Tudo poderá ainda ser salvo – à medida que a opinião nacional, desperta do letargo em que esteve imersa, se vá afirmando

(continuação)

terras não só devolutas, como também particulares, estas últimas mediante desapropriação;

• b) esse fracionamento visa sempre constituir uma propriedade ou «parcela» que corresponda ao «módulo rural» — as expressões são do Estatuto da Terra — isto é, que tenha tão só a extensão necessária para ser cultivada pessoal e diretamente pelo proprietário e sua família;

• c) a «parcela», resultante da reforma agrária, não pode ser vendida a quem já for proprietário rural. O «parceleiro» só pode ser dono de uma «parcela». Se deixar de explorar diretamente sua terra, esta reverterá ao alienante;

• d) as «parcelas» serão reunidas, em todo o território nacional, em cooperativas das quais o Estatuto da Terra não diz que autoridade terão sobre os proprietários, nem que autoridade sobre elas terá o Poder Público;

• e) incorreto em sua terminologia, confuso e passível eventualmente das mais perigosas interpretações, é o art. 3°: «Art. 3° — O Poder Público reconhece às entidades privadas, nacionais ou estrangeiras, o direito à propriedade da terra em condomínio, quer sob a forma de cooperativas quer como sociedades abertas constituídas na forma da legislação em vigor». Que é aí «condomínio»? Pretenderia o dispositivo negar o direito à propriedade da terra às sociedades que não tenham «forma de cooperativa» ou não sejam «abertas»? Pena é que, introduzindo centenas de modificações no projeto do Executivo, o Congresso haja deixado intacto este misterioso artigo;

• f) em síntese, o que hoje se convencionou chamar a «filosofia» da lei consiste, no Estatuto da Terra, em considerar para todo o território nacional a propriedade de dimensão familiar como o único tipo inteiramente satisfatório de propriedade, quer do ponto de vista da justiça social, quer da plena produtividade.

Quanto a este princípio, e, pois, quanto a seus corolários e suas consequências, está a lei em formal desacordo com o citado livro «Reforma Agrária — Questão de Consciência», que, não regateando embora sua simpatia à propriedade de dimensão familiar, afirma também ser inteiramente conforme à justiça social a propriedade grande e média, e ser eventualmente maior a capacidade de produção destas do que a da propriedade familiar, de acordo com a natureza do solo, da cultura, etc.

A Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade pleiteia pois a existência simultânea e harmônica em nosso País dos três tipos de propriedade, a grande, a média e a pequena, em vez de uma estrutura rural socialista, constituída tão somente de pequenas glebas.

2 — O processo pelo qual se desencadeia o mecanismo expropriatório do Estado é o seguinte:

• a) ocorrendo em uma região, a juízo do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA) — órgão autárquico na dependência direta da Presidência da República — um estado de crise ou de tensão, o Instituto promove ali, por meio de desapropriações e fracionamento, a alteração da estrutura agrária. As áreas em condições como estas, o Estatuto da Terra qualifica de áreas prioritárias de reforma agrária. Como ele não define em que consiste nem a crise nem a tensão, um número indefinido de propriedades rurais fica assim sujeito aos riscos da reforma agrária;

• b) para o fim acima, o IBRA promove a criação de um órgão local, a Delegacia Regional do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRAR), que procede aos estudos e fixa os planos para as desapropriações, e as executa;

• c) em cada área prioritária haverá um órgão — Comissão Agrária — constituído por um presidente nomeado pelo IBRA, três representantes dos trabalhadores rurais e três dos proprietários, um representante de entidade pública ligada à agricultura e um representante de estabelecimentos de ensino agrícola. A esse órgão caberá, entre outras coisas, instruir e encaminhar os pedidos de aquisição e de desapropriação de terras, e manifestar-se sobre os candidatos a estas.

3 — As normas para a desapropriação em áreas prioritárias são as seguintes:

• a) o IBRA demarcará no País regiões de características econômicas e ecológicas homogêneas, e estabelecerá para cada região, segundo os vários gêneros de exploração rural, a dimensão da propriedade familiar, isto é, daquela que pode ser explorada pessoal e diretamente pelo proprietário e sua família;

• b) ainda que perfeitamente bem explorados, serão qualificados de latifúndio e sujeitos a desapropriação todos os imóveis cuja extensão for superior a 600 vezes o módulo da zona; ou ainda aqueles cuja extensão exceder a 600 vezes a média das áreas das propriedades rurais da zona;

• c) o IBRA fixará para cada região os tipos de exploração que repute mais adequados, e o nível de produtividade que devem apresentar. As propriedades que não se conformarem com os padrões do IBRA estarão automaticamente incluídas na categoria de latifúndios, qualquer que seja a sua dimensão (desde que superior ao módulo), ficando sujeitas portanto a desapropriação;

• d) estarão sujeitas a desapropriação as terras não cultivadas;

• e) ainda que inexplorados ou mal explorados, não estarão sujeitos a desapropriação os imóveis rurais que tiverem até três vezes a área correspondente ao módulo;

• f) estarão igualmente sujeitos a desapropriação os minifúndios, isto é, as propriedades de área inferior ao módulo, e que por isto não bastam, a juízo do IBRA, para o sustento do agricultor e sua família.

4 — Decretada a expropriação, e não havendo acordo, o IBRA ingressará em juízo, obtendo imissão liminar. A desapropriação nunca será anulada judicialmente. O imóvel desapropriado não poderá voltar às mãos do seu dono, a quem se permite apenas pleitear o ressarcimento de perdas e danos.

5 — A indenização pelo imóvel expropriado, reputada justa pelo Estatuto da Terra, não será idêntica ao valor venal, pois em sua fixação se levarão em conta também outros fatores (indicados no art. 19, § 2.°, letra «a»).

6 — A forma de pagamento, para os chamados latifúndios, poderá ser, segundo a emenda constitucional n° 10, mediante títulos da dívida pública, resgatáveis no prazo máximo de 20 anos, com juros que serão de 6% a 12%, a juízo do Poder Executivo. Esses títulos terão seu valor nominal sujeito a correção monetária e, pois, garantido em princípio contra a inflação. Porém seus portadores não terão garantias contra o risco de, no mercado, serem estes títulos cotados abaixo do valor nominal.

IV - A livre iniciativa no Estatuto da Terra

Não nos podemos alongar nesta exposição. E, assim, sobre o importante aspecto em epígrafe apenas observaremos aqui que:

• a) pela imensidade de atribuições que o Estatuto da Terra põe nas mãos do IBRA, não só fica este com poderes expropriatórios dos mais amplos, como recebe uma função verdadeiramente diretiva no que diz respeito às atividades agropecuárias de todo o País;

• b) com efeito, contra quem não explorar suas terras como o entender o IBRA, ficará reservado a este, em um grande número de casos, o recurso de brandir o gládio expropriatório;

• c) com a repercussão indireta de tudo isto, jamais no Império ou em outra fase de nossa vida política terá havido tal soma de poderes em mãos do Chefe de Estado;

• d) outra forma de cerceamento da livre iniciativa no Estatuto da Terra está nas medidas restritivas adotadas por este a respeito de salariado, parceria e arrendamento.

Estas medidas são conformes à «filosofia» do Estatuto. Pois este, se permite a existência de imóveis de dimensão superior à familiar, explorados segundo as diretrizes dele, entretanto reserva toda a sua dileção e suas esperanças melhores para as propriedades de dimensão familiar. Ora, a implantação destas em todo o Brasil supõe por força a extinção da parceria, do arrendamento e, em larga medida, também do salariado.

V - Perspectivas propícias

Esta enumeração não tem de modo algum o sentido de um dobre de finados. Com efeito, apresenta o Estatuto da Terra um aspecto pelo qual tudo ainda poderá ser salvo, à medida que a opinião nacional, devidamente esclarecida e despertada desse como que letargo hipnótico em que esteve imersa, se vá afirmando.

Temos à frente do País um militar ilustre, que tem timbrado em respeitar as liberdades constitucionais. Aproveitar delas para agir dentro da lei é um direito, e mais do que isto é um dever.

Agir em que sentido? O Estatuto da Terra confere ao IBRA, já o dissemos, atribuições imensas. Mas estas podem ser definidas e circunscritas, por meio de disposições regulamentares ou leis corolárias, com grande proveito para o direito de propriedade e a livre iniciativa.

O que cabe, pois, é que, não só a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, mas todas as associações de classe, todos os grupos sociais, todos os brasileiros, enfim, cônscios dos riscos que corre com a mutilação do direito de propriedade e da livre iniciativa a própria civilização cristã, cooperem para esclarecer sobre o conteúdo do Estatuto da Terra a opinião pública. Bem como para fazer sentir aos partidos políticos — tão omissos lamentavelmente nesta matéria, com exceção dos esquerdistas de todos os matizes, desde o PDC ao comunismo — e aos Poderes Públicos, o que pensam, o que sentem e o que querem.

A perspectiva em que as circunstâncias nos colocam constitui para o Brasil uma verdadeira encruzilhada, a mais grave de sua história.

É bem verdade que a muitos brasileiros honrados mas inadvertidos passa despercebido que o aspecto mais ameaçador do perigo comunista é, nestes dias, o deslizar do País para o comunismo através de sucessivas leis socialistas.

Mas se as correntes de opinião esclarecidas e previdentes, que reconhecem no avanço do socialismo progressista, «demo-cristão» ou que outro nome tenha, esse deslizar certeiro se bem que macio do Brasil para o comunismo, souberem fazer sentir sua influência junto aos Poderes Públicos, criarão entraves salutares à expansão do agro-reformismo em nosso País.

E queira Deus que assim seja, para a grandeza do Brasil nas vias da civilização cristã. Mesmo porque, se não erguermos barreiras agora ao socialismo agrário, amanhã começarão a ferver os fermentos da reforma da empresa industrial e comercial.

Para tanto não falta o exemplo contagioso do que estão empreendendo as cúpulas esquerdistas da Democracia Cristã em outros países da América do Sul. Mas esta é outra questão, complexa e rica em perigosos desenvolvimentos, da qual não é lugar de tratar aqui.

São Paulo, 24 de dezembro de 1964

O DIRETORIO NACIONAL:

Plinio Corrêa de Oliveira

PRESIDENTE

Fernando Furquim de Almeida

VICE-PRESIDENTE

José Carlos Castilho de Andrade

SECRETÁRIO

Fabio Vidigal Xavier da Silveira

TESOUREIRO

Adolpho Lindenberg

Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira

Eduardo de Barros Brotero

Luiz Nazareno Teixeira de Assumpção Filho

Paulo Barros de Ulhôa Cintra

Plinio Vidigal Xavier da Silveira

VOGAIS

Alberto Luiz Du Plessis

Caio Vidigal Xavier da Silveira

Celso da Costa Carvalho Vidigal

Giocondo Mario Vita

João Sampaio Netto

José de Azeredo Santos

José Fernando de Camargo

José Gonzaga de Arruda

Luiz Mendonça de Freitas

Paulo Corrêa de Brito Filho

Sergio Antonio Brotero Lefevre

CONSELHO CONSULTIVO


Carta do Bispo Diocesano ao seu Vigário Geral

S. Excia. Revma. o Sr. D. Antonio de Castro Mayer, Bispo Diocesano, dirigiu de Roma, em data de 16 de dezembro p.p., a seguinte carta ao Exmo. Revmo. Mons. Antonio Ribeiro da Rosario, seu Vigário Geral:

«Ainda sob os suaves eflúvios da graça que inundou a sala conciliar quando o Santo Padre declarou, de acordo com toda a Tradição católica, Maria Santíssima Mãe da Igreja, todavia, não ainda inteiramente refeito dos trabalhos conciliares, chegou-Nos a trágica notícia do assassinato de Nosso caríssimo Monsenhor Jorge von Letto, mui zeloso pároco de São Sebastião de São Gonçalo dos Goitacazes.

A V. Revma., Nosso dedicado Vigário Geral, vimos, neste transe amargo de Nosso ministério, abrir Nossa alma, extravasar a angústia que a oprime diante do brutal evento, que enluta a Igreja de Campos, e enodoa os foros de civilização de Nossa querida terra campista.

Não poderiamos ter recebido notícia mais dolorosa, precisamente no momento em que Nos disponhamos a saborear com Nossos caríssimos Cooperadores e amados filhos os frutos do Concilio Ecumênico, prenhes de esperanças de uma nova era de paz e elevação dos homens, como consequência, de uma maior santificação dos fiéis.

Confrangem-Nos mais as circunstancias que envolveram e seguiram o crime. Tratava-se de um Sacerdote, consagrado ao serviço de Deus e fidelíssimo à sua vocação. Constitui, pois, o crime um sacrilégio que pede a Deus vingança, segundo as palavras da Escritura: «Nolite tangere christos meos» (Si. 104, 15). Queira V. Revma. promover os atos de reparação que julgar convenientes e o caso requer.

Além disso, era Mons. Jorge von Letto pessoa boníssima, cujo coração não tinha lugar para ressentimentos de qualquer espécie, muito menos para ódios e malquerenças. Sua casa vivia às escancaras, aberta a toda gente que nela encontrava alivio espiritual e material para suas perplexidades. E dizer-se ainda que sua nacionalidade o tornava digno de nosso maior respeito, porquanto, não natural de nosso País, lhe devíamos, além da hospitalidade, os agradecimentos pelo muito que fazia em benefício de nosso povo.

Padre de vida ilibada — como podem atestar os paroquianos de São Sebastião e de São Gonçalo que tiveram a felicidade de ser objeto de seu zelo nos longos e cheios anos de seu ministério — não é sem a mais viva repulsa que soubemos da tentativa de manchar sua honra, conservada intacta durante sua tão benéfica existência.

O Vigário de São Sebastião e de São Gonçalo era merecedor da estima geral com que o povo acompanhava seu indefesso trabalho, todo voltado para o bem das almas e o alivio dos necessitados de suas freguesias. Uma coisa só o animava: o cumprimento de seu dever sacerdotal. E para isso, para atender ao seu povo, não poupava sacrifícios. Quantas vezes as viagens se sucediam pelas capelas distantes, sem lhe darem o vagar sequer para uma ligeira refeição!

Consola-Nos, neste passo aflitivo de Nosso episcopado, a certeza de que, na gloria — onde recebe o prêmio de suas labutas apostólicas — Mons. Jorge von Letto estará, à imitação do Divino Mestre, a pedir perdão para seus gratuitos inimigos: «Pater, dimitte illis, non enim sciunt quid faciunt» (Luc. 28, 34).

Queira V. Revma. aos paroquianos de São Sebastião e São Gonçalo, fazê-los cientes da comunhão de pesar que, nesta triste emergência, os mantém unidos ao seu Pastor que afetuosamente os abençoa.

Deus guarde a V. Revma.».


No mês passado decorreu o centenário da publicação da «Quanta Cura» e do «Syllabus». A necessidade de abrir espaço no número de dezembro para matéria inadiável, como era a dos projetos agro-reformistas, levou-nos a deixar para este número os artigos comemorativos da efeméride.


O SYLLABUS DO PAPA PIO IX documento atual como há cem anos

Cunha Alvarenga

Entre as várias confidencias feitas pela Mãe de Deus a Jacinta, se acha a de que "a Igreja não tem modas. Nosso Senhor é sempre o mesmo" ("Jacinta, a florinha de Fátima", Pe. Fernando Leite, S. J. — Ed. Mensageiro da Fé, Salvador — p. 120). Esta verdade tão simples, e tão oportuna nos novidadeiros tempos presentes, se ajusta de modo perfeito a dois documentos que vieram a lume há exatamente cem anos atrás. Foi a 8 de dezembro de 1864 que a Divina Providencia, pelas mãos do Santo Padre Pio IX, concedeu ao mundo a graça dos ensinamentos contidos na Encíclica "Quanta Cura" e no catálogo de erros modernos que lhe veio anexo sob o titulo de "Syllabus".

Segundo a corrente modernista, muito saliente nos dias que vivemos, já estaria completamente superada a doutrina defendida por Pio IX naquela conjuntura histórica. Pois outros são os tempos: da fase liberal em que então se achava o mundo, passamos para a fase socialista, do mesmo modo que passamos do bico de gás ao neon, da máquina a vapor aos foguetes interplanetários.

Como aplicar à realidade presente princípios formulados para os problemas da vida religiosa, política e social de há cem anos atrás?

Ora, quando Pio IX condena no "Syllabus" a opinião de que o Romano Pontífice pode e deve reconciliar-se e transigir com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna (cf. proposição n.° 80), refere-se ele a um conceito de progresso e de civilização que ainda hoje não pode ser aceito pela Igreja. Para demonstrá-lo basta que nos reportemos ao documento de que essa proposição foi retirada, que é a Alocução "Iamdudum Cernimos", de 18 de março de 1861, na qual o Papa esclarece: "Se por civilização cumpre entender os sistemas inventados (...) para debilitar e talvez para destruir a Igreja, nunca poderão a Santa Sé e o Romano Pontífice aliar-se com semelhante civilização". Verdade essa que é válida tanto para o ano de 1864 quanto para o de 1964, pois se para o mundo físico há princípios imutáveis, mais ainda há de havê-los quando estão em causa realidades que deitam raízes nas profundezas da vida moral e religiosa.

O "SYLLABUS" E O ESTADO TOTALITARIO

Entretanto, se bem analisarmos as coisas, veremos que aqueles que hoje repudiam a Encíclica "Quanta Cura" e o "Syllabus" são descendentes espirituais da triste família de liberais e de "católicos-liberais" que tanto amarguraram a vida de Pio IX há cem anos atrás. E a luta em que os ultramontanos do século XIX se empenharam continua, nos dias que correm, contra a mesma hidra da Revolução, cujas várias cabeças tentam hoje, como tentavam ontem, devorar o que resta da civilização católica.

Mudaram os tempos, mas nós nos encontramos dentro do mesmo processo revolucionário, embora em fase diferente. Publicados contra o liberalismo religioso, político e social, então em pleno apogeu, têm a Encíclica "Quanta Cura" e o "Syllabus" um caráter nitidamente antitotalitário, constituindo uma eloquente demonstração de que o liberalismo, em sua essência, longe de se opor ao Leviatã totalitário, se acha nas entranhas deste. Assim, os erros contra os quais Pio IX alertava o mundo católico são os mesmos que, agora plenamente desenvolvidos, entenebrecem o horizonte de nossos dias com toda a sua sequela de males. Mesmo porque, em seu aspecto religioso, o liberalismo preparou o caminho para a apostasia dos povos, afastando dos conselhos das nações o influxo salutar da Santa Igreja. É o que claramente afirma o Pontífice na "Quanta Cura": "Quando a Religião se vê desterrada de um Estado e se repele a doutrina e a autoridade da Revelação divina, então se obscurece e se perde a própria noção verdadeira da justiça e do direito humano, e a força material ocupa o posto da verdadeira justiça e do legítimo direito". Eis aqui indicada a gênese profunda da Rússia soviética, da Alemanha nazista, da Cuba socialista.

O panteísmo gnóstico, o naturalismo e o racionalismo continuam a empestar todo o orbe, assumindo proporções ciclópicas tanto além quanto aquém da cortina de ferro. O Manifesto comunista de Marx, publicado em 1848, e a mais recente arenga de Brezhnev no 47° aniversário da Revolução de Outubro se acham impregnados daquela terrível e mefítica atmosfera que exala da primeira proposição condenada pelo "Syllabus" de Pio IX: "Não existe um Ser divino supremo, sapientíssimo e providentíssimo, distinto do universo. Deus se identifica com a natureza das coisas e, portanto, está sujeito a transformações. Deus, realmente, se forma no homem e no mundo, todas as realidades são Deus, e têm a mesma substancia de Deus; Deus e o mundo são uma mesma coisa, e, portanto, também o são o espírito e a matéria, a necessidade e a liberdade, a verdade e a mentira, o bem e o mal, a justiça e a injustiça". A doutrina da matéria eterna e incriada, esposada pelo materialismo histórico, não constitui a religião panteísta que ameaça envolver todo o orbe através da servidão socialista?

DOUTRINAS PESTILENCIAIS DO SOCIALISMO E DO COMUNISMO

Vejamos outra sentença cuja condenação muitos reputam superada: "A Igreja deve estar separada do Estado, e o Estado deve estar separado da Igreja" (proposição n° 55 do "Syllabus", extraída da Alocução "Arcebissimum", de 27 de setembro de 1852). Não é esta a razão profunda por que a Santa Sé deplora, em nossos dias, que "em conseqüência do agnosticismo religioso dos Estados" tenha ficado "amortecido ou quase perdido na sociedade moderna o sentir da Igreja" (Carta do Exmo. Revmo. Mons. Angelo Dell'Acqua, Substituto da Secretaria de Estado, a sua Eminência o Cardeal Motta por ocasião do Dia Nacional de Ação de Graças de 1956)? Por acaso se pode negar hoje, como faziam os liberais de há cem anos, "que a liberdade civil de cultos e a faculdade plena, outorgada a todos, de manifestar aberta e publicamente suas opiniões e pensamentos sem exceção alguma, conduzem com maior facilidade os povos à corrupção dos costumes e das inteligências e propagam a peste do indiferentismo" (proposição n° 79 do "Syllabus", extraída da Alocução "Numquam Fore", de 15 de dezembro de 1856)?

Reitera o "Syllabus" em seu § IV a condenação das "pestilenciais doutrinas" do socialismo, do comunismo, das sociedades secretas. Na época do radar e da energia atômica deixaram de existir essas doutrinas ou, pelo contrário, delas estamos sofrendo os efeitos em escala apocalíptica, nunca dantes conhecida?

Vem muito a propósito lembrar que está tendo repercussão mundial o estudo do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira sobre "A liberdade da Igreja no Estado comunista". É fácil ver quanto se relacionam com o tema ali tratado, sendo portanto de flagrante atualidade, as seguintes proposições liberais e totalitárias condenadas há cem anos atrás pelo Papa Pio IX : "Além do poder inerente ao Episcopado, a Igreja tem outro poder temporal, concedido expressa ou tacitamente pelo poder civil, o qual pode, por conseguinte, revogá-lo a seu arbítrio" (proposição n° 25, extraída da Carta Apostólica "Ad Apostolicae", de 22 de agosto de 1851), e "a Igreja não tem direito natural e legítimo de adquirir e possuir" (proposição n° 26, extraída da Alocução "Numquam Fore", e da Encíclica "Incredibili", de 17 de setembro de 1863). Mais ainda: "Não é licito aos Bispos publicar sem permissão do governo nem as próprias Cartas Apostólicas" (proposição n° 28, extraída da citada Alocução "Numquam Fore"); "a imunidade da Igreja e das pessoas eclesiásticas tem sua origem no direito civil" (proposição n° 30, extraída da Carta Apostólica "Multiplices Inter", de 10 de junho de 1851).

MÉTODOS NAZISTAS CONDENADOS EM 1864

Já há cem anos passados não faltava quem achasse que a organização da Igreja era uma velharia desprezível como tudo que nos vem da Idade Média: "A doutrina dos que comparam o Romano Pontífice a um príncipe que exerce livremente sua autoridade em toda a Igreja é uma doutrina que prevaleceu na Idade Média" (proposição condenada sob n° 34 no "Syllabus", e extraída da citada Carta Apostólica "Ad Apostolicae"). E a tendência para constituir igrejas "nacionais" já era um flagelo quando os homens usavam sobrecasaca: "Podem-se estabelecer igrejas nacionais independentes da autoridade do Romano Pontífice e completamente separadas dele" (proposição condenada sob n° 37 e extraída da Alocução "Multis Gravibusque", de 17 de dezembro de 1860).

O século XX é notadamente o século do mais extremado totalitarismo. E quem diz totalitarismo diz socialismo, pois o regime socialista é por força totalitário, e vice-versa. Socialista é o Estado totalitário soviético, socialista foi o fascismo, socialista foi a Alemanha de Hitler. E qual é um dos mais importantes princípios diretores do Estado totalitário ou socialista? É que "o Estado, por ser fonte e origem de todos os direitos, goza de um direito ilimitado". Ora, essa é a proposição condenada no "Syllabus" sob no 39 e extraída da Alocução "Maxima Quidem", de 9 de junho de 1862. Mais uma prova de que, não em seus acidentes, mas em sua essência, as vias do Estado totalitário foram abertas pelos erros doutrinários professados na fase liberal da Revolução. Assim, por exemplo, a atitude da França liberal ao denunciar unilateralmente, durante o pontificado de São Pio X, a Concordata que mantinha com a Santa Sé, foi prenuncio do que haveria de acontecer quando a Alemanha nazista tratasse como um farrapo de papel o solene documento que espontaneamente assinara com o Vaticano. Eis portanto outra amostra da atualidade do "Syllabus" ao condenar, sob n° 43, esta proposição (extraída da Alocução "In Consistoriali", de 1° de novembro de 1850, e da citada Alocução "Multis Gravibusque") : "O poder civil tem autoridade para rescindir, declarar nulos e anular efetivamente, sem consentimento da Sé Apostólica, e ainda apesar de suas reclamações, os solenes convênios (ou concordatas) celebrados com a mesma Sé Apostólica acerca do uso dos direitos referentes à imunidade eclesiástica".

OS MALEFÍCIOS DO LAICISMO ESCOLAR

O Brasil acaba de passar pela lamentável experiência da UNE e das UEE, com o triste espetáculo da corrupção de grandes contingentes de nossa mocidade estudiosa, que se prestaram docilmente às manobras comunistas. Estaríamos diante de um fenômeno repentino, suscitado por um golpe de mágica, ou trata-se, pelo contrário, do resultado de várias gerações deseducadas pelo laicismo escolar? Pio IX, há cem anos atrás, claramente percebia a tática revolucionária de envolvimento que tendia a afastar da Igreja não somente o Estado, mas também as famílias, através da escola leiga, obrigatória e gratuita. Contra essa torpe manobra o grande Pontífice alertou o mundo católico em termos inequívocos, escrevendo na Encíclica "Quanta Cura": "E não contentes em desterrar do Estado a Religião, querem excluí-la também da família. Porque, ensinando e professando o funesto erro do comunismo e do socialismo, afirmam que "a sociedade doméstica ou família recebe toda a sua razão de ser do direito puramente civil, e que, em consequência, da lei civil derivam e dependem todos os direitos dos pais sobre os filhos, principalmente o direito de instruí-los e educá-los". O objetivo principal a que tendem esses impostores com suas ímpias teorias e dolosas manobras é afastar totalmente a instrução e a educação da juventude da salutar influência doutrinaria da Igreja Católica, e depravar com os erros ideológicos mais perniciosos e com toda classe de vícios a alma terna e dúctil da juventude".

O que há um século era simples ameaça dentro dos países católicos, hoje é uma triste realidade. E a não ser aqueles que aceitam sem mais o princípio totalitário do fato consumado, quem não lamenta o atual estado de coisas, contra o qual o "Syllabus" prevenia o mundo católico ao condenar a proposição n° 45, extraída das Alocuções "In Consistoriali" e "Quibus Luctuosissimis", de 5 de setembro de 1851: "A direção total das escolas públicas, em que se educa a juventude de uma nação cristã, pode e deve ser entregue à autoridade civil, com a única exceção dos seminários episcopais legalmente excluídos; e deve ser-lhe entregue de tal maneira, que nenhuma outra autoridade tenha direito de intervir na disciplina das escolas, no regime dos estudos, na colação dos graus e na escolha e aprovação dos mestres".

E se tantos educandários católicos passam hoje por uma crise que seria pueril não reconhecer, não será isto, em grande parte, consequência da contaminação do meio ambiente pelos males contra os quais Pio IX advertiu as consciências de seus contemporâneos?

O COMUNISMO E O DIREITO NATURAL

Panteísta, naturalista, racionalista, a Revolução se choca não somente com a Revelação divina, mas com a própria lei natural. Seu último e principal intento é, segundo Leão XIII, "destruir até os fundamentos toda a ordem religiosa e civil estabelecida pelo Cristianismo, levantando à sua maneira outra nova, com fundamentos e leis retirados das entranhas do naturalismo" (Encíclica "Humanum Genus", de 20 de abril de 1884).

Ora, um dos principais instrumentos da Revolução, na fase atual, é sem sombra de dúvida o socialismo, que tem no comunismo soviético sua mais radical expressão, não passando de mero jogo político para embair os incautos o "amolecimento" de Moscou em contraposição com a "linha dura" de Pequim. É ponto pacifico, ademais, que a principal característica do socialismo e do comunismo, como sistemas político-econômicos totalitários, é a negação parcial ou total do direito natural, conforme se trate de um regime que se apresenta disfarçado ou que mostra escancaradamente o que é. Pio IX na Encíclica "Qui Pluribus", de 9 de novembro de 1846, "sobre os erros contemporâneos e o modo de combatê-los", assim se refere a esse flagelo que já entrevia para os filhos de Deus: "Tal a nefanda doutrina do comunismo, contraria ao direito natural, que, uma vez admitida, lança por terra os direitos de todos, a propriedade, a mesma sociedade humana". E a alavanca predileta da Revolução para pôr de lado o direito natural é o princípio do sufrágio universal, que faz dos corpos legislativos organismos absolutistas, infalíveis e intangíveis. Já em 1864 Pio IX denunciava mais esse embuste da Revolução, através da proposição condenada pelo "Syllabus" sob n° 60 (extraída da Alocução "Maxima Quidem"): "A autoridade não é senão a mera soma do número e das forças materiais".

NEM SE FALE EM QUESTÃO DE CONSCIÊNCIA

Ao legislador plasmado pela Revolução não repugna tripudiar assim sobre o direito natural, pois "é preciso não reconhecer outras forças senão as que residem na matéria, e todo sistema moral, toda virtude, hão de consistir, sem reparar nos meios, no aumento progressivo das riquezas e na satisfação das paixões" (proposição condenada pelo "Syllabus" sob n° 58 e extraída da Encíclica "Quanto Conficiamur Moerore", de 10 de agosto de 1863, e da Alocução "Maxima Quidem", de 9 de junho de 1862). Nem se fale em questão de consciência em casos como o do confisco de terras realizado a pretexto de reforma agrária, pois "as leis morais não têm necessidade alguma de sanção divina; nem tampouco é necessário que as leis humanas se conformem com o direito natural ou recebam de Deus sua força obrigatória" (proposição

(continua)