O demônio quis lutar a descoberto contra o perigo que o ameaçava em Lourdes

(continuação)

nervosa que influísse sobre o organismo de modo especial".

TESTEMUNHA DOS PRIMEIROS MILAGRES

Dozous foi também testemunha de alguns dos primeiros milagres. Ele estava presente quando a mãe de Louis Justin Bouhohorts chegou à gruta trazendo nos braços o filho moribundo. Atingido por uma afecção febril não identificada, o menino era inteiramente paralítico desde o nascimento, e ao chegar aos dezoito meses estava às portas da morte. No momento em que o mergulharam na água gelada da pequena piscina já então aberta, Bernadette rezava na gruta. Dozous não tomou outra providencia a não ser marcar o tempo no seu relógio. Quinze minutos e meio se passaram e Louis Justin foi retirado, inteiramente rígido e azulado, daquelas águas frias nas quais tantos doentes seriam mergulhados no futuro, sem jamais apresentar qualquer agravamento dos seus males. Levado de volta para casa, no dia seguinte acordou mais disposto do que nunca. E momentos após, a mãe, que estava em outro aposento, ouviu atrás de si um pequeno ruído. Voltou-se e viu Louis Justin que andava, sem jamais haver aprendido a andar, inteiramente curado, ele que na véspera estivera para ser amortalhado!

Nessa ocasião o ceticismo do nosso médico já estava profundamente abalado, pois este não era o primeiro milagre que ele constatava. Algum tempo antes tinha sido procurado pelo canteiro Pierre Bouriette, portador de cegueira traumática do olho direito desde 1838, quando fora atingido por um estilhaço numa explosão na pedreira em que trabalhava. Do olho apenas lhe ficara um resto que sangrava e transudava continuamente, causando grave incomodo. Em conversa com o médico, Bouriette avisou-o de que iria à gruta, pois ouvira dizer que a água de Bernadette tinha o poder de curar. Movia-o muito mais a curiosidade do que a esperança.

Diante disto Dozous apenas dissera: se voltares curado, acreditarei!

Dias depois o canteiro foi à gruta. Lá estava também a vidente. Ao lavar o resto do olho com a água da fonte, Pierre Bouriette constatou com enorme espanto que podia ver perfeitamente com os dois olhos. Ato continuo, saiu a correr em busca do médico. Tal como os leprosos do Evangelho que não voltaram para dar graças a Nosso Senhor (cf. Luc. 17, 12-19), o miraculado de Lourdes não se lembrou de agradecer à Senhora das aparições, nem a Bernadette, mas voou para a casa de Dozous. Tendo-o visto, de longe, gritou: "Doutor, estou curado!"

O médico já se esquecera da conversa que tinha tido alguns dias antes, bem como da promessa que fizera. Assim que Bouriette se aproximou, disse-lhe: "Não é possível, meu amigo: o que eu te dei não pode curar-te, são apenas gotas para minorar o teu sofrimento e impedir que o teu segundo olho se infeccione". "Mas doutor, respondeu Bouriette, não foi o senhor que me curou, foi a água da pequena Bernadette". Dizendo "Ah, par exemple, je n'en crois rien", Dozous voltou-se de modo a ocultar o que escrevia numa folha de papel, e após tapar o olho esquerdo do seu paciente, disse-lhe que lesse o que escrevera. O canteiro leu então com o seu olho antes cego o seguinte: "Bouriette tem uma amaurose incurável. Não pode ver; nunca verá".

Dozous revelou depois que um raio caído aos seus pés não lhe teria causado um abalo maior do que o que então experimentou.

Com o segundo milagre por ele testemunhado cessaram as últimas resistências da sua incredulidade. Ao mesmo tempo o Dr. Dozous passava para a história como verdadeiro fundador do controle médico de Lourdes, e o primeiro convertido da imensa serie de conversões que a Mãe de Deus ali operaria, e que não seriam registradas no "Bureau des Constatations Médicales", mas no livro dos eleitos.

A epígrafe da obra que publicou alguns anos depois explica por si só toda a história de sua conversão: "J'ai cru, parte que j'ai vu".

COM UM SIMPLES OLHAR...

Se a realidade de Lourdes não é aceita, ou mais ainda, é negada, não é pois, por falta de argumentos e provas convincentes. O obstáculo para aceitar tudo o que ocorreu e ocorre ainda junto à gruta de Massabielle não está nos domínios da razão, mas reside no fato de que aceitar Lourdes significa aceitar toda uma serie de consequências que dai decorrem.

Significa aceitar a Santa Igreja, com a sua doutrina e a sua moral, e conformar-se com uma e outra; significa aceitar a realidade do pecado original e por isso afastar a ideia de que podemos encontrar aqui na terra um paraíso sem males, sem doenças, sem sofrimentos; significa aceitar que Deus é autor de privilégios e quis dar à sua Mãe Santíssima um lugar e um papel eminentíssimo em toda a sua obra, constituindo-a Rainha de todas as criaturas; significa aceitar que os caminhos que o mundo trilha não são os caminhos de Deus e que o remédio para ele está, como a própria Virgem voltou a afirmar em Fátima, na oração e na penitência.

Como tudo isso contraria as máximas do século, Lourdes é negada e sobretudo silenciada — desconcertantemente silenciada — por todos aqueles que, fora ou dentro da Igreja, se deixam seduzir pelo espírito da Revolução.

Por trás de todas as negações e de todos os silêncios esconde-se, é claro, aquele que é por excelência o inimigo de Nossa Senhora. No caso de Lourdes, porém, vale a pena notar que o demônio não pôde conter-se, e quis participar a descoberto da luta para impedir aquilo que lhe iria trazer incomensuráveis prejuízos. Isso ocorreu no início da nossa história, na época das aparições.

Conta Santa Bernadette que durante um dos seus êxtases começou a ouvir vociferações que, vindo do Gave, "interpelavam-se, cruzavam-se, chocavam-se umas com as outras, tal como os clamores de uma multidão em desordem". Sobre esse vozerio cacofônico, ouviu uma voz mais enfurecida que gritava: "Foge!... foge!..." A Senhora voltou um instante os seus olhos para o lugar de onde vinha a atroada. Com este simples olhar impôs silêncio ao inimigo infernal, que, não mais podendo interferir durante as visões, recorreu a outros meios para lançar o descrédito sobre o que ali se passava.

Foi então que começaram a surgir diante da gruta novos "videntes", que não eram outra coisa senão possessos do demônio.

Os infelizes apresentavam-se como outros tantos privilegiados de Nossa Senhora, mas revelavam-se logo pelo grotesco e desvario das suas atitudes e pela própria descrição que faziam das suas visões, as quais muitas vezes tinham aspectos "pouco decentes" e lhes infundiam um vivo terror, obrigando-os a aconselhar a todos que não se aproximassem da gruta.

Também a estes miseráveis a SS. Virgem impôs silêncio. Porém o demônio, inimigo irredutível, não descansa. Assim, periodicamente surgem em Lourdes pessoas que, movidas pelo desejo de aparecer, ou com intuitos malévolos de toda ordem, ou mesmo a serviço de organizações anticatólicas, procuram obter atestados de falsas curas, servindo de um modo ou de outro aos interesses do inferno.

*

Apesar de todos os ataques diretos ou indiretos do demônio, apesar de todos os silêncios dos que fazem consciente ou inconscientemente o seu jogo, Nossa Senhora de Lourdes continua fazendo o bem, e o perfume de sua presença marca ainda hoje todo o ambiente da cidade escolhida para suas gloriosas aparições.

Porque o mundo não quis corresponder à mensagem da Mãe de Deus, o mal concretizado na Revolução acabou de invadir toda a terra. É tempo pois de ouvirmos os apelos da Virgem, de abrirmos nossas almas para a oração, para a penitência.

Neste mês em que comemoramos mais uma festa de Nossa Senhora de Lourdes, peçamos a Ela que de novo faça calar o demônio e todos os que o seguem, para que finalmente se inicie o triunfo de seu Imaculado Coração, conforme a profecia que nos fez em Fátima.


COMENTANDO ...

La Pira faz-se pomba em hora errada

Fabio Vidigal Xavier da Silveira

Ser um democrata-cristão "sinistroso" é uma das maiores infelicidades da vida. É ter uma visão deturpada do Cristianismo, e uma visão errada do mundo. É não conhecer os homens: é julgar menos maus os maus e julgar mal os bons.

É crer numa civilização utópica. É tornar-se marxista sem perceber, através da baldeação ideológica inadvertida brilhantemente definida por Plinio Corrêa de Oliveira. É não desconfiar dos filhos das trevas. É imaginar possível uma paz impossível, qual seja, a paz entre os filhos de Deus e os filhos da Serpente.

É proceder ao contrário do que São Luís Maria Grignion de Montfort diz dos apóstolos dos últimos tempos, filhos diletos de Nossa Senhora, que "fustigarão o demônio e seus asseclas" e "possuirão as asas prateadas da pomba para voar aonde os chame o Espírito Santo".

Interpretando mal, talvez, esta frase, o democrata-cristão "sinistroso" procura ser pomba em hora errada. É pomba diante da Serpente e não diante do Espírito Santo, razão por que acaba sempre devorado. E é serpente contra o católico conservador ou tradicionalista. É pomba quando deveria ser serpente, e serpente quando deveria ser pomba.

É cordeiro cândido que se deixa comer pelo lobo, pois nunca desconfia de que talvez - quem sabe - o lobo possa ter, um dia, por alguns instantes, um movimento mal intencionado de gula. Desconfia, isto sim, do cão que ladra para indicar a aproximação do lobo. Este cão é mau, porque imagina que possa existir um lobo mau.

Lobo mau: isto é terminologia de fábula. Não há lobos maus. Todos os lobos são bons. Todos os homens são ótimos, sinceros, bem intencionados. Não existem homens que queiram destruir a civilização cristã. O que há são algumas ovelhas um pouco desgarradas do redil por um erro de interpretação.

Sobretudo, ninguém tem más intenções (exceto, é claro, os "reacionários").

Ser democrata-cristão "sinistroso", enfim, é expor-se à chacota das pessoas sérias. É viver no perigo iminente de fazer o humilhante papelão que acabam de fazer dois personagens símbolo da Democracia-Cristã Internacional: os Senhores La Pira e Fanfani.

*

O "carismático" Sr. La Pira, o "santo", o "Poverello di Firenze", esteve com a serpente chamada Ho Chi Minh. Manteve com ela um "diálogo" ameno, delicado, agradável, no qual provavelmente não se discutiu nada. Conversaram, talvez, sobre borboletas, sobre o tempo e o panorama. E parece que a serpente manhosa e proteiforme, político ágil e sagaz, teria acenado com a longínqua hipótese de vir, algum dia, a estudar um acordo para a pacificação do Vietnã.

Para o democrata-cristão superatualizado, apóstolo açodado da paz - a paz que o mundo pode dar - nada mais prestigioso do que trazer ao Ocidente uma proposta concreta de pacificação, partida do chefe vietnamita do Norte. Nada mais prestigioso do que ser o instrumento desse acordo suicida que, todos nós o sabemos, jamais seria cumprido por Ho Chi Minh, como já inúmeras vezes outros líderes comunistas deixaram de cumprir acordos semelhantes.

Ora, se um chefe marxista alude remotamente à paz, o democrata-cristão "sinistroso", em sua mente lúcida, transforma o remoto em próximo. Mesmo porque, se alguém fala de paz, é certo que quer a paz. É mais do que certo: é evidente. Pois ninguém pode querer que continue a correr sangue, em qualquer lugar do mundo.

E, precipitado como uma criança a quem se oferece um chocolate, desconhecendo as regras comezinhas da política, da diplomacia, o Sr. La Pira chega ao Ocidente e lança a boa nova aos quatro ventos.

O Sr. Fanfani, por sua vez, informa o Departamento de Estado norte-americano. A imprensa internacional noticia largamente o acontecimento. As atenções se concentram em Ho Chi Minh, e principalmente no Sr. La Pira, que certo estava de com isto se transformar numa vedete internacional.

Mas, de repente, desaba a tempestade imprevista para uma mentalidade irênica: o "bom" Ho Chi Minh desmente. Nada de inesperado, entretanto, para um observador que tenha uma visão normal da realidade e que, portanto, não seja democrata-cristão de sinistra.

Mas - coisa, esta sim, absolutamente imprevisível para um observador lúcido - o Sr. Fanfani se demite. Por quê? Porque sua cândida esposa organizara uma recepção em casa, onde o Sr. La Pira, amigo íntimo de Fanfani, aproveitara a oportunidade para atacá-lo diante de um jornalista.

É demais. Tudo é errado. Tudo é "gauche", tudo é inesperado. Tudo choca o bom senso.

Já é errado o homem ir falar com Ho Chi Minh, exagerando as possibilidades de paz. É errado noticiar antes da hora algo que um estadista serio só noticiaria depois de receber uma proposta concreta e insofismável, e que nunca noticiaria se houvesse a menor possibilidade de um desmentido. Mais errado, ainda, é atacar o amigo na casa do próprio amigo, numa entrevista de imprensa patrocinada pela esposa do mesmo amigo.

*

É cômico, é inverossímil, é ridículo, mas, é original... E é até muito original...

É até um estilo novo de fazer política internacional, poderá passar para a História. No futuro se dirá de um diplomata ingênuo, açodado, cândido, precipitado: ele segue o estilo sinistro-demo-cristão de política internacional.


"Best seller" anticomunista

editado em alemão

Vem de ter lugar, em Blumenau, o lançamento da tradução alemã do ensaio do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, "A liberdade da Igreja no Estado comunista". Assinalando o acontecimento, o Núcleo local da TFP, que promoveu a edição, organizou num dos pontos mais centrais daquela cidade catarinense uma exposição destinada a mostrar a divulgação e a repercussão que o já famoso trabalho vem tendo no Brasil e no Exterior.

A exposição, que durou três dias e foi amplamente anunciada, constituiu um autêntico êxito, pelo número de visitantes que atraiu e pelo interesse que despertou.

Com a nova tradução, o livro do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira atinge 25 edições em sete línguas, num total de 136 mil exemplares. Estão em preparação as traduções em ucraniano e em lituano. A edição em húngaro acha-se no prelo.

"Die Freiheit der Kirche im Kommunistischen Staate" encontra-se atualmente em todas as livrarias de Blumenau e será largamente difundido em todo o Vale do Itajaí, onde predominam brasileiros de descendência germânica.


CALICEM DOMINI BIBERUNT

À sombra de tradições guerreiras

Fernando Furquim de Almeida

Cuneo é uma pequena cidade do Piemonte meridional, muito ciosa de suas gloriosas tradições católicas e guerreiras. Fundada no século XII por ocasião das guerras que assolavam as regiões vizinhas, em 1382 ela se entregou aos Saboias, jurando fidelidade a Amadeu VI.

Situada num altiplano dos Alpes Marítimos, sua posição geográfica e sobretudo a proximidade de fronteira francesa obrigaram-na a se transformar numa fortaleza, muito cobiçada quando o Senhor de Saboia entrava em luta contra a França. É muito legitimamente que a cidade se gloria de ter suportado invicta sete assédios (entre os quais são famosos os de 1557 e 1744) para manter-se fiel aos preitos jurados.

A fidelidade, virtude constante da história de Cuneo, é fruto da formação católica recebida desde o início por seus filhos. Foi à sombra da Igreja que a cidade nasceu, foi a Igreja que na paz lhe animou o progresso harmônico e benfazejo, e na guerra sustentou esse espírito varonil que não temia os sacrifícios para cumprir o dever. E, até hoje, Cuneo conserva os velhos templos onde seus antigos habitantes aprenderam a amar e cultivar a virtude que os distinguiu e que transmitiram a seus filhos.

Depois da batalha de Marengo, Napoleão mandou destruir as muralhas que cercavam a cidade, transformando em ruas e jardins os lugares onde elas se erguiam. Era a Revolução que encerrava uma epopeia gloriosa, procurando extirpar até os vestígios materiais que poderiam relembrá-la. Mas, as igrejas continuaram a recordar essa fidelidade que, durante séculos, através de tantas lutas e sacrifícios, ilustrou a história do pequeno burgo das montanhas.

*

Foi nessa cidade que nasceu, aos 12 de maio de 1759, o Venerável Pio Brumone Lanteri, no mesmo dia batizado na paróquia de Santa Maria dele Pleve. Seu pai, o Dr. Pedro Lanteri, médico conceituado, era muito conhecido pela caridade com que socorria os necessitados, sendo chandado de "Pai dos pobres" pelos seus conterrâneos. Sua esposa, Margarida Fenoglio, era um modelo de mãe católica, colaborando com a graça para os filhos crescerem no amor e no serviço de Deus.

Tendo nascido antes do vendaval revolucionário, Pio Brunome passou a infância num ambiente que ainda conservava todo o perfume de suas gloriosas tradições, o que muito o ajudou a aproveitar a bem cuidada educação católica que recebeu.

*

Um acontecimento decisivo para a sua vida foi o falecimento de sua mãe, quando Pio Brunone tinha apenas quatro anos. Tivera ela dez filhos, dos quais cinco morreram em tenra idade. Viúvo, com cinco crianças ainda por educar, e bem consciente das dificuldades que precisaria enfrentar, o Dr. Pedro Lanteri pediu a Nossa Senhora que substituísse a mãe que seus filhos tinham perdido. Ao longo de toda a sua vida Pio Brunone foi grato ao pai por tê-lo levado aos pés de Maria Santíssima, e costumava repetir as palavras que então ouvira dele: "De agora em diante, terás a Mãe do Céu, a Madona, que será ainda melhor e te concederá todo o bem". Desde esse momento, Nossa Senhora foi para o Servo de Deus a sua única Mãe, orientando a sua vida, guiando-o nas lutas e trabalhos e, ao mesmo tempo, evitando que aderisse aos erros que pululavam na época agitada em que viveu.

Quando chegou a idade escolar, Pio Brunone foi matriculado no colégio cívico de Cuneo. O Dr. Pedro Lanteri, no entanto, não abandonou aos mestres a formação intelectual do menino. Estudava com ele, esclarecia-lhe as dúvidas, e sobretudo impedia que a cultura profana pudesse prejudicar a sua alma. "Meu pai e eu estudávamos até durante as refeições", dizia Pio Brunone aos íntimos nos momentos em que contava episódios de sua vida. Esse mesmo cuidado era dispensado aos outros filhos. O pai só se afastava deles quando o exigiam o exercício da profissão ou os seus deveres de peidade. Não é de admirar que essa verdadeira educação católica conduzisse os três filhos homens ao sacerdócio, que foi o coroamento do zelo e dos sacrifícios que lhes haviam sido dispensados.

O Dr. Pedro Lanteri, entretanto, sofreu a influência dos gostos dominantes em seu tempo, esse século XVIII que preparou o surto científico favorecido e estimulado mais tarde por Napolião. Embora não tivesse um apego exagerado às ciências, tinha veleidades científicas e chegara mesmo a publicar alguns trabalhos de medicina, que foram bem recebidos. Vendo em Pio Brunone um pendor acentuado pela matemática, procurou incentivá-lo nesse estudo, talvez com a esperança de que um dia ele pudesse ocupar uma cátedra universitária. O respeito pelo pai e essa inclinação natural trouxeram não pequenos embaraços ao jovem que sentia despertar em si o chamado para uma entrega total a Deus. A impressão causada pela morte de uma irmã, aos 24 anos, acabou por decidi-lo. Obtido, não sem dificuldades, o consentimento paterno, entrou na Cartuxa de Chiusa Pesio, próxima de Cuneo.

Tinha então, 17 anos, e como era de compleição delicada, a vida austera do mosteiro prejudicou-lhe depressa a saúde, obrigando-o a voltar pouco tempo depois, muito pesaroso, para o mundo. Apesar desse primeiro malogro, não desanimou. Não tinha nenhuma dúvida sobre sua vocação sacerdotal, de modo que, retornando ao lar paterno, comunicou ao Bispo de Mondovi, de quem dependia Cuneo, seu desejo de ser sacerdote. Recebendo dele a necessária autorização, revestiu o hábito eclesiástico a 17 de setembro de 1777.

*

Ao terminar em sua cidade natal, os estudos filosóficos, foi enviado para a universidade de Turim. A Providência preparara os caminhos, de modo que a vocação apostólica de Pio Brunone Lanteri pudesse se revelar nitidamente nessa cidade trabalhada a fundo pelo jansenismo e suas ideias revolucionárias.


NOVA ET VETERA

SOCIALISMO,

DE UM MODO OU DE OUTRO

J. de Azeredo Santos

A Revolução gnóstica vive de confusão e de contradições, indiferente às antinomias contidas em muitos de seus slogans. "Catolicismo" por mais de uma vez já se ocupou desse fenômeno, sobretudo no campo literário e estético, onde se nota mais claramente a aversão da vanguarda dos intelectuais e artistas revolucionários pela filosofia do senso comum.

Trabalha a Revolução por impor à humanidade uma nova "realidade" gnóstica, mas não pode proclamar esse programa do alto dos telhados. Tem de passar sua mercadoria furtivamente, de contrabando. Se é verdade que alguns elementos da extrema esquerda radical fazem praça de espantar e escandalizar os burgueses, no mais das vezes os mentores lúcidos da Revolução empregam, pelo contrário, todo o cuidado em manter sossegados aqueles aos quais sarcasticamente emprestam o papel de guardiães da ordem constituída. Sobretudo, é preciso mistificar a opinião católica, sem o que a Revolução não anda, entrando em irremediável pane no meio da estrada.

Queremos focalizar aqui uma amostra, entre muitas, de tal esforço de mistificação.

Sempre os mesmos clichês

O socialismo, por definição, é sinônimo de totalitarismo. Do mesmo modo que igualmente [igualdade] e liberdade são conceitos que "hurlent de se trouver ensemble", a menos que nos achemos diante da contrafação revolucionaria da verdadeira liberdade, assim também existe uma contundente antinomia entre socialismo e democracia, a não ser que por democracia entendamos, não o que entendem os documentos pontifícios, mas o que por detrás da cortina de ferro recebe derrisoriamente o nome de "democracia popular".

Não admira que o slogan de "socialismo e democracia" ou "socialismo e liberdade" seja amplamente explorado por um certo submundo literário e esquerdista cuja missão é intoxicar a pobre humanidade com jogos de palavras. Mas há também literatos e intelectuais autênticos que por estranhos malabarismos conseguem se manter na corda bamba da Revolução, evitando suas contradições pelo expediente simplista de não entrar em debates doutrinários.

Assim é que podemos fazer as maiores restrições às idéias do Sr. Otto Maria Carpeaux, crítico literário há tempos radicado no Rio de Janeiro, mas forçoso é reconhecer que S. Sa. ainda conserva a tradição da sólida e seria cultura européia, sobrepairando acima da comum mediocridade que impera em certas rodas literárias esquerdistas. Ora, por um recorte do "Correio da Manhã" que nos chegou às mãos, infelizmente sem data, sob o título de "Socialismo e democracia", verificamos que um intelectual com tão boas credenciais também não escapa ao uso dos clichês postos em voga pela Revolução.

Uma grande mistificação

Vejamos a linha mestra do raciocínio do Sr. Otto Maria Carpeaux.

Na Holanda, há pouco, foi formado novo ministério, presidido pelo deputado católico Cals, achando-se as mais importantes pastas confiadas a membros do partido socialista democrático. O mesmo partido governa há muitos anos a Dinamarca, a Suécia e a Noruega. Na Áustria ele pertence há duas décadas à coligação governamental. Na Alemanha Ocidental os socialistas democráticos têm grande eleitorado. O socialista fabiano Harold Wilson é o primeiro-ministro de Sua Majestade Britânica. Na Itália os socialistas estão divididos, mas o líder do PSDI é Presidente da república, enquanto o líder do PSI, Pietro Nenni, é (era, ao tempo do artigo) vice-primeiro-ministro.

Descontando-se uns poucos católicos e outros marginais de todos os países, que o Sr. Carpeaux chama gentilmente de "buona gente", diz S. Sa. que "a imensa maioria da humanidade atual acredita que o futuro pertence, deste ou daquele modo, ao socialismo".

Essa imensa maioria inclui, evidentemente, os milhões de criaturas humanas que deste ou daquele modo se acham escravizadas ao socialismo na Rússia, na China, na Europa de além cortina de ferro e na Ásia de além cortina de bambu, bem como na África de Nasser e de Boumedienne, na Cuba de Fidel Castro, etc.

Um país que se diz democrático como o Brasil, continua o Sr. Carpeaux, devia portanto ficar satisfeito com a existência de um partido socialista democrático. Pois, se se estrangular — como querem alguns políticos — o pequeno partido socialista brasileiro, "então não haverá socialismo democrático no Brasil, mas só o não-democrático", o que o articulista classifica como "erro suicida".

Ora, "socialismo democrático" é não só uma contradição nos termos, mas também uma grande mistificação que conduz exatamente ao totalitarismo de Estado: "Uma sã democracia, fundada sobre os imutáveis princípios da lei natural e das verdades reveladas, será resolutamente contraria àquela corrupção que atribui à legislação do Estado um poder sem freio nem limites, e que faz também do regime democrático, apesar das contrarias mas vãs aparências, um puro e simples sistema de absolutismo" (Pio XII na Radiomensagem do Natal de 1944).

O próprio Sr. Otto Maria Carpeaux reconhece que é o mesmo socialismo que "deste ou daquele modo" será implantado no mundo. O que varia não são os princípios, mas o modo de implantá-los, que pode ser violento ou não. No que diz respeito ao cerceamento da propriedade privada, por exemplo, a diferença que vai entre um e outro modo é idêntica à que medeia entre os processos do assaltante que nos invade o domicilio de metralhadora em punho, e do batedor de carteiras que jeitosamente nos arrebata o fruto de nosso trabalho mediante um abraço. Estamos, em princípio, diante do mesmo crime, cometido no primeiro caso com agravantes que lhe são extrínsecas. Quanto ao resultado, também é sempre o mesmo.

Perda da dignidade

A verdade é que o socialismo, seja de que espécie for, não pode ser concebido sem violência, quer a dos campos de concentração, quer a violência "legal" do moderno absolutismo parlamentar, e representa sempre a perda da dignidade humana: "Esta perda da dignidade humana, inevitável no sistema da produção socializada, julgam-na bem compensada (os socialistas) com a abundancia dos bens que, produzidos socialmente, serão distribuídos pelos indivíduos e permitirão a estes entregar-se livremente a uma vida mais cômoda e faustosa. Em consequência, a sociedade sonhada pelo socialismo não pode existir nem conceber-se sem violências manifestas". Assim escreveu Pio XI na Encíclica "Quadragesimo Anno", e "verba ejus manent in aeternum".

Estas são as fortíssimas razões que o Sr. Otto Maria Carpeaux teria que levar em consideração ao responder aos católicos que se mostram irredutivelmente contrários ao socialismo, seja de que espécie for, e sob que disfarce se apresente para enganar os incautos.