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"CLIMA DE HISTORICISMO EM QUE SE DESVIRTUA TODA VERDADE E TODA NORMA MORAL"

O Cardeal Caggiano censura publicação progressista

Documento de relevante importância e interesse acaba de publicar, sobre a reta defesa da verdade religiosa, o EMMO. CARDEAL ANTONIO CAGGIANO, Arcebispo de Buenos Aires e Primaz da Argentina. Em carta Pastoral datada de 8 de dezembro p.p. e dirigida ao Clero e aos fiéis de sua Arquidiocese, o egrégio Purpurado trata da atuação de alguns Sacerdotes, pertencentes ao corpo redatorial da revista "TIERRA NUEVA", de Buenos Aires, os quais, dominados por "Um afã de atualização da igreja", situaram sua publicação num "clima de historicismo, em que se desvirtua toda a verdade, natural e sobrenatural, e toda norma moral permanente".

O documento apresenta uma síntese dos princípios gerais que regem a defesa do patrimônio sagrado da verdade religiosa e a pregação da palavra de Deus, aplicando-os, em seguida, ao caso concreto de "Tierra Nueva". Pelo seu valor intrínseco e pela atualidade de que se reveste, julgamos oportuno transcrever para os nossos leitores os trechos mais incisivos da Pastoral (acrescentando-lhes subtítulos que não pertencem ao original).

Antes de publicá-la, o Cardeal Caggiano, no desempenho de suas atribuições e deveres episcopais, enviou uma advertência aos responsáveis pela revista, fazendo reparos à sua conduta.

Tutela e defesa da verdade religiosa

"Entre as mais graves preocupações do ministério pastoral de vosso Arcebispo — começa o documento — está a tutela e a defesa da verdade religiosa, cuja importância é essencial na vida cristã e no desenvolvimento da atividade da igreja.

Neste ministério da pregação da palavra de Deus, que engendra a fé e a mantém vigorosa como princípio de vida da esperança e da caridade, os Sacerdotes são meus imediatos colaboradores e cooperadores na unidade de nosso sacerdócio. Entretanto, bem o sabeis, há na Igreja um ordenamento que estabelece condições para participar do ministério da palavra de Deus, oral ou escrito. Nem todos, pelo fato de serem Sacerdotes, têm todas as condições para exercer este ministério. Não somente é necessária a ciência e o conhecimento da fé, mas também requer-se aquele conjunto de condições sem as quais corre-se o risco de conduzir à confusão, à dúvida ou à esterilidade. Clareza e precisão no expor, prudência e unção no transmitir, são requisitos indispensáveis sem os quais não se colaboraria eficazmente com o Bispo da transmissão da mensagem evangélica. Por isso a Igreja faz o Bispo responsável, em última instância, pela pregação e exposição oral ou escrita de seus Sacerdotes, exigindo seu consentimento e autorização para que estes possam fazê-lo retamente. Mais ainda, em problemas difíceis e destinados a repercutir no âmbito religioso, a Igreja exige que os escritos sejam submetidos a prévio exame, a fim de evitar tudo o que possa prejudicar a verdade religiosa contida na Revelação e sujeita sempre ao controle de seu magistério doutrinário.

À margem da autoridade, fora da unidade

Um acontecimento público obriga-me a dirigir-vos também publicamente esta Carta, caros Sacerdotes, Religiosos e fiéis. A dor, a reflexão e a oração fazem-me pesar as palavras, que não tencionam ferir mas iluminar. Entretanto, não poderia calar-me. Na defesa do patrimônio sagrado da verdade religiosa, se é certo que devo ser respeitoso e caritativo para com as pessoas, não o é menos que devo ser claro e categórico em face do erro e dos perigos que levam ao erro.

Apareceu há pouco uma nova revista, "Tierra Nueva", na qual figura um grupo de Sacerdotes jovens como integrantes da "equipe de redação", e outros como "colaboradores permanentes". Não sei se os redatores se solidarizam com tudo o que é publicado, mas, certamente, ao menos os membros da "equipe de redação" são responsáveis pelo fato de que os artigos apareçam ou não, e por suas linhas fundamentais. Em menor proporção são também responsáveis, no que se refere a sua própria colaboração, os Sacerdotes que constam do elenco de "colaboradores permanentes".

"É evidente — observa mais adiante Sua Eminência — que a revista está dominada, desde o artigo de fundo até a última página, por um afã de atualização da Igreja, neste momento histórico. Não poderia isto ser motivo nem de inquietação nem de alarme: em si mesmo, seria aceitável. Mas tampouco pode fazer-se retamente à margem da autoridade doutrinária da igreja e fora de sua unidade, na qual todos os membros devem colaborar, participando cada qual em seu próprio posto de atividade.

Clima incompatível com a fé e a moral

A revista, mais do que em suas frases isoladas — que, com boa vontade, em alguns casos poderiam interpretar-se bem — está situada num clima de historicismo, no qual se desvirtua toda verdade, natural e sobrenatural, e toda normal moral permanente; é o histórico e mutável que se exalta sobre aquilo que é essencial e permanente no dogma e na moral cristã, e na cultura humana. Conduz a este clima de erros, como o comprovam os artigos assinados, a falta de conhecimento sério e profundo da filosofia e teologia católicas, bem como das ciências e culturas hodiernas, às quais se exalta, mas sem nenhum discernimento crítico.

Daí resulta que a característica geral dos artigos é um estilo entre histórico e profético, em que o "homem novo" é quase simultaneamente exposto como realidade e proposto como modelo, numa mescla indefinida em que não se vê o limite entre o "ser" e o "dever ser", como se, deixado a seus naturais impulsos e tendências, o "homem novo" tendesse sempre e necessariamente ao reto e ao melhor. Alternam-se assim nos artigos, assinados também por Sacerdotes, coisas discutíveis em sã doutrina, com outras impugnáveis do ponto de vista da doutrina e da prudência.

Por outro lado, o contexto histórico em que isto aparece, em seguida a um Concílio renovador, poderia fazer crer a não poucos ingênuos bem-intencionados que tudo corresponde a um movimento de sincera renovação, que, por isso mesmo, seria o justo canal de uma autêntica fidelidade à Igreja contra os que não querem aplicar o Concílio.

Infelizmente, porém, não é assim. É erro grave pôr problemas com frases imprecisas e ambíguas, às quais, em termos absolutos, poder-se-ia dar uma interpretação aceitável, mas que a maioria dos leitores, que carecem de uma preparação adequada, entenderá num sentido errôneo ou pejorativo.

Mais grave ainda é levantar problemas ou dúvidas sobre temas fundamentais sem insinuar sequer a reta solução ou via de solução, numa revista destinada a toda espécie de pessoas, porque isso significa, na melhor das hipóteses, desconhecer a humana capacidade de errar, ou atenuar a importância do erro.

Vale dizer que esta maneira organizada de escrever, nas circunstâncias históricas acima assinaladas, com a participação de um grupo de Padres — entre os quais figura quem há pouco desertou de seu ministério e deveres sacerdotais, persistindo, não obstante, na semeadura destas ideias — esta maneira de escrever, dizíamos, colocou um novo problema. Isto cria na juventude católica e no Clero jovem o risco de se ver confundido e desorientado por Sacerdotes que, devendo ser luz e exemplo para a sólida formação das consciências cristãs, parecem haver perdido o senso de ponderação, de cordura e de prudência ao apresentar-se audaciosamente como se fossem profetas da reforma da Igreja.

Tal situação me obriga a assinalar, com provas objetivas, algumas ambiguidades, imprecisões e erros contidos nos escritos de tais Padres".

Por uma cômoda Igreja a-hierárquica

Depois de indicar em "Tierra Nueva" algumas amostras de um linguajar tendencioso, e da "falta de pudor de um filho Sacerdote que lança ao rosto da que chamamos nossa Santa Madre a Igreja, acusações que, se se podem compreender num homem sem fé, são incompreensíveis em quem a tem", o Emmo. Cardeal continua:

"Há, entretanto, exposições mais lamentáveis porque relacionadas com as fórmulas da fé. Ei-las: "Nosso homem desenvolveu uma grande capacidade crítica. Sabe analisar, discriminar, separar, filtrar... Deixou para trás os mundos ingênuos das explicações mágicas, e desta posição enfrenta as fórmulas da fé, os artigos do Credo, as proposições da Igreja". Inferno e Céu, e ademais o Purgatório, Anjos e demônios, pecado original, separação de alma e corpo, e mil outros elementos que configuram o conteúdo objetivo de uma fé, soam a seus ouvidos como contos de fadas ou lendas do passado medieval. De um lado está a consciência do homem, ao qual custa aceitar o mistério, e de outro a apresentação de uma fé necessitada de "REFORMULAÇÃO TOTAL", A PARTIR DOS DADOS DE UMA CULTURA ATUAL QUE ELIMINE OS RESÍDUOS DE INFANTILISMO E O CADUCO CONJUNTO DE IMAGENS QUE ESTES ARRASTAM CONSIGO.

Sublinhei as últimas palavras, que dão a impressão de que a fé precisa de uma reformulação total "a partir dos dados de uma cultura atual", sem referência alguma — sem aludir sequer — às fontes mesmas da Revelação. As verdades dogmáticas deveriam, pois, ajustar-se aos modos transitórios de pensar de cada época: não são verdades absolutas no sentido ensinado pela Igreja. Nesta afirmação há coincidência com o modernismo, salvo no que toca à forma de expressão.

Posta de lado a intenção, estes modos de exprimir-se geram confusão e erro, ou a mantém na maioria dos leitores carentes de estudos teológicos sérios".

Mais adiante observa a Pastoral:

"Com os mesmos métodos acima mencionados procede-se em outros artigos. No que se intitula "Crise moral", a natural tendência a uma maior autonomia da pessoa — à medida que se alcança a maturidade própria do homem, desde a infância à idade adulta — é aplicada à moral em geral, propiciando uma liberdade sem limites conhecidos, ante a autoridade, sob pretexto de que esta impede o crescimento. Não se fala de abusos da autoridade que impedem às vezes o crescimento: fala-se da autoridade. Não é isto a promoção de uma cômoda igreja a-hierárquica? Não resta outra interpretação razoável, quando se anuncia, na contracapa da revista, um artigo que simplesmente afirma que "a autoridade não é senão uma superestrutura, um superego".

Jesus, Divino Fundador da Igreja, foi quem instituiu a Hierarquia. Se se apresentasse a Hierarquia como algo acidental na Igreja, negar-se-ia uma verdade de fé".

Rejeitam toda a cosmovisão tomista

Passando a tratar da cosmovisão adotada por "Tierra Nueva", escreve Sua Eminência:

"Num artigo sobre a filosofia contemporânea e as dimensões do homem novo, e sobre a religiosidade do homem de hoje, afirma-se que "a cosmovisão medieval foi demasiado ingênua e que "por meio de silogismos se acreditava descobrir as propriedades da ordem física". Esta concepção "ficava minada" pelo início da observação científica e pelo aparecimento de novas técnicas. "Esta concepção ingênua do cosmos ia ser derrubada por uma primeira grande vaga de criticismo", "a dúvida metódica de Descartes, a crítica da razão de Kant, as teorias empirístas dos ingleses, o positivismo francês", "tudo levava a quebrar os ídolos da imaginação", "a destruir os supostos raciocínios que, em lugar de conduzir à verdade, afastavam dos fatos reais e impediam todo contato com o mundo da experiência". "A humanidade não voltará a fantasiar sobre o que não pode conhecer com segurança". Em todas estas afirmações falta uma distinção entre o que é permanente nos conhecimentos filosóficos e teológicos e o que é mutável neles e nos conhecimentos científicos.

Não foi toda a cosmovisão medieval que caiu, posto que o que é fundamental e permanente na filosofia e teologia tomista e cristã superou as críticas e foi renovado e atualizado".

Depois de lembrar o que ensinam a respeito da autoridade de São Tomás os Sumos Pontífices e o recente Decreto conciliar sobre a formação sacerdotal, o Cardeal Caggiano adverte:

"A críticas tão incisivas quanto generalizadas à cosmovisão filosófica e teológica medieval, não se segue, entretanto, a crítica aos sistemas modernos e contemporâneos de Descartes, Kant, etc.

Parece antes que nos trabalhos mencionados está subjacente que os sistemas e a concepção religiosa dependem da cultura de cada época — inclusive no que toca ao conceito de Deus — sem distinguir entre a verdade ou não verdade desta concepção (que é permanente) e sua encarnação ou formulação histórica, que pode variar.

Nunca se expõe qual é o conceito de Deus, nem sequer se insinua, alguma vez, que possa haver um critério de verdades permanentes, que, embora possam crescer, como os germes, são, no entanto, imutáveis em sua essência.

Mais ainda, o modo de falar sobre a inteligência é semelhante ao dos filósofos conceptualistas ou anti-intelectualistas, como se ela formulasse esquemas "fora do ser", e com um desconhecimento da verdadeira natureza da inteligência, que atua como uma verdadeira apreensão do ser.

Sem êste valor da inteligência, ignorado nos artigos apontados e em algum outro, em que se afirma: "a realidade histórica está acima de qualquer racionalização acerca do homem", não é possível sustentar verdade alguma de ordem sobrenatural — como são as verdades de fé — e nem sequer de ordem natural, e caminha-se, inexoravelmente, para o ceticismo.

Finalmente, e sempre em linguagem imprecisa, afirma-se que "os argumentos tomistas da existência de Deus deixam na indiferença total o homem contemporâneo". Assim pensavam também os modernistas e neomodernistas.

O autor do artigo completa seu pensamento dizendo: "a religiosidade formará parte unitária com todas as atitudes de sua vida"; "os valores da liberdade criadora fazem-nos sonhar com uma religião humanista". Se bem que estas expressões descrevam o homem contemporâneo, os comentários do articulista pareceriam concordar com ele ao afirmar que "a consciência histórica introduz um certo relativismo cultural. Os absolutos se embaçam um pouco e o homem moderno não crê que as expressões da vida religiosa tenham que ser totalmente idênticas em todos os indivíduos e em todos os povos... sua religiosidade busca uma certa amplitude de compreensão e foge dos exclusivismos, da religiosidade estandardizada, como de receita única de salvação"; e pouco depois acrescenta: "o homem moderno desconfia, por isso, dos moralistas, das prescrições extrínsecas que não fazem referência à interioridade, da catalogação de pecados e virtudes como objetos de laboratório".

Graves palavras de encerramento

O Emmo. Cardeal Primaz assinala que as citações feitas comprovam o que afirmou de início, e observa:

"Sejam quais forem as intenções de seus autores — que não julgamos — é evidente que estas expressões induzem o leitor a um subjetivismo sem normas objetivas de verdade natural e sobrenatural, sem normas permanentes de moral, que provêm não de sua própria consciência, exclusivamente, mas da lei de Deus, natural ou revelada".

"Por estas razões — conclui Sua Eminência — julgamos que este intento de renovação e atualização da Igreja não assinala o caminho reto de uma autêntica fidelidade a Ela mesma. Tal intento surgiu e se concretizou, na referida publicação, à margem da autoridade doutrinária da Igreja, sem seu conhecimento nem consentimento".

Após exprimir, ainda uma vez, seu desacordo e sua reprovação diante dessa iniciativa, que não levou em conta "as obrigações e exigências da disciplina eclesiástica", e depois de advertir que não apenas no campo doutrinário, mas também no pastoral e litúrgico, se manifestam, na Argentina como em outros países, desvios análogos, a Pastoral se encerra com as seguintes palavras:

"Rezemos e esperemos, a fim de que esta advertência e a que vosso Arcebispo já enviou aos interessados possam levar à reflexão perante Deus, e por ela à ponderação, à cordura e à prudência, para chegar à unidade na caridade. Esta é a grande esperança de vosso Arcebispo, que pede ao Senhor que vos abençoe e acompanhe sempre".

Respondem os leigos de "Tierra Nueva"

Diante de uma censura tão precisa e serena, a direção de "Tierra Nueva" não pôde senão recorrer a evasivas. E fê-lo através de uma declaração subscrita por leigos — um diretor e duas secretárias da revista — mantendo-se em absoluto silêncio os Sacerdotes a quem diretamente visava a Pastoral.

A resposta de "Tierra Nueva" não responde a nenhum dos argumentos arrolados pelo Cardeal. Limita-se a contestar que os articulistas tenham incorrido em historicismo, relativismo ou negação da autoridade e da unidade da Igreja. Faz uma profissão de fidelidade à mensagem evangélica, mas reconhece que a revista aparece como "produto e resultado da experiência de um grupo de cristãos, aos quais o contato com a realidade, em todos os seus níveis, levou a sentir a exigência de formular, de uma maneira nova, a sua fé". Em consequência, reputa natural que um primeiro número não estivesse "isento de imprecisões, de defeitos de linguagem, e de ideias não acabadas".

A realidade, porém, é que as censuras feitas pelo Emmo. Cardeal Caggiano não correspondem simplesmente a deficiências de expressão da revista, mas denunciam nela toda uma orientação errônea, que Sua Eminência define com precisão.

A pretendida defesa de "Tierra Nueva" nada defende, e constitui-se em mais uma atitude esquiva; que vem confirmar a acusação de ambiguidade conducente ao erro, que o Cardeal formulou tão justa quão oportunamente.


"DIÁLOGO" NA ESPANHA

CRUZADO ESPAÑOL, a prestigiosa revista Católica que se edita em Barcelona sob a direção do Sr. José-Oriol Cuffi Canadell, reproduziu em seu número 201-204, de agosto-setembro do ano findo, o estudo do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, "Baldeação ideológica inadvertida e diálogo", estampado no número 178-179, de outubro-novembro de 1965, de "Catolicismo".

Traduzido para o espanhol, o texto veio precedido pela seguinte nota: "Constitui uma honra para "Cruzado Español" publicar integralmente o importante trabalho aparecido na revista irmã "Catolicismo", do Brasil, de autoria de nosso bom amigo e grande lutador, o insigne Prof. Dr. Plinio Corrêa de Oliveira. Utilizamos a tradução — cujo texto respeitamos quase totalmente — de nossos amigos de "Cruzada", de Buenos Aires. Recomendamos com empenho a nossos assinantes uma leitura atenta e meditada de tão extraordinário trabalho, que analisa profunda e sistematicamente uma das mais perigosas táticas do comunismo, — tática que, infelizmente, também nós estamos vivendo, através de certas atitudes e de certos periódicos encharcados de progressismo até a medula, e cuja finalidade dir-se-ia corresponder ao objetivo do condenado modernismo, de destruir a fé de nosso povo e até, se possível fosse, a mesma Igreja Santa de Deus".