro daquele mesmo ano.

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De acordo com Pio IX, a França mantinha em Roma, desde 1848 (quando os revolucionários italianos tinham chegado a ocupar a cidade), um exército encarregado de garantir a soberania temporal do Papa. Napoleão III, apesar de suas simpatias pela causa da unificação da Itália, não julgara conveniente retirar essas tropas, para não desagradar os católicos nem desmentir a orientação conservadora que resolvera adotar no início de seu reinado. Mas em 1858 um revolucionário italiano, Felice Orsini, atentou contra sua vida, e o Imperador, recordando-se talvez dos castigos cominados a quem violava os juramentos carbonários que prestara na mocidade, passou a apoiar Camilo Cavour, chefe do governo do Piemonte, o qual conspirava intensamente pela unificação da Itália sob a égide da casa de Saboia. A necessidade de evitar cristalizações na opinião conservadora francesa e de preservar o apoio dos católicos, obrigou Napoleão III a imprimir um caráter dúbio a essa sua política. A guerra contra a Áustria, tendo como consequência a anexação de parte dos Estados Pontifícios ao Piemonte, foi o primeiro ato público a desvendar os seus propósitos. O protesto de Pio IX e a reação dos católicos franceses levaram o Imperador a moderar o seu apoio aos revolucionários italianos, apesar da cólera que estes sentiram ao ver que ele aparentemente os abandonava depois de os ter incentivado. Por fim, em 1864, Napoleão III concluiu com o governo de Vitorio Emanuel uma convenção, negociada secretamente, pela qual se comprometia a retirar as suas tropas de Roma caso o Piemonte assumisse uma parte da dívida pública pontifícia, respeitasse o que restava dos Estados da Igreja e transferisse a capital de Turim para Florença, como prova de que não pretendia ocupar a Cidade Eterna. Era um modo disfarçado de abandonar a Santa Sé, e os católicos bem o compreenderam. Uma onda de indignação se levantou em toda a França, protestos veementes se fizeram ouvir, e mesmo os políticos que apoiavam o governo imperial se viram em dificuldades para desculpar a malfadada convenção.

Atacando duramente esta última, e defendendo a "Quanta Cura" e o "Syllabus" contra as calunias da imprensa anticlerical, Monsenhor Dupanloup podia fazer passar mais facilmente a sua interpretação liberal da Encíclica. O opúsculo teve enorme êxito e com sua incansável atividade o Bispo de Orleans o distribuiu ao Episcopado de todo o mundo. Foi, no entanto, também muito combatido e, para defender-se, Monsenhor Dupanloup costumava invocar as 600 cartas de Bispos que o teriam felicitado calorosamente.

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Há alguns anos, o historiador Roger Aubert publicou em três números sucessivos da "Revue d'Histoire Ecclésiastique", de Louvain (1956, vol. LI, pp. 79-142, 471-512 e 837-915), um estudo detalhado a propósito do livro. Nos arquivos do Seminário de Saint Sulpice encontrou ele 338 cartas de Bispos dos mais diversos países, dirigidas a Monsenhor Dupanloup, colecionadas em um volume sob o título de “La convention du 15 septembre et l'Encyclique du 8 décembre. Lettres des Evêques 1865-1866”. Depois de mostrar que não parece provável que tenham existido outras cartas, informa o articulista que, entre as que encontrou, a maior parte contém elogios ao livro, mas algumas fazem-lhe restrições quanto à doutrina, outras louvam apenas a defesa dos documentos pontifícios e dos direitos do Papa, e as restantes não passam de agradecimentos de mera cortesia. De qualquer modo, observa R. Aubert, a diversidade dos temas abordados pelo livro tornava "perfeitamente possível, não só agradecer polidamente a Dupanloup, mas até felicitá-lo calorosamente pelo grande serviço que vinha de prestar à Igreja, sem por isso aprovar sua interpretação católico-liberal dos documentos pontifícios" (loc. cit., p. 865).

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Entre as cartas conservadas em Saint Sulpice há três de Prelados brasileiros. Graças à gentileza do Sr. René Rancoeur, Conservador do Departamento de Periódicos da Biblioteca Nacional de Paris, obtivemos os microfilmes dessas cartas, ainda inéditas, e julgamos oportuno, no centenário da "Quanta Cura" e do "Syllabus", dar conhecimento delas aos nossos leitores, tanto mais que uma dessas cartas é de D. Antonio de Macedo Costa, Bispo do Pará, que fora condiscípulo de Monsenhor Dupanloup em Saint Sulpice e com ele se correspondia com freqüência. Mais tarde, como se sabe, tomou parte ativa na Questão religiosa, tendo sido preso juntamente com o grande D. Frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira.

Damos a seguir os textos desses documentos:

Residencia Episcopal le 14 Novembre 1865.

Monseigneur,

Au milieu des travaux de la visite pastorale je reçus la lettre dont Votre Grandeur a bien voulu m'honnorer. Elle était accompagnée d'un exemplaire de votre brochure intitulée: La Convention da 15 Septembre et I'Encyclique da 8 Décembre, que vous veniez de publier pour la défense de l'Eglise et du Saint-Siège. Je vous remercie, Monseigneur, de cette double faveur et je suis confondu de ce que vous ayez daigné demander mon humble suffrage sur une oeuvre que toute l'Europe a lu avec admiration et qui a été approuvée et bénie par le Saint-Père lui-même. Bien avant de recevoir votre lettre j'avais adressé une lettre pastorale à mes chers diocesains, dans laquelle j'avais intercallé une traduction de votre magnifique defense de l'acte pontifical. J'ose vous en envoyer deux copies. Pardonnez-moi Monseigneur, mais je crus ne pouvoir mieux faire que d'adopter ainsi solennellement ce travail, où vous avez refuté, avec autant de netteté que de force, les objections et les calomnies des ennemis de l'Eglise. Qu'il est beau, Monseigneur, de voir l'episcopat catholique, d'un bout du monde à l'autre, si uni à son auguste Chef! Tous n'ayant ensemble qu'un coeur et qu'une âme! Tous défendant la verité et la justice menacées d'un affaiblissement épouvantable dans ces jours mauvais que nous traversons.

Je desirerais, avant de terminer, pouvoir dire à Votre Grandeur, combien je vous suis attaché. Monseigneur, quand je pense à vous, à vos immenses travaux, je prends un peu de courage et je désire faire quelque chose pour ces pauvres âmes qui me sont confiées. Je repars pour une longue tournée pastorale. Je vais voir quelques paroisses dont quatre sont éparses dans une ile aussi vaste que le royaume de Portugal. C'est une consolation de se trouver au milieu de ces populations peu instruites, mais ayant une foi naïve et une simplicité patriarchale. Elles n'ont pas encore reçu le bienfait des idées nouvelles. Il ne me manque que de bons ouvriers. Que la moisson serait belle et abondante! Je me recommande à vos prières.

Veuillez agréer, Monseigneur, l'hommage du profond respect et du dévouement três tendre avec lequel j'ai l'honneur d'être

De Votre Grandeur

Le três humble et três obéissant serviteur

† Antoine, Evêque de Pará

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Monseigneur,

J'ai reçu la lettre, que Votre Grandeur a bien voulu m'adresser en date du 12 Juin dernier. N'étant accompagnée d'aucun écrit, elle ne fait que rendre plus vif le regret, que j'épreuve de ne connaître que très vaguement, et par les journaux le nouvel ouvrage de Votre Grandeur, qui vient d'édifier le monde Catholique, et d'enrichir la litterature Chrétienne.

Veuillez agréer, Monseigneur, l'hommage du profond respect, avec leque! j'ai l'honneur d'être

De Votre Grandeur

Le três humble, et três obéissant serviteur, et indigne frère

† Joseph, Evêque de Cuiabá

Cuiabá le 20 Novembre 1865.

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Porto Alegre le 29 Novembre 1865.

Monseigneur,

Ce fut avec un véritable bonheur que j'ai reçu votre aimable lettre avec un exemplaire de votre admirable écrit pour la défense de l'Eglise et du Saint-Siège et qui a pour titre: La Convention du 15 Septembre et l'Encyclique du 8 Décembre. Je l'avais dejà lu, Monseigneur, avec le plus vif plaisir depuis sa première édition. Vous y avez devoilé et mis à la clarté du jour toutes les machinations des impies et des méchants; en les dévoilant vous leur avez porte un coup mortel.

Gloire à Dieu qui, en envoyant des tribulations à son Eglise, fait surgir des vaillants athlètes pour la défendre! Et qui, Monseigneur, dans ce siècle a plus qui vous merité de l'Eglise de Dieu dans la défense de ses droits? En vous je considère le type d'un véritable descendant des Apôtres, en qui l'Esprit de Dieu se complait d'habiter et d'épandre l'éclat de ses lumières pour l'instruction des fidèles dans la doctrine de vie, en terrassant en même temes avec une valeur invencible les ennemis de Jésus Christ et de son Eglise. Soyez sûr, Monseigneur, que vous recevrez du Maitre une digne récompense, une éternelle couronne.

Le dernier de vos Frères vous salue affectueusement et vous embrasse avec amour dans les Coeurs adorables de Jésus et de Marie, en se signant avec les sentiments de la plus profonde vénération,

Monseigneur,

Votre três humble et três devoué serviteur

† Sébastien, évêque de Rio Grande do Sul (Brésil)


TRADUZIDA MAIS UMA PASTORAL DO SR. BISPO

A prestigiosa revista parisiense «Nouvelles de Chrétienté», que se destina a divulgar fatos e documentos relevantes que interessam ao mundo católico, publicou na íntegra a Carta Pastoral intitulada «Castidade, Humildade, Penitencia — Características do cristão, alicerces da ordem social», de S. Excia. Revma. o Sr. D. Antonio de Castro Mayer, Bispo de Campos. A publicação foi feita em duas partes, nos números 446 e 448.

Ao apresentar a tradução francesa do importante documento — feita sobre o texto publicado em «Catolicismo», n.° 154, de outubro de 1963 — -«Nouvelles de Chrétienté» ressaltam que, pela firmeza de sua doutrina e elevação de sua cultura, o ilustre Prelado vem-se distinguindo como uma das maiores figuras do Episcopado Brasileiro.


AUDITÓRIO ENTUSIÁSTICO PARA O PROF. PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA EM BUENOS AIRES

Para pronunciar três conferencias a convite da Federação Argentina de Entidades Democráticas Anticomunistas, esteve em Buenos Aires, na primeira semana de novembro p.p., o nosso colaborador Prof. Plinio Corrêa de Oliveira. O Presidente do Diretório Nacional da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade foi recebido no aeroporto internacional de Ezeiza pelos Srs. Nicolás Mihanovich e Santiago de Estrada, bem como pelos Srs. José Luis Bravo Collado e Cosme Beccar Varela Hijo, respectivamente diretor e colaborador de "Cruzada".

O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira falou na capital portenha perante numeroso e entusiástico auditório, desenvolvendo sucessivamente, nos dia 2, 4 e 6 de novembro, os temas seguintes: "Processo revolucionário na Cristandade", "Causas da debilidade do Ocidente face ao comunismo" e "A liberdade da Igreja no Estado comunista". Essas conferencias, que formaram o coroamento de um ciclo sobre o comunismo, iniciado pelo Almirante Carlos Pena Boto, foram amplamente noticiadas pela imprensa de Buenos Aires, sendo ademais o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira entrevistado velos jornais "La Nacion" e "La Prensa".

S. Sa. fez também uma conferência especialmente para os redatores e amigos da valorosa revista "Cruzada".


DR. BRUNO DE AGUIAR

Faleceu em São Paulo, no dia 11 de outubro último, aos 87 anos de idade, o Dr. Bruno Figueira de Aguiar.

Espírito acentuadamente tradicionalista e dotado de sólida formação teológica, o Dr. Bruno de Aguiar manteve em toda a sua longa existência uma posição decididamente contra-revolucionária. Quando moço sofreu rude perseguição por parte da maçonaria, cujas doutrinas e influência combatia com vigor. Nessa época em que o laicismo era moda mesmo em certos ambientes intelectuais católicos, sustentou sempre, com todo o desassombro, a tese da união da Igreja e do Estado. Continuador da obra de seu Pai, o saudoso Dr. Porphirio de Aguiar, dedicou-se com grande zelo e competência ao magistério, tendo lecionado no Seminário Vestibular da Arquidiocese de São Paulo até poucos dias antes de seu falecimento. Colaborador do «Legionário», que em sua segunda fase foi o antecessor glorioso de «Catolicismo», desde o início foi amigo e admirador desta folha.

O Dr. Bruno Figueira de Aguiar era filho do Dr. Porphirio Figueira de Aguiar e de D. Eliza Guerra Figueira de Aguiar, já falecidos, sendo suas irmãs D. Maria das Dores Figueira de Aguiar, D. Maria da Conceição de Aguiar Magano, viúva do Sr. Carlos Levy Magano, e D. Maria de Lourdes Figueira de Aguiar.


MANIFESTO AO POVO BRASILEIRO SOBRE A REFORMA AGRÁRIA

A Sociedade Brasileira de Defesa, da Tradição, Família e Propriedade está cônscia de cumprir um dever sagrado para com a Pátria e a civilização cristã ao erguer hoje sua voz, em meio a um silêncio completo, ou quase tanto, para se dirigir a toda a Nação brasileira sobre a reforma agrária consubstanciada na emenda constitucional n° 10 e no Estatuto da Terra.

I - A opinião pública e a aprovação da reforma agrária

1 — Antes do mais, é necessário um esclarecimento sobre o significado do silêncio estranho em que a opinião pública presenciou a aprovação da reforma agrária.

Todos temos na memória com quanta vitalidade, com que ardor se dividiram, há meses atrás, as correntes de pensamento, os partidos políticos, as organizações de classe, no debater os prós e os contras da reforma agrária proposta pelo então Presidente João Goulart. Chegou-se mesmo a afirmar na imprensa que os marcos divisórios entre os partidos políticos haviam desaparecido, só restando dois campos, o dos adeptos e o dos opositores da reforma agrária (já então tomada essa expressão só no mau sentido socialista). Agora, em face da emenda constitucional n° 10 e do Estatuto da Terra, que em substância repetem o projeto do governo deposto, a vida e o ardor de há pouco parecem não mais existir. Não se pense que esse fato decorreu de uma súbita e imponderada mudança de atitude ideológica ou tática dos opositores da reforma agrária socialista e confiscatória. Trata-se de um arrefecimento geral, que atingiu todos os setores da opinião pública sem discriminação e se manifestou de modo flagrante, não só no marasmo dos adversários do agro-reformismo, como na tibieza dos aplausos convencionais de quase todos os que, sendo agro-reformistas, tinham diante de si a tarefa sempre grata e atraente de bater palmas a uma medida desejada com todo o afinco pelo alto.

2 - Melhor se compreende o significado desta grande atonia analisando-lhe as causas.

Acessos como este, de súbita apatia, não são muito raros na História. Eles exprimem um estado de euforia confiante, e ao mesmo tempo de extenuação e de enfastiamento de uma opinião pública que acaba apenas de sair de um período de grandes convulsões. A Nação se encontrara, de um momento para outro, às portas do comunismo. Reagindo contra o perigo, mobilizou ela suas força vivas para uma luta que ameaçava ser titânica. O desfecho inesperado da crise, poupando ao País a carnificina iminente, varrendo o regime comuno-corruptor, e alçando ao poder a figura por todos acatada do ilustre Marechal Castello Branco, teve como consequência uma distensão brusca e profunda, que correspondia a um anseio geral de paz, de ordem e de trabalho. Daí o voltar-se cada qual inteiramente para suas atividades privadas, com o propósito de fruir — despreocupado de novas crises — a tranquilidade readquirida.

Esta atitude, de gregos e troianos, foi um erro. Nela se exprimiu o vezo tão frequente entre nós, de servirmos o País exclusivamente no setor das atividades privadas, desinteressados da vida cívica. Ela teve por efeito que as notícias sucintas divulgadas de quando em quando pela imprensa, sobre uma reforma agrária de iniciativa governamental, a quase ninguém alarmaram. Pois parecia de todo inverossímil que uma reforma agrária pudesse constituir um perigo na ordem de coisas surgida do glorioso Movimento de 31 de março.

Essa causa psicológica, genérica e profunda, fez com que larguíssimos setores da opinião pública assistissem «dopados» pela despreocupação eufórica do período de pós-revolução a aprovação da emenda constitucional n° 10 e do Estatuto da Terra.

3 - Circunstâncias mais próximas concorreram para acentuar largamente o alheiamento da opinião nacional.

O projeto do Estatuto da Terra, extenso, prolixo, usando de uma terminologia por vezes confusa, não poderia ser assimilado pela opinião pública média senão ao cabo de uma longa divulgação.

O debate no Legislativo seria a ocasião normal para que o público se esclarecesse sobre o conteúdo do projeto. Mas a urgência imposta pelo governo para a tramitação dele — como aliás também da emenda constitucional — estrangulou os debates, e constituiu obstáculo a que fosse esclarecida a opinião nacional.

Em trinta dias o Congresso teve que examinar, emendar e votar um projeto de 133 artigos e mais de 500 parágrafos, incisos e alíneas. Consumou-se assim às carreiras um dos mais importantes fatos da vida nacional desde a Independência.

Senadores e Deputados bem haviam deixado ver, de início, sua inquietação diante do projeto de Estatuto da Terra apresentando a este 425 emendas e 9 substitutivos.

Mas foi mister passar sobre tudo. Em 22 dias de debates e votação, a propositura teve de ser aprovada. O Congresso agiu aliás de modo desconcertante, introduzindo nela rapidamente cerca de 170 modificações, quase todas insignificantes. Com o apoio das bancadas janguistas, os representantes das correntes que depuseram Jango fizeram através da aprovação da emenda constitucional e do Estatuto da Terra a «reforma» que Jango queria. Só um pugilo de membros do Congresso, cujos nomes a História há de reter, soube discordar, neste passo, do Executivo irredutível.

Em meio a tanto açodamento, a voz destes bravos mal pôde chegar ao conhecimento do público. E mais ou menos no momento em que chegava, a atenção deste foi convergindo num crescendo para um episódio de importância bem menor na ordem profunda dos fatos, mas que se desenvolvia em lances palpitantes. Foi o caso Mauro Borges, em Goiás. Irrompeu ele na vida nacional, por coincidência, no momento exato em que ao agro-reformismo convinha fazer-se pouco notado pela opinião pública, para alcançar mais facilmente sua almejada vitória.

Cumpre ainda observar que os órgãos de cúpula da imensa rede de associações representativas da classe rural, aos quais competia conjurar tantos fatores adversos, alertando seus associados e o Brasil, ou não atuaram, ou mobilizaram meios de ação nitidamente desproporcionados às necessidades do momento. Este fato é notório. Não nos compete analisá-lo, nem dele queremos fazer base para qualquer comentário, menos ainda para uma censura. Registramo-lo tão somente, e a isto não nos podemos furtar pois ele contribuiu muito sensivelmente para que se mantivesse descuidada grande parte da opinião que — convém lembrá-lo ainda uma vez — há poucos meses atrás vibrava a respeito do assunto. Por fim, não é de todo sem interesse notar que do próprio setor empresarial partira um tal ou qual apoio à reforma agrária, com a publicação de um livro faustoso e pouco consistente que visava dar ao agro-reformismo certo «tonus» conservador; como se a reforma agrária, abrindo as portas para a reforma industrial e comercial, não representasse, por assim dizer, o suicídio da classe daqueles mesmos que editavam tal livro.

4 - Como se vê, não é a uma mudança ideológica e tática do setor anti-agro-reformista, e menos ainda é só a essa mudança, que se deve o ocorrido. Uma conjugação de fatores próximos e remotos, de vária natureza, é que a isto conduziu.

Pelo contrário, aquele setor, esclarecido e alertado, está apresentando sintomas animadores de reatividade.

Prova-o a acolhida que vem tendo a «Declaração do Morro Alto», da qual se esgotou em um mês a primeira edição de 12 mil exemplares. Esse trabalho, que tem por autores o Exmo. Revmo. Sr. D. Geraldo de Proença Sigaud, S. V. D., Arcebispo de Diamantina, o Exmo. Revmo. Sr. D. Antonio de Castro Mayer, Bispo de Campos, e dois signatários deste manifesto, o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira e o economista Luiz Mendonça de Freitas, resume em sua primeira parte os aspectos essenciais do livro «Reforma Agrária — Questão de Consciência», e na outra contém um programa positivo de política agrária elaborado pelos autores desse livro, ouvida uma distinta comissão de fazendeiros e técnicos da região de Amparo, Bragança Paulista e Sul de Minas.

A difusão da «Declaração do Morro Alto», feita por todo o Brasil pela Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, e a acolhida vitoriosa que ela teve, bem demonstram quão viva permanece em nosso País a receptividade para uma atuação cívica que, dentro da mais escrupulosa e intransigente legalidade, continue a opor barreiras ao agro-reformismo socialista e confiscatório.

II - O Estatuto da Terra, esse desconhecido

Os autores de «Reforma Agrária — Questão de Consciência» elaboraram um estudo sobre os projetos de que resultaram a emenda constitucional n° 10 e o Estatuto da Terra, considerados especialmente do ponto de vista do direito de propriedade e da livre iniciativa.

Tão complexo é o Estatuto da Terra que, meramente sob esse duplo ângulo e excluindo tantos outros aspectos alarmantes de ambas as proposituras governamentais, o estudo em apreço, feito com toda a concisão, encerra 35 laudas datilografadas. Mal houve tempo para elaborá-lo e distribuí-lo aos Srs. Senadores e Deputados, os quais só à última hora o receberam. Quanto a uma divulgação resumida e para conhecimento popular, não foi possível promovê-la a tempo.

Por isto talvez, nenhum órgão privado, que saibamos, procedeu à divulgação de uma súmula dos projetos em termos facilmente acessíveis ao grande público, como também não cogitou disso o governo. Pena é que assim tenha sido, pois o esclarecimento da opinião pública é inerente ao que o regime atual tem de mais básico e característico.

Agora pelo menos, promulgadas ambas as leis, pode a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade informar o público de alguns traços do Estatuto da Terra, que para ele continua a ser um grande desconhecido. Claro está que se trata da enunciação sintética de apenas alguns aspectos do imenso texto legal.

III - O direito de propriedade no Estatuto da Terra

Especialmente desconhecidos e entretanto dignos de nota são os dispositivos da lei que deixam mutilada e agonizante a propriedade rural no Brasil.

1 — A tendência fundamental do Estatuto da Terra em matéria de estrutura rural consiste em que:

• a) promove ele ativamente o fracionamento de

(continua)