RESPEITOSOS REPAROS
(continuação)
as pessoas que o têm na conta do homem de esquerda, ou — segundo disse S. Excia. — de comunista.
Dessa corrente assevera S. Excia. que "é, sob alguns aspectos, digna de exaltação. Conta em seu seio homens santos, pessoas sábias. Distingue-se por uma fé ardente. Inclina-se constantemente para um moralismo rigoroso. Chega algumas vezes a se assemelhar ao antigo maniqueísmo, que empolgou o próprio Santo Agostinho durante certo período de sua vida".
Surpreendentemente, o Sr. D. José de Medeiros Delgado a esta altura desvia seus olhos do cenário cearense, e passa a denunciar [os] assim chamados integristas no mais alto cenáculo da terra. Para S. Excia. Revma., havia toda uma corrente integrista no Concílio: "No Concílio Vaticano II [ essa corrente integrista ] teve uma atuação digna de melhores causas, mas contribuiu para se dar a alguns assuntos uma redação mais perfeita, evitando-se, portanto, interpretações futuras, contrárias à mente da maioria dos padres conciliares".
Em que o integrismo se diferencia da sã doutrina católica? Mais precisamente, que é o integrismo? A explicação de S. Excia. contém algumas expressões amáveis mas doutrinariamente vagas e inclui uma insinuação ultrajante. O maniqueísmo é uma heresia execrável tanto do ponto de vista doutrinário quanto moral. Ele jamais chegou a empolgar Santo Agostinho, mas apenas exerceu sobre este um atrativo passageiro. Tal se deu, porém, antes da sua conversão. Para um católico, é altamente desonroso ter qualquer coisa em comum com as doutrinas do torpe Manés. Seria preciso que S. Excia. explicasse em que o integrismo "chega algumas vezes a se assemelhar ao antigo maniqueísmo". Pois a acusação assim feita no ar carece totalmente de provas e pode ser entendida no pior sentido pelo leitor. O "moralismo rigoroso" que o Exmo. Arcebispo atribui ao integrismo parece ser, no entender do S. Excia., o ponto de contato entre este e o maniqueísmo. O rigorismo maniqueu era hipócrita, e velava uma completa deterioração da vida espiritual. Em que o rigorismo atribuído por S. Excia. Revma. ao integrismo também é hipócrita e participa dessa abominável força de deterioração?
Em tudo isto, as "Conversas Avulsas" são omissas. Limitam-se a difundir insinuações.
Entretanto, o que é especialmente grave é que desta feita a pesada acusação atinge de cheio as fileiras do Episcopado. Como ninguém ignora constituiu-se durante o Concílio Vaticano II uma corrente que lutou com altanaria e eficácia contra certas inovações doutrinárias. À testa desta corrente figuravam Prelados de grande valor, entre os quais Mons. Luigi Carli, Bispo de Segni, o Arcebispo Mons. Marcel Lefebvre, Superior Geral dos RR. PP. do Espírito Santo, bem como — e com quanta projeção — D. Geraldo de Proença Sigaud e D. Antonio de Castro Mayer... Precisamente dois Bispos contrários às reformas de base.
Pois bem, para o Sr. Arcebispo de Fortaleza toda esta corrente de Bispos é integrista, e portanto maniqueizante.
Prossegue o Sr. D. Delgado: "O mal dos que seguem a referida corrente está na facilidade de condenar o próximo. Os mestres nem sempre são bem interpretados pelos discípulos".
A julgar pela citação acima, este mal não é só dos integristas maniqueus, mas também dos que tacham o próximo de integrista e maniqueu sem o menor fundamento.
Concluindo
Estes são os principais reparos que, na justa defesa de "Catolicismo", da TFP e, por conexão, das demais personalidades e movimentos alvejados pelas "Conversas Avulsas" do Venerando Arcebispo de Fortaleza, me cabe fazer.
Em resumo, depreende-se de quanto ficou dito que S. Excia. Revma., num gesto que só se pode explicar em momento de paixão, deu a público — contra as personalidades e entidades representativas do que considera a "massa damnata" dos integristas adversários das reformas de base — uma série de acusações sem prova, e de suspeitas nascidas dos diz-que-diz.
Uma acusação pode caber em meia dúzia de palavras. A defesa correspondente exige por vezes laudas inteiras. É o que explica que infelizmente tenhamos sido obrigados a dar à presente defesa tão grande extensão.
Pedimos a S. Excia. o Sr. D. José de Medeiros Delgado que veja em tal extensão, não o desejo de dar desnecessária amplitude ao assunto, mas apenas o resultado da contingência em que nos pôs, em vista do número e da gravidade das acusações e das suspeitas que inseriu em suas "Conversas Avulsas".
Amamos entranhadamente a concórdia dos espíritos, de modo particular quando se trata dos ambientes católicos. Entretanto, não somos dos que consideram as discussões doutrinárias entre irmãos na fé uma catástrofe ou uma vergonha. A Igreja militante vive num vale de lágrimas. E as vicissitudes desta vida já criaram no passado, como criam no presente, e criarão até o fim do mundo, situações em que a divergência das opiniões torna inevitável a discussão, mesmo entre os católicos. Em tais discussões se têm empenhado, em outras eras, personalidades da maior envergadura, Santos, Doutores, teólogos e filósofos. Não pensaram eles que se diminuíssem com isto. Ou que trouxessem para a Igreja qualquer desdouro. Nem julgaram que o modo de resolver os problemas consistisse em os abafar no silêncio para evitar a discussão. O que eles procuraram, isto sim, com o maior empenho, foi evitar quanto possível que ao nobre terçar dos argumentos doutrinários se juntasse o rumor turvo e confuso das retaliações pessoais o dos diz-que-diz.
Particularmente em nossa época, este empenho tem todo o seu valor. Abrindo o diálogo com os nossos irmãos separados, hereges, judeus, pagãos ou ateus, o Santo Padre Paulo VI e o Concílio Ecumênico Vaticano II nos convidam, mais do que nunca, ao debate das doutrinas, feito de modo sereno, amistoso e rigorosamente impessoal. Com maior razão este clima deve impregnar as controvérsias entre nós, católicos.
Nosso presente artigo não visa abrir uma discussão e menos ainda uma polêmica. Ele constitui, isto sim, uma defesa que abre caminho para o diálogo.
O diálogo, sim, o diálogo ao longo do qual nos seja dada alegria de poder exprimir continuamente ao Exmo. D. José de Medeiros Delgado todo o afeto e todo o respeito que "in Christo Jesu" tributamos a Sua pessoa sagrada. Se reciprocamente, como não duvidamos, formos objeto de um trato justo e caridoso da parte do ilustre Arcebispo, nosso coração se iluminará de alegria interior. E, ao longo do diálogo, ele cantará as palavras da Escritura: "Ecce quam bonum et quam Jucundum, habitare fratres in unum" ( Sl. 132, 1 ).Com efeito, quão decoroso, quão agradável, quão doce é para irmãos habitarem juntos a casa sagrada que é a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.
TEXTO DAS
"CONVERSAS AVULSAS"
É o seguinte o texto do artigo do Exmo. Revmo. Sr. D. José de Medeiros Delgado, Arcebispo Metropolitano de Fortaleza, publicado em "O Nordeste", edição de 26-27 de novembro do ano passado, sob o titulo acima:
O Concílio Vaticano II abriu novos horizontes ao apostolado dos leigos na Igreja de Deus. As conquistas dos últimos cinquenta anos, devidas à Ação Católica, foram ampliadas de maneira admirável. Os teólogos com suas luminosas e, algumas vezes, árduas discussões, contribuíram muito para isto. Hoje ser apóstolo é de fato uma consequência da vida cristã, como, aliás, já ensinara o S. P. Pio XI. O apostolado continua a ser, em algumas de suas manifestações, resultado de um mandado particular, mas sempre e em toda parte, seja qual for a sua modalidade, é uma decorrência da realidade divina iniciada no batismo de cada um, é atividade assistida imediatamente pelo Espírito Santo que carismatiza o simples cristão a cada instante, independentemente do referido mandado.
Faz-se mister apenas recordar como se deve exercer o dom carismático. Agora, como sempre, é graça subordinada a leis especiais. Os dons carismáticos ficam sujeitos aos apóstolos, aos doutores, aos portadores de dons idênticos também, como os profetas aos profetas, a fim de evitar as anomalias a que os carismáticos andam expostos. Em tudo, o bem comum da Igreja deve ser visado tanto pelo portador do carisma, como pelos que o examinam, uma vez que quem o dá, Deus, assim exige. A graça carismática é sempre concedida não imediatamente em favor da que a recebe, mas em favor dos outros, da Igreja de Deus. Estes critérios são doutrina revelada e tradicionalmente sempre aplicada. A experiência a comprova que todo tempo é lugar.
II
Os Filhos de Deus, portanto, em matéria de apostolado são chamados a criar formas variadíssimas e autônomas de ação apostólica. Os novos tempos clamam pela iniciativa livre neste particular. Os movimentos apostólicos, de ontem e de hoje, com feição puramente leiga são oportuníssimos. Os seus membros, porém, na medida em que gozam de uma responsabilidade direta também se devem convencer que ficam obrigados a uma vigilância e delicadeza muito maiores no respeito devido não somente à hierarquia, mas também aos leigos de outros movimentos.
Não é isto o que sucede algumas vezes. Ainda agora um dos nossos bispos enviou um documento reservado aos seus irmãos no episcopado e alguém o trouxe à imprensa comum o que importa em triunfalismo em uma espécie de ostentação, no caso, em uma aparência de divisão da hierarquia da Igreja. Não há, no caso, divisão, mas liberdade de opção, desde que não se envaideça no campo da fé ou dos costumes.
III
A Propósito do desagradável abuso, no caso, aliás, não identificado como devido aos leigos que seguem e, algumas vezes, ultrapassam o guia a que se ligam, quero lembrar o que sucedeu em Roma com grande desonra para o Brasil católico.
Nas imediações da votação definitiva da Declaração sobre a Liberdade Religiosa, correu, na Cidade Eterna um infame panfleto em que se ameaçava a Papa e os Bispos do mundo inteiro, com o fim do obter efeito contra a aprovação do referido documento conciliar. Pois bem, entre os assinantes do panfleto constava "Catolicismo". Ora "Catolicismo" é um jornal feito no Brasil. Este órgão de imprensa da responsabilidade de um dos nossos bispos tem um similar em Buenos Aires, "Tradición", e outro em Santiago do Chile, "Fiducia". Aqueles dois, algumas vezes, aparecem com os mesmos textos de "Catolicismo". Constavam como "Catolicismo", na lista dos autores do panfleto. O Sr. bispo brasileiro apressou-se em declarar que o seu jornal não era responsável pelo panfleto. Nenhum dos bispos da Argentina e do Chile deu igual declaração. Ficou na mente de quantos acompanham de perto os fenômenos associativos apostólicos da América Latina a dolorosa ideia de que, pelo menos, os movimentos, quando não os jornais que lhe servem de órgãos, estavam solidários com o famigerado panfleto. Em relação ao Brasil a falta de qualquer outra manifestação de parte dos responsáveis leigos pelo movimento ligado à folha "Catolicismo", ainda hoje oferece motivos para que os julguemos com reserva no célebre caso.
IV
Muito fora de dúvida que naquele fato, como agora na publicação em tela não se pode saber com rigorosa segurança qual a parte de responsabilidade dos nossos leigos. Em outros casos, porém, a causa é diferente. Há mais de 10 anos, exemplo, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil ( CNBB ) pronunciou-se favoravelmente às reformas de base, à reforma agrária em particular. Pois bem, os leigos do movimento em exame tomaram a tal respeito atitude gritantemente oposta. Sentiram-no na carne os bispos do Nordeste... O pronunciamento reservado, há pouco divulgado na imprensa de Fortaleza, é um sinal de que entre nós continua a haver alguém empenhado em atirar Igreja contra Igreja, utilizando a hierarquia. Explica-se que os católicos em ação individual e, quando em ação coletiva, de maneira ainda mais delicada, discreta e respeitosa, sigam um bispo da Igreja em matéria livre, como esta em exame, mas não o devem fazer com ostensiva oposição ao bispo, de cada lugar, nem muito menos aos bispos de uma região.
É preciso bastante senso crítico para entender a imprensa diária aqui e em todo o mundo. A tempestade desencadeada, por exemplo, contra o ié-ié-ié, dizem pessoas entendidas, nasce de uma campanha comercial de autores de discos populares que, com o aparecimento dos discos do ié-ié-ié, perderam mercado.
A imprensa, ou melhor os repórteres da imprensa contratada pelos referidos autores, levaram sua fúria propagandista ao ponto de inventar missas cantadas em o tal ritmo, para engrossar o trabalho comercial de guerra entre autores de discos.
Seguindo a mesma linha de propaganda ( é opinião de outros críticos de imprensa ) atribuem-se aos que se ocupam de divulgar tudo quanto se refere aos pronunciamentos dos Srs. bispos brasileiros contrários às reformas de base, principalmente à reforma agrária, puro interesse capitalista. Em favor do jornal "Catolicismo", como em favor de publicações maciças, saídas da corrente ideológico-religiosa da chamada "Igreja Velha", da querida "Igreja Tradicionalista" ( opinam os críticos de imprensa ) colocam-se grandes forças econômicas, máximo no Sul do Brasil.
Não irei me firmar nos juízos em tela ao ponto de os aceitar sem mais exame, cito-os apenas para dar maior atenção ao problema grave da segurança crítica necessária aos que desejam andar com os pés na terra diante do que afirma a imprensa mundial, a imprensa de cada dia em toda parte.
VI
É explicável que em me colocando entre pessoas que utilizam a imprensa diária e a querem também a serviço das causas que abraço, antes que tudo no apostolado que exerço a título legitimo na Arquidiocese, informando aos que se acham entregues aos meus cuidados espirituais, utilize argumentos comuns, como este acima, referentes aos processos críticos de repórteres da imprensa, para precaver os meus diocesanos contra atitudes contrárias ao que penso e ensino, desde que pisei o solo cearense, em assuntos econômico-sociais.
Agora uma outra advertência, esta, ao meu ver, mais concludente e em tudo mais digna de atenção. Os bispos do Nordeste são homens nascidos e vividos no Nordeste. Possuem uma sensibilidade apurada para se pronunciarem acerca dos problemas nordestinos. Em se tratando de problemas do Centro e do Sul não terão jamais a capacidade de julgar de que os bispos daqueles pontos do País são possuidores.
Se de lá levanta-se uma voz, por mais autorizada que seja, contra o que ensinou os irmãos de cá, cumpre-nos examiná-la rigorosamente. Deixarmo-nos embalar na rede de jornais sulinos, talvez interessados materialmente em divulgar o que lhes sabe bem ao paladar de homens que vivem outras realidades econômico-sociais, é expor-se a erros de respectiva, inclusive a injustos julgamentos.
VII
Mal chegava a esta amada terra cearense fui provocado a pronunciar-me em matéria econômico-social, tendo recebido a alcunha de homem de esquerda e até de comunista por parte de adeptos de certa corrente ideológico-religiosa, cujo berço é a França e que se denomina, universalmente, do "integrismo".
A dita corrente é, sob alguns aspectos, digna de exaltação. Conta em seu seio homens santos, pessoas sábias. Distingue-se por uma fé ardente. Inclina-se constantemente para um moralismo rigoroso. Chega algumas vezes a se assemelhar ao antigo maniqueísmo, que empolgou o próprio santo Agostinho durante certo período de sua vida. No Concílio Vaticano II teve uma atuação digna de melhores causas, mas contribuiu para se dar a alguns assuntos uma redação mais perfeita, evitando-se portanto, interpretações futuras, contrárias à mente da maioria dos padres conciliares.
O mal dos que seguem a referida corrente está na facilidade de condenar o próximo. Os mestres nem sempre são bem interpretados pelos discípulos. Há jovens também entro os adeptos de tais ideias. Vemo-los em nome de Deus pensando prestar serviços à Igreja, espalhar notícias contrárias aos seus imediatos superiores hierárquicos. Por ocasião da revolução de março do 1964 chegaram ao cúmulo de denunciar irmãos como comunistas. Apesar de o fato ter sido anunciado já no Evangelho, onde Cristo ensina que pais se levantarão contra filhos e filhos denunciarão pais, o que nos deve impedir de os condenar, como eles nos condenam, vale a pena esclarecer bem as consciências dos que se poderiam deixar conduzir pelas críticas que fazem aos seus pastores.
No caso da divulgação de um documento particular de um Sr. Bispo do Sul contrário ao modo de julgar de irmãos do Nordeste, é meu dever instruir os meus jurisdicionados espirituais a se precaverem contra a corrente integrista brasileira que se infiltrou também entre nós.
VIII
Não lhes reconheço a mínima autoridade de orientadores de consciências, considero-os na ordem jurídico-moral-religiosa suspeitos de apaixonamento ideológico, irrefletidos e ousados, dignos de toda compaixão, mas desaprovados para a ação pastoral na arquidiocese. Não os abençoo como apóstolos. Vejam-nos como simples cidadãos invasores da seara cada vez que se apresentem como evangelizadores.
Estarão bem quando ensinam economia, quando se batem por tradições tais ou quais, falando em nome pessoal, nunca em nome da Igreja, uma vez que se colocam frontalmente em contradição com a hierarquia local.
AMBIENTES, COSTUMES, CIVILIZAÇÕES
A Índia tem saudades dos Marajás
Plinio Corrêa de Oliveira
Ao vistoso turbante formado por um tecido que se dispõe na cabeça de modo aparatoso e algum tanto complicado, não falta uma genuína dignidade. Mas ele seria por demais pesado, se uma delicada "aigrette" não resgatasse com sua leveza este inconveniente. Uma joia formada de rutilante pedraria fixa a "aigrette" no turbante, e acentua a nobreza do junto.
A túnica que chega até os joelhos, feita de um tecido alegre e precioso, é ornamentada por um belo cinturão, e por diversas condecorações.
O personagem se apoia levemente sobre uma espada ricamente adornada.
Passemos agora à análise da sala. A primeira impressão que ela causa é de uma magnificência e de uma exuberância ímpar. À medida que a ela a vista se vai habituando, nota que essa magnificência não resulta de uma profusão desordenada. A sala se compõe, do ponto de vista estético, de várias faixas, harmônicas entre si.
Paralelamente ao chão, as paredes apresentam toda uma "zona" de beleza. Logo acima, outra faixa. Em seguida, até o teto algum tanto arqueado, outra zona. Mas já aí a zona se diversifica de parede a parede, até tocar no teto fabulosamente rico.
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Entre o personagem e a sala há um nexo. Se alguém visse na sala um "beatle", ficaria chocadíssimo. Se nela visse o personagem, acharia que era o fato mais natural do mundo.
E realmente o personagem é o Marajá de Jaipur, e a sala faz parte do admirável palácio dos Marajás de Jaipur em Amber, na Índia.
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A que vêm essas velharias abominadas pelo homem do século XX, dirá algum progressista que nos leia. O povo execra hoje dia coisas destas. Para elas não há sensibilidade na alma do homem hodierno. Mais ainda, elas despertam ódio e sanha de vingança.
A Índia de hoje, diria o leitor progressista, não comporta nenhum resto vivo desta Índia de museu, tradicional e bolorenta. Ela é por inteiro, e unicamente, a Índia modernizada e socialista, de Gandhi, Nehru e Indira.
E precisamente nisto está o interesse da matéria hoje estampada nesta seção.
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A Revolução costuma apresentar o povo como fundamentalmente hostil a todas as tradições, sejam estas boas ou más, justas ou injustas. Com isto, visa ela aniquilar pelo desânimo toda resistência dos adeptos da Tradição. É um embuste a mais, a par de tantos outros dela.
Na realidade, em matéria de Tradição, como em tudo mais, é preciso separar o joio do trigo. Há tradições que merecem sobreviver. E as há que não o merecem: é o caso, na própria Índia, da cremação das viúvas, logo após a morte dos maridos, ou do culto imbecil dos animais sagrados.
Entre as tradições que merecem sobreviver, algumas têm raízes débeis, e podem ser eliminadas sem enorme abalo para a nação. Mas outras há em que não se pode tocar sem desfigurar a própria alma da nação, o seu processo de continuidade, histórica, sua própria identidade consigo mesma.
Sentem-no profundamente muitos povos, apesar de toda a propaganda contra a Tradição, que como um tufão varre o universo.
*
Na Índia dos Marajás, por exemplo, muita coisa haveria que modificar. Mas essa obra jamais poderia degenerar num fazer tabula rasa — na vida da Índia atual — de todos os tesouros de arte, de cultura e de talento da Índia tradicional. Nem em uma substituição sumária e total da Índia grandiosa, lendária e poética plasmada pelos séculos, por um Estado socialista, prosaico e vulgar como é a Índia atual: uma espécie de Índia organizada à sueca, isto é, tudo quanto há de mais paradoxal e anorgânico.
A Índia de hoje são os hindus que hoje vivem. E eles não aprovaram tão radical, indiscriminada e brutal transformação.
O resultado aí está. Depois de uma larga onda socialista, o povo se volta saudoso, para as pessoas representativas do que mereceria sobreviver da Índia de outrora.
De um longo e substancioso despacho do correspondente da AFP em Nova Delhi, datado de 15 de janeiro p.p., destacamos este trecho:
"O líder dos comunistas indianos, comentando a preparação das listas de candidatos para as eleições legislativas do próximo mês, exclamou: "Isto é a restauração! Nunca houve tantos Marajás nas listas como este ano!"
E isto é certo. As notícias procedentes dos diferentes pontos do território indiano coincidem: jamais os partidos políticos do país ( entre os quais não se incluem, naturalmente, os comunistas ) haviam adulado tanto os Príncipes, pequenos e grandes, para obter os sufrágios populares.
Antes de se celebrarem as quartas eleições gerais da Índia independente, já se torna manifesta uma coisa: vinte anos depois de terem perdido seus poderes feudais, a maioria dos seiscentos Rajás que se repartiam em outros tempos a metade da Índia continuam sendo uma força política.
"Grandes Famílias" ilustres que reinavam sobre vastos Estados do Radjastan, do Pundjab e de Madhya Pradesh, e que, na realidade, não deixaram de dominar nunca a política local, e centenas de pequenos Príncipes obscuros voltam ao primeiro plano político".
E a correspondência conclui:
"Não existe na Índia, com efeito, um "Partido dos Príncipes", que representaria a perigosa união dos reacionários e dos feudais. Se existisse um, não haveria outro remédio senão admitir este ano um recuo do Partido governamental do Congresso, que há vinte anos promete a construção de uma democracia socialista na Índia".
De fato, as eleições, realizadas há poucos dias, indicam um forte recuo da esquerda, ao qual corresponde um avanço pronunciado da direita.
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Não é sob o ângulo político que nesta seção analisamos esse curioso fenômeno. Não entramos no mérito da questão da forma de governo. Descartado de seu aspecto político, este reviver da popularidade dos Rajás indica uma reação de alma muito importante do ponto de vista "Ambientes, Costumes, Civilizações". Em suma, o povo hindu está farto do socialismo trivial, rasteiro e sem nenhum voo. E volta-se para a Tradição em busca desta coisa indispensável: altos horizontes para a alma.