A pena a Ti se dá do qu'eu errei
Se quando contemplamos as secretas
Causas, por que este mundo se sustenta,
E o revolver dos céus e dos planetas;
E se quando à memória se presenta
Este curso do sol tão bem medido,
Que um ponto só não míngua nem s'aumenta;
Aquele efeito, tarde conhecido,
Da lua na mudança tão constante,
Que minguar e crescer é seu partido;
Aquela natureza tão possante
Dos céus, que tão conformes e contrários
Caminham, sem parar um breve instante;
Aqueles movimentos ordinários,
A que responde o tempo, que não mente,
Co'os efeitos da terra necessários;
Se quando, enfim, revolve sutilmente
Tantas cousas a leve fantasia,
Sagaz escrutadora e diligente:
Bem vê, se da razão se não desvia,
Aquele único Ser, alto e divino,
Que tudo pode, manda, move e cria.
Sem fim e sem princípio, um Ser contino;
Um Padre grande, a quem tudo é possíbil
Por mais que o dificulte humano atino;
Um saber infinito, incompreensíbil;
Uma verdade que nas cousas anda,
Que mora no visíbil e invisíbil.
Esta potência, enfim, que tudo manda,
Esta Causa das causas, revestida
Foi desta nossa carne miseranda.
Do amor e da justiça compelida,
Por os erros da gente, em mãos da gente
(Como se Deus não fosse) deixa a vida.
Ó cristão descuidado e negligente!
Pondera-o com discurso repousado;
E ver-te-ás advertido facilmente.
Olha aquele Deus alto e incriado,
Senhor das cousas tôdas, que fundou
O céu, a terra, o fogo, o mar irado;
Não do confuso caos, como cuidou
A falsa teologia, e povo escuro,
Que nesta só verdade tanto errou;
Não dos átomos leves d'Epicuro;
Não do fundo Oceano, como Tales,
Mas só do pensamento casto e puro.
Olha, animal humano, quanto vales,
Pois êste imenso Deus por ti padece
Novo estilo de morte, novos males.
Olha que o sol no Olimpo s'escurece,
Não por oposição de outro planeta;
Mas só porque virtude lhe falece.
Não vês que a grande máquina inquieta
Do mundo se desfaz toda em tristeza,
E não por causa natural secreta?
Não vês como se perde a natureza?
O ar se turba? o mar batendo geme,
Desfazendo das pedras a dureza?
Não vês que cai o monte, a terra treme?
E que lá na remota e grande Atenas
O docto Areopagita exclama e teme?
Ó sumo Deus! Tu mesmo Te condenas,
Por o mal em qu'eu só sou o culpado,
A tamanhas afrontas, tantas penas?
Por mi, Senhor, no mundo reputado
Por falso, e violador da sacra Lei?
A fama a Ti se põe do meu pecado?
Eu, Senhor, sou ladrão, Tu justo Rei.
Pois como entre ladrões eu não padeço?
A pena a Ti se dá do qu'eu errei?
Eu servo sem valor, Tu imenso preço,
Em preço vil Te pões, por me tirares
Do cativeiro eterno que mereço?
Eu por perder-Te, e Tu por me ganhares
Te dás aos soltos homens, que Te vendem,
Só para os homens presos resgatares?
A Ti, que as almas soltas, a Ti prendem?
A Ti sumo Juiz, ante juízes
Te acusam por o error dos que Te ofendem?
Chamam-Te malfeitor; não contradizes:
Sendo Tu dos Profetas a certeza,
Dizem que quem Te fere profetizes.
Riem-se de Ti; Tu choras a crueza
Que sobre eles virá: a gente dura,
Por quem Tu vens ao mundo, Te despreza.
O teu Rosto, de cuja formosura
Se veste o céu e o sol resplandecente,
Diante quem pasmada está a Natura,
Com cruas bofetadas da vil gente,
De precioso Sangue está banhado,
Cuspido, atropelado cruelmente.
Camões
(Elegia VI)
O SANTO SUDÁRIO DE TURIM
Gustavo Antonio Solimeo
O alvo lençol no qual José de Arimatéia e Nicodemos envolveram piedosamente o Corpo do Salvador depois de o descerem da Cruz, e com o qual o sepultaram, constitui uma das mais preciosas relíquias da Paixão. Enquanto os três Evangelhos sinóticos falam apenas de um pano de linho (Mat. 27, 59; Luc. 23, 53), comprado por José de Arimatéia (Marc. 15, 46), São João se refere a "panos" e a um "sudário", propriamente dito, que esteve sobre a cabeça de Jesus, e que depois da Ressurreição São Pedro achou separado dos demais panos utilizados no sepultamento (Jo. 20, 6 e 7). Isso indica que — como aliás era costume — vários panos, lençóis e faixas estiveram em contato com o Corpo do Senhor morto. Daí resulta que diversas igrejas possam gloriar-se de possuírem autênticos "sudários", tomado êste termo no sentido corrente de "mortalha". Dentre todos, o mais insigne e famoso é o que se venera na Catedral de São João Batista, de Turim, na Capela do Santíssimo Sudário, atrás do altar-mor, onde estão também os túmulos dos Duques de Sabóia.
Segundo parece, foi ele trazido do Oriente no século XII pelo Grão-Mestre da Ordem dos Cavaleiros Hospitalários, que o doou ao Conde Amadeu III de Sabóia. O que é certo é que, depois de passar por várias mãos, foi adquirido em 1456 por Luís de Sabóia. Venerado em Chambéry — onde residiam os Príncipes daquela Casa — até 1578, foi então transportado para Turim, sendo por isso conhecido comumente por Santo Sudário de Turim.
É uma grande peça de tecido fino de linho, medindo 4,36 metros de comprimento por 1,10 de largura. Apresenta dois desenhos de um corpo humano, de frente e de costas, de coloração vermelha enegrecida, e vestígios de fogo, deixados pelo incêndio que destruiu a igreja onde a relíquia era venerada, em Chambéry.
O vulto ali estampado constitui um perfeito clichê negativo, difícil de ler e interpretar como todo clichê. Somente com a descoberta da fotografia é que se pôde constatar toda a sua beleza, através do negativo fotográfico, que nos dá uma imagem positiva do corpo que ele mostra.
As fotos tiradas a partir de 1898 revelam um corpo humano que apresenta feridas de um caráter especial, pois pode-se ver com uma abundância impressionante de pormenores todos os estigmas da Crucifixão, os sinais da Flagelação e da Coroação de espinhos. A vítima de tão terríveis suplícios não passou senão alguns dias envolta nesse lençol, pois a experiência mostra que, do contrário, todas as manchas se teriam espalhado, dando rapidamente um conjunto confuso de imagens.
O que mais impressiona, contudo, no Santo Sudário de Turim é a figura da Santa Face. O rosto que o negativo fotográfico nos apresenta (nosso clichê da 1a página) é, apesar da deformação provocada pelos maus tratos e pela morte, de uma incomparável beleza e majestade. Que obra de arte, antiga ou moderna, nos revela semelhante grandeza e força de alma, doçura e humildade, resignação e tristeza, nobreza e serenidade? Sob o véu da dor e da morte, do sofrimento e da humilhação, vislumbra-se uma integridade, uma retidão moral, uma recusa definitiva de todo o mal.
Não tem faltado quem negue ser autêntico o Sudário de Turim. Não só entre livre-pensadores e incrédulos, mas também — o que é doloroso — entre católicos, a pretexto de objetividade histórica.
É verdade que do ponto de vista histórico a questão da autenticidade apresenta dificuldades ainda não resolvidas, dada a insuficiência dos documentos que chegaram até nós.
Por outro lado, porém, é hoje cientificamente certo que se trata de uma autêntica mortalha de há quase dois mil anos, onde um corpo, depois de ter sofrido os tormentos descritos na narração evangélica da Paixão, estampou sua figura, em negativo, por uma ação físico-química ainda mal determinada. A hipótese vaporográfica do Dr. P. Vignon (escurecimento do aloés usado na unção, por emanações amoniacais do cadáver) parece superada. As imagens relativamente grosseiras que se obtêm experimentalmente levam a crer numa intervenção da Providência para que um processo natural ainda mal definido produzisse no Santo Sudário um resultado tão perfeito. Essas são as conclusões do Dr. Pierre Barbet, que fez detidos estudos da santa relíquia, e demonstrou sua autenticidade do ponto de vista anatômico. O Dr. Barbet, que viu a Mortalha de Turim à luz do dia, sem nenhum anteparo e a menos de um metro, afirma ainda que as marcas das chagas — que, ao contrário das demais, são imagens positivas — foram certamente produzidas pelo sangue que impregnou o tecido (cf. "Les cinq Plaies du Christ — Etude anatomique e expérimentale", 4e. éd., Issoudun, Dillen & Cie, 1948, pp. 9-10 e 56-57).
Acresce que é um argumento de peso em favor da autenticidade dessa grande relíquia a circunstância de apresentar, em negativo, uma impressionante coincidência com os traços que a iconografia católica atribuiu durante séculos à Face do Salvador. Ora, tal semelhança não poderia ter sido forjada, por isso que até a invenção da fotografia, há pouco mais de cem anos, não se conheciam as imagens negativas, e é historicamente indubitável que o Sudário conservado em Turim apresenta há séculos as figuras que nele hoje se veem. Ademais, que artista de eras remotas teria podido fazer uma tela tão perfeita do ponto de vista da anatomia, da fisiologia, da patologia?
Por fim, ao Santo Sudário de Turim pode-se aplicar, ao menos em certa medida, aquilo que São Pio X dizia da Santa Casa de Loreto: para o espírito católico, ainda que não se tenham todas as provas históricas e científicas desejáveis, o fato de ter aquela relíquia, ao longo das gerações, despertado a piedade de tanto fiéis, e edificado a numerosos Santos que a contemplaram, já oferece uma garantia de autenticidade suficiente.
CALICEM DOMINI BIBERUNT
UM DEPOIMENTO SOBRE OS CATÓLICOS ITALIANOS AO APROXIMAR-SE A REVOLUÇÃO FRANCESA
Fernando Furquim de Almeida
Escrevendo de Milão ao Padre Diessbach, em data de 1° de abril de 1783, o Padre Luigi Virginio retrata a situação religiosa da cidade, assim como as preocupações das pessoas com as quais tivera contato. É muito curioso esse depoimento. Revela o estado de espírito dominante entre os católicos italianos nas vésperas da Revolução Francesa, mostrando como estavam pouco preparados para as provas que em breve teriam de enfrentar. Viviam despreocupados. Um ou outro sentiu se um tanto alarmado com a confusão reinante, mas quase ninguém se preocupava senão com seus problemas pessoais ou, no máximo, com aqueles que diziam diretamente respeito à cidade e à diocese, sem se dar conta do vulcão que estava prestes a explodir e arrasar uma ordem de coisas que a todos parecia inabalável:
*
"Desde que cheguei a esta cidade, quase não estive senão com ex jesuítas. A todo momento vejo um deles. Encontram se aqui também alguns [ex jesuítas] espanhóis e americanos, mas não estão em condições de trabalhar, quer pelo desconhecimento do estado moral da região e pela ignorância da língua, quer pelo uso, introduzido há poucos meses ou anos, de não se permitir o trabalho a quem não tenha aqui nascido. Portanto, convém procurar somente os naturais desta região. Ora, estes (deixando de lado alguns que têm emprego semi-profano) são, em geral, de singular probidade, devotamento à Religião, etc. Dedicam se zelosamente à confissão e à pregação, mas, fora disso, não pensam senão no restabelecimento da Companhia, parecendo me um pouco indolentes no resto.
"Penso que isso provém, primeiro, do próprio clima, como explicam os habitantes da região, e eu mesmo tenho sentido os seus efeitos; segundo, da atual confusão, que gera temor em alguns, levando os a esperar para ver que rumo tomam as coisas; terceiro, da falta de notícias sobre a situação moral das outras regiões, a respeito das quais existe suma ignorância; quarto, do fato de ser esta região ainda bastante bem orientada, pois o clero é excelente e o povo muito religioso, razão por que não conhecem outro mal que o desregramento dos costumes e o desordenado amor aos divertimentos.
“É bem verdade que já se notam alguns indícios de jansenismo nos eclesiásticos e de impiedade na nobreza, mas são muito recentes para que seja fácil avaliar todas as más consequências que trazem consigo, conhecer as razões de seu aparecimento e os remédios a serem aplicados.
"Tudo isso não impede a convicção de que, se houvesse alguém para dirigir esses padres, se poderia tirar muito proveito, pois, conservando um grande fundo de boa vontade, certamente alguns, ao menos, se dedicariam às obras boas que lhes fossem propostas, e, como têm o espírito reto e justo, se poderia bastante utilmente fazê los conhecer muitas coisas. Nessa classe se pode colocar um número apreciável de párocos e padres de grande capacidade de coração e de espírito, que trabalham com zelo na vinha do Senhor".
Convém lembrar, a esta altura, que um dos membros de cada Amicizia, o chamado missionário, devia fazer frequentes viagens, quer para incentivar as colônias já existentes, quer para fundar novos grupos. Principalmente para este último efeito, devia estudar as possibilidades das regiões visitadas, procurar ter um conhecimento exato da situação moral reinante e travar conhecimento com o maior número passível de pessoas que pudessem ingressar na associação ou ajudar os amigos cristãos. Essa carta do Padre Virginio é o relatório de uma dessas viagens. Ele fora a Milão com a incumbência de ver se era viável fundar ali uma Aa ou uma Amicizia Cristiana. Deveria primeiro observar, levantar o mapa moral da região e estabelecer contatos, sem falar de nenhuma das associações, para depois ser resolvido em Turim se seria ou não criada a colônia.
*
A descrição do ambiente religioso milanês, feita nessa carta, revela um observador atento e perspicaz. Vivendo numa sociedade que ainda conservava muito de medieval, e em que, pelo menos teoricamente, os homens reconheciam a necessidade de pautar a sua conduta pelos princípios do Evangelho, os eclesiásticos de Milão sentiam dificuldade em desviar sua atenção dessa atmosfera, de relativa ordem e tranquilidade, para os gravíssimos problemas que afligiam a Igreja universal. Restringindo seu apostolado às questões que dependiam de sua ação pessoal imediata, nem cogitavam de opor barreiras à brutal ofensiva revolucionária que estava prestes a se desencadear.
Os fundadores da Amicizia, ao contrário, tinham conhecimento da Revolução nas ideias e sabiam que esta preparava o caminho para as mais profundas transformações. Tinham Consciência da sua universalidade. Sabiam que ela se insinua em cada país de acordo com as circunstâncias, adaptando se para penetrar mais profundamente. Daí uma concepção mais ampla do apostolado, não restrito aos problemas locais, mas atento a todas as aflições da Igreja, para auxiliá la em toda a medida do possível, sobretudo através do estudo aprofundado das causas, manobras e dinamismo da impiedade, para melhor combatê la. Precisavam para isso vencer a cegueira que atingira por toda parte os católicos, tirá los da inércia em que tinham caído e preparar cuidadosamente os amigos cristãos para o trabalho a que se deveriam dedicar.
*
O Venerável Lanteri, depois de ordenado, pôde se entregar completamente a essa obra. Ajudava o Padre Virginio na formação do primeiro núcleo de Turim e o substituía quando ele se ausentava, nas frequentes viagens que fazia para fundar novas Amicizie em outras cidades. A Amicizia de Turim pouco a pouco tomava a forma prevista nos estatutos, e já começava a auxiliar e liderar outras associações, cujas atividades completavam ou podiam facilitar o apostolado dos amigos cristãos.
Entre elas a Aa ocupava um lugar especial. Destinada a amparar os jovens que se preparavam para o sacerdócio, proporcionava a seus membros essa visão mais ampla dos problemas de apostolado. A ela também o Padre Lanteri dedicava boa parte de seu tempo e procurava propagá la. Reservava, no entanto, um cuidado todo especial a uma terceira sociedade, a Amicizia Sacerdotale, exclusivamente destinada a eclesiásticos e, como as outras, secreta.
Não se sabe quando foi fundada a "Amicizia Sacerdotale". Em 1785 ela já existia, reunindo um pequeno número de padres zelosos de Turim. Foi a precursora de muitas outras associações do gênero, que apareceram naquela cidade no século XIX, e que muito concorreram para a boa formação do clero do Piemonte.
NOVA ET VETERA
F. HOUTTART, CÔNEGO, PROFESSOR DE LOUVAIN E COMPANHEIRO DO PADRE CAMILO TORRES
J. de Azeredo Santos
De Santiago do Chile recebemos recorte da revista esquerdista "Ercilla", número de 24 de agosto do ano passado, em que aparece uma entrevista sob o título de "Yo fui compañero de Camilo Torres". O entrevistado é o Revmo. Cônego François Houttart, Sacerdote belga já nosso conhecido, pois é o mesmo que recentemente dirigiu à Santa Sé as mais rudes diatribes por não se enquadrarem em seus esquemas pessoais certas decisões da suprema Autoridade Eclesiástica (ver "Nova et Vetera" — "Religiosos e Cônego criticam àsperamente a Santa Sé", "Catolicismo", n.* 190, de outubro de 1966).
*
S. Revma. é professor de sociologia na Universidade de Louvain e soube criar para si a fama de especialista do "terceiro mundo" e grande conhecedor dos problemas atinentes aos países subdesenvolvidos. Perito do Concílio, ufana-se de ter sido amigo íntimo de Camilo Torres, o Sacerdote colombiano que, depois de secularizado, se fez guerrilheiro comunista em seu país e foi morto num encontro com as forças legais.
O Cônego Houttart, que conheceu Camilo Torres quando êste estudava em Louvain, escreveu certa vez que foi "por causa das vacilações de sua Igreja que ele foi morto nas guerrilhas colombianas" (cf. revista cit.).
No que diz respeito à América Latina, como se não fossem suficientes as calamidades que nos afligem — e que do ponto de vista social e político são decorrência direta de século e meio de laicismo e da consequente instabilidade revolucionária das instituições — vem o Revdo. Cônego belga trazer algumas achas para a fogueira que aqui se tenta, artificialmente, acender em proveito do caudilhismo esquerdista.
Passemos a palavra a S. Revma. A seu ver, a mudança de estruturas — políticas, econômicas, sociais — é um processo comum em todo o mundo atual. Seus interlocutores da revista "Ercilla" desejam saber como acredita ele que a Igreja deva enfrentar essa mudança. Resposta: "Houve uma transformação da Igreja a respeito da mudança. Durante muito tempo encarou-a como algo negativo, algo que não se podia tocar. Concebia-se a sociedade como uma síntese tão perfeita, que não podia mudar. Sem embargo, a humanidade evoluiu inevitavelmente, porque é uma unidade dinâmica. A evolução científica e tecnológica o provou. A mesma coisa se deu com os sistemas econômicos e políticos que a Igreja condenou".
"Se a Igreja — prossegue o entrevistado — encara a mudança como algo negativo, sua atitude será também negativa. Assim foi, inclusive, até o século XIX.
Com o Esquema XIII se concebeu a mudança como algo positivo, e a humanidade como uma unidade dinâmica que tem passado, presente e futuro. Estabeleceu-se que sem mudança não há progresso, que a humanidade se encontra em um processo de mutuação sócio-cultural inevitável".
Sabemos que nem João XXIII, nem Paulo VI, nem o II Concílio Ecumênico Vaticano revogaram a condenação dos funestos princípios liberais e totalitários decorrentes da Revolução Francesa e da revolução bolchevista. Mas para esse professor da Universidade de Louvain a sociologia é uma espécie de cartola de mágico dentro da qual se operam as mais incríveis transformações, tornando hoje aceitável e mesmo desejável aquilo que ontem era condenado à luz da Revelação e da Lei Natural. Avança ele: "Na América Latina não há possibilidade de evolução, de mudança reformista. Temos que caminhar para uma ruptura, e falo em sentido estritamente sociológico. Na Europa foi necessária uma Revolução Francesa, uma Revolução Russa, para realizar essas transformações de que se tinha necessidade. Aqui não podemos esperar solução para estes problemas sem uma ruptura violenta. Violenta quanto à sua profundidade e rapidez, não sangrenta". Seria cômico, se não fosse antes de tudo trágico: ver recomendar um modo violento, mas não sangrento, para a ruptura da ordem política, econômica e social da América Latina, como se não estivéssemos no continente dos caudilhos sanguinários do tipo de Pancho Villa e Fidel Castro.
*
Perguntado pelo repórter de "Ercilla" como se deveria efetuar a mudança recomendada, responde o Revmo. Cônego Houttart: "Pode haver muitas formas de fazê-lo. Não creio que o comunismo seja a melhor. Estive na Cuba de Fidel Castro muitas vezes e conheço bem sua experiência. O caso me parece positivo, mas houve muita perda de tempo, e sua revolução me parece muito custosa do ponto de vista humano". Mais claramente não poderia alguém expor a convicção de que a revolução comunista cubana representa uma conquista positiva, embora não seja o que há de melhor no gênero, pela demora em ser implantada e, quiçá, pelo sangue que fez correr.
A quem compete realizar as mudanças violentas na América Latina? "Isto é muito fácil de responder em teoria, mas não na prática, observa S. Revma. Há muitas entidades chave que poderiam realizar as mudanças, mas sua importância varia em cada país da América Latina. Em alguns casos, poderiam fazê-lo os operários e camponeses organizados em agrupamentos fortes". Salvo exceções como o Chile e a Argentina, não julga ele que os trabalhadores estejam organizados. "Na maioria dos casos, a falta de uma consciência [dos objetivos e dos meios] é geral; e isto ocorre, precisamente, nos países mais conflitivos [sic], como o Brasil, por exemplo, onde o caso é realmente alarmante".
Por onde se vê que para o Revmo. Cônego Houttart a luta de classes tantas vezes condenada pelos Pontífices da Ação Social, é um instrumento perfeitamente legítimo. O problema está em que os operários não querem empreendê-la.
*
Por tudo isto, não resta dúvida que o professor de sociologia da Universidade de Louvain não somente foi, mas ainda é um digno companheiro do lamentável Padre Camilo Torres, que sustentava entre outras coisas, para a mudança da estrutura política na Colômbia, os seguintes princípios abertamente socialistas: "A propriedade da terra será de quem nela trabalha. O governo designará inspetores agrários que entregarão títulos de propriedade aos camponeses que estejam nessas condições, mas procurará que a exploração seja feita por sistemas cooperativos e comunitários, de acordo com um plano agrário nacional, com crédito e assistência técnica. Não se comprará terra de ninguém. A que for considerada necessária para o bem comum será expropriada sem indenização. [...] Todos os habitantes de casas nas cidades e aldeias serão proprietários da casa onde vivem. [...] Os Bancos, hospitais, clínicas, centros de fabricação e distribuição de remédios, companhias de seguro, os transportes públicos, o rádio e a televisão, a exportação dos recursos naturais, serão do Estado" (plataforma apresentada pelo Padre CT no dia 22 de maio de 1965 — apud revista "Paz e Terra", no 1, pp. 257-259). Programa revolucionário no qual o Cônego François Houttart, como sociólogo "engajado", talvez discorde apenas da frase "expropriada sem indenização", pondo em seu lugar o termo técnico "confiscada".
O que é certo é que os comunistas sul-americanos receberam o que os ingleses chamam "a gift from unexpected quarters": um aliado sob as roupagens de Cônego e perito conciliar, que dá a mão a Marx e ignora os Pontífices da Ação Social.