“PRAESTA MEAE MENTI DE TE VIVERE”

Qual a autoridade doutrinária dos documentos pontifícios e conciliares?

Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira

“Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra Ela” (Mat. 16, 18). "Eis que estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos" (Mat. 28, 20). "Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; e tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos" (Luc. 22, 32).

Numerosas são as passagens da Escritura em que o Verbo Encarnado ensina a indefectibilidade da Cátedra da Verdade, personificada no Príncipe dos Apóstolos e em seus Sucessores.

Por isso os Santos, num apego cheio de enlevo e de ardor pela Cátedra de Pedro, afirmam que o Papa é o "doce Cristo na terra" (Santa Catarina de Siena), "aquele que dá a verdade aos que a pedem" (São Pedro Crisólogo), aquele que, falando, põe fim às questões relativas à fé (Santo Agostinho).

A infalibilidade dos Soberanos Pontífices e da Igreja é a garantia da Tradição e de tudo aquilo que está contido na Revelação. Não fosse tal garantia, a maldade e a fraqueza dos homens teriam logo deturpado e corrompido o depósito revelado, com o mesmo ódio e com o mesmo ímpeto satânico com que mataram o próprio Filho de Deus.

Hodierno espírito de insubmissão à Cátedra de São Pedro

Na época de subversão de todos os valores, em que vivemos, quando, no dizer de João XXIII, a norma é o antidecálogo, é fundamental conhecermos a amplitude da infalibilidade do Papa e da Igreja. E é fundamental para o católico ter bem nítida a noção de que todas as decisões doutrinárias da Santa Sé, mesmo aquelas que não empenham a infalibilidade, postulam o assentimento tanto externo quanto interno dos fiéis.

Já os modernistas, no tempo de São Pio X, recusavam-se a acatar as decisões da Sé Apostólica que não envolvessem a infalibilidade. Teve por isso o Santo Pontífice de condená-los repetidas vezes (Decreto "Lamentabili", de 4-7-1907; Encíclica "Pascendi", de 8-9-1907; Motu Proprio "Praestantia", de 18-11-1907, etc.).

Também em nossos dias a indisciplina contra o Magistério da Igreja serpeia nos meios católicos.

Recentemente — para exemplificar com um caso entre mil — o Revmo. Pe. Paul-Eugène Charbonneau, reconhecendo que os métodos anticoncepcionais artificiais são condenados por uma tradição ininterrupta que vem de Santo Agostinho a Pio XII, afirmou, no entanto, que "entre o Evangelho e a Moral conjugal, temos a impressão de que estes 16 séculos de repetições colocaram um obstáculo tão pesado que dificilmente poderá ser removido" ("Moral Conjugal...", p. 150).

Para o Pe. Charbonneau, portanto, o Magistério tem deformado, desde o século IV, os princípios evangélicos sobre a moral conjugal.

Extensão da infalibilidade pontifícia

No espírito de muitos católicos de instrução religiosa mediana radicou-se a idéia de que o Soberano Pontífice é infalível em tudo quanto diz. Em outros, encontramos a noção igualmente errônea de que só há infalibilidade nas definições solenes, como a da Assunção de Maria Santíssima.

Outros, ainda, se perguntam: um Concílio Ecumênico é sempre infalível? O Papa pode errar? Tenho obrigação de crer em tudo que ensinaram os Papas ao longo dos séculos? E em todos os documentos doutrinários promulgados pelas Congregações Romanas? E em tudo que ensinam os Bispos, ou pelo menos o meu Bispo? Que diferença existe entre a infalibilidade do Papa e a da Igreja?

Nos limites estreitos deste artigo, analisaremos os pontos fundamentais dessas questões, sem, entretanto, abordarmos os problemas colaterais — e tantas vezes extremamente subtis e complexos — que elas podem sugerir.

É lícito tratar desse tema?

Um católico devoto do Papado, e portanto cioso do caráter monárquico da Igreja, poderia perguntar-nos liminarmente: é lícito versar tais assuntos? Não seria mais piedoso acatar como infalível tudo que ensinam quer os Papas, quer os Bispos?

Responder-lhe-íamos que os fiéis não devem considerar a Igreja como Nosso Senhor não A fez. Se sobre um ponto tão fundamental da doutrina católica pairam dúvidas, é da missão de jornais católicos esclarecê-las, pois a doutrina da Igreja não é esotérica.

Ademais, leva-nos a abordar êste assunto o fato de que, como já dissemos, os progressistas buscam hoje de mil modos diminuir as prerrogativas do Pontificado Romano, e pregam a rebeldia contra os ensinamentos seculares do Magistério, como declarou recentemente Paulo VI:

"[...] muitos encaram o Magistério eclesiástico numa atitude de reserva e com desconfiança. Ao Magistério eclesiástico, alguns quereriam atribuir sobretudo o papel de confirmar a "crença infalível da comunhão dos fiéis". Outros, partidários das doutrinas negadoras do Magistério eclesiástico, quereriam atribuir aos fiéis a capacidade de interpretar livremente a Sagrada Escritura segundo sua própria intuição, que fixamente se pretende inspirada" (Discurso de 11-I-1967).

Portanto — responderíamos ainda a nosso hipotético objetante — o mais piedoso é conhecer a Santa Igreja tal como Jesus Cristo A instituiu. Pretender aperfeiçoar a sua estrutura essencial é querer desvirtuá-La, é querer moldá-La à imagem e semelhança de nosso orgulho. Devemos, pois, conhecê-La, amá-La, admirá-La e reverenciá-La tal qual Ela é, em sua perfeição divina de Esposa de Cristo. E devemos, por outro lado, pôr todo o nosso empenho em enriquecê-La com a perfeição acidental que Lhe traz a santificação de seus filhos.

Magistério pontifício e universal; ordinário e extraordinário

Antes de abordarmos o problema da infalibilidade, cumpre estabelecer algumas distinções fundamentais.

O Magistério eclesiástico deve ser dividido, inicialmente, em pontifício e universal. Magistério pontifício é o do Papa, Chefe supremo da Igreja. Magistério universal é o de todos os Bispos unidos ao Sumo Pontífice.

No Magistério pontifício o Sucessor de São Pedro fala individualmente e por autoridade própria. Por exemplo, através de Encíclicas, Constituições Apostólicas, Alocuções dirigidas a peregrinos.

No Magistério universal, é o conjunto dos Bispos que fala, em união com o Sumo Pontífice, quer estejam eles congregados em Concílio, quer dispersos pelo orbe.

Cumpre absolutamente acautelar-se contra uma concepção errônea do Magistério universal, segundo a qual os Bispos poderiam ensinar independente do Papa. Nada de mais falso. Em vista do caráter monárquico da Igreja, o ensinamento dos Bispos, quer quando reunidos em Concílio, quer quando espalhados pelo mundo, nenhuma autoridade teria se não fosse aprovado, pelo menos implicitamente, pelo Papa. É da união de pensamento com o Soberano Pontífice que o Magistério universal tira toda a sua autoridade.

O caráter monárquico da Igreja é de direito divino, e foi objeto de numerosas definições do Magistério (cf. Denzinger, "Ench. Symb.", 44, 498, 633, 658 ss., 1325, 1500, 1503, 1698 ss., 1821, 2091, 2147-a ) .

Em sua Carta Pastoral sobre Problemas do Apostolado Moderno, D. Antonio de Castro Mayer, Bispo de Campos, tratando do magistério de cada Bispo em sua diocese, ensina que, "sendo o Magistério pontifício infalível, e o de cada Bispo, ainda que oficial, falível, está na fragilidade humana a possibilidade de um ou outro Bispo vir a cair em erro; e a História registra algumas dessas eventualidades" (p. 119).

Outra divisão básica, que é necessário estabelecer, é a que distingue o Magistério ordinário do extraordinário.

No Magistério extraordinário, cada pronunciamento goza de infalibilidade por si próprio. São as definições solenes, como a da Imaculada Conceição, da Infalibilidade pontifícia, da Assunção de Maria Santíssima.

Mas — como adiante veremos — nem tudo que os Papas, os Concílios e os Bispos ensinam é de si infalível. Chama-se ordinário o Magistério nos casos em que não estão preenchidas as condições necessárias para que um pronunciamento seja por si próprio infalível.

Tanto o Magistério pontifício quanto o universal podem ser ordinários ou extraordinários. Temos, pois, quatro modalidades diversas de ensino na Santa Igreja:

Grafico

Na conceituação do Magistério universal extraordinário, é preciso não confundir o sentido que acabamos de atribuir à expressão "extraordinário", com o outro sentido que essa palavra comporta: coisa fora do comum, que foge à rotina de todos os dias. Com efeito, todo Concílio é extraordinário no sentido de que não está permanentemente reunido; mas o seu ensinamento só é extraordinário se define um dogma de fé. No presente artigo só empregaremos a expressão "extraordinário" no sentido de definição solene e infalível.

Entre os teólogos encontra-se a palavra empregada ora num sentido ora em outro, o que nos parece fonte de não pequenas confusões. (Cf. Salaverri, pp. 681-682; Nau, "El Magisterio...", pp. 37-38; Cartechini, p. 42; Lavalette, p. 258).

Preferimos adotar a nomenclatura indicada porque, além de nos parecer mais didática, foi recentemente sancionada por Paulo VI em dois Discursos relativos ao Concilio Vaticano II (cf. Discurso de 7-12-1965, p. 817; Discurso de 12-1-1966, p. 170).

A análoga confusão se presta a palavra "solene", que ora indica o pronunciamento por si próprio infalível, ora o que, ademais, se cerca de fórmulas particularmente solenes. (Cf. Journet, vol. I, p. 534, nota 2; Nau, "Une Source...", p. 65).

Que é um pronunciamento pontifício “ex cathedra”

Analisemos inicialmente o Magistério pontifício extraordinário.

De suas lições de catecismo, todo católico se lembra de que o Papa é infalível quando fala ex cathedra, e em matéria de fé e moral. Fórmula verdadeira, mas que pelo seu extremo laconismo — aliás inevitável — pode induzir em engano, e por isso pede algumas explicações.

Com efeito, que significa ex cathedra? Falar da Cátedra de Pedro é apenas ensinar oficialmente? É dirigir-se à Igreja Universal? As Encíclicas, por exemplo, sendo documentos oficiais, em geral dirigidos a toda a Igreja, são ipso facto pronunciamentos ex cathedra?

Na definição da infalibilidade pontifícia, no Concilio Vaticano I, encontramos a solução cabal para tais dúvidas. A Constituição "Pastor Aeternus" estabelece as condições necessárias para a infalibilidade das definições pontifícias. Ensina que o Papa é infalível "quando fala ex cathedra, isto é, quando, no uso de sua prerrogativa de Doutor e Pastor de todos os cristãos, e por sua suprema autoridade apostólica, define a doutrina que em matéria de fé e moral ,deve ser sustentada por toda a Igreja'' (Denzinger, "Ench. Symb.", 1839).

Os teólogos são unânimes em ver aí a solução do problema das condições da infalibilidade pontifícia. (Cf. Diekamp, p. 71; Billot, pp. 639 ss.; Choupin, "Valeur...:", p. 6; Hervé, pp. 473 ss.; Journet, vol 1, p. 569; Nau, "El Magisterio...", p. 43; Salaverri, p. 697; Cartechini, p. 40).

São quatro, portanto, as condições necessárias para que haja um pronunciamento do Magistério pontifício extraordinário:

1) que o Papa fale como Doutor e Pastor universal;

2) que use da plenitude de sua autoridade apostólica;

3) que manifeste a vontade de definir;

4) que trate de fé ou moral.

A infalibilidade é uma faculdade que reside na pessoa do Pontífice como num ser dotado de inteligência e vontade. Ele usará ou não desse poder, conforme queira ou não.

Na sua vida privada, por exemplo em conversa com amigos ou em carta a um parente, é claro que o Papa não está usando de seu poder de definir. Daí vem a primeira condição: que ele fale como Mestre universal.

Em mais de um documento Bento XIV afirma que não emite tal opinião teológica como Sumo Pontífice, mas como simples doutor privado. O mesmo declarou São Pio X a propósito de afirmações que o Papa faz em audiências privadas (cf. Nau, "El Magisterio...", p. 48, nota 35).

Mas para que haja infalibilidade não basta que o Papa ensine como Mestre universal. Com efeito, é necessário que esteja preenchida uma segunda condição: que ele fale no uso da plenitude de seus poderes. Tal é a importância e a gravidade de um pronunciamento infalível, que é preciso que se torne bem claro que, ao fazê-lo, o Sumo Pontífice está usando da plenitude das prerrogativas que lhe cabem como legítimo Sucessor de São Pedro. É por isso que tanto Pio IX na definição da Imaculada Conceição, quanto Pio XII na da Assunção, declaram que falam "com a autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos Bem-aventurados Apóstolos São Pedro e São Paulo e Nossa".

Ainda isto, entretanto, não basta. Pois, mesmo falando como Mestre universal, e no uso de toda a sua autoridade, o Papa pode limitar-se a recomendar uma doutrina, ou a ordenar que ela seja ensinada nos Seminários, ou a advertir os fiéis do perigo que há em negá-la. Por isso há uma terceira condição: a manifestação da vontade de definir.

Essa vontade de definir falta, por exemplo, nos documentos, que entretanto são tão sábios, positivos e enérgicos, em que os Papas recomendaram ou mesmo impuseram aos professores de Filosofia e Teologia Sagrada o estudo e o ensino do tomismo. Ver, entre outros, a Encíclica "Aeterni Patris", de Leão XIII; o Motu Proprio "Doctoris Angelici", de São Pio X; e a Encíclica "Studiorum Ducem", de Pio XI

A última condição é que se trate de matéria de fé e moral. Deixamos esse item à parte, pois exorbitaria dos limites do presente artigo o estudo dos objetos primários e secundários da infalibilidade. (Cf. Billot, pp. 392 ss.; Choupin, "Valeur... ", pp. 38 ss.; Hervé, pp. 496 ss.; Salaverri, pp. 729 ss.).

Manifestação da vontade de definir

O ponto crucial da questão está na terceira condição: que haja intenção de definir.

Como se manifesta tal intenção? É pelo emprego da palavra "definimos"? É pela excomunhão de quem disser o contrário? É pela natureza jurídica do documento?

Nenhum desses sinais é apodítico (cf. Cartechini, pp. 29, 31, 36, 54). O fundamental é que esteja claro, por qualquer via que seja, que o Papa quis definir um dogma.

Assim é que, nas definições solenes, os Sumos Pontífices acumulam os verbos, para tornar insofismável sua intenção: "promulgamos, decretamos, definimos, declaramos, proclamamos", etc.

Em outros casos, faltarão tais verbos, mas as circunstâncias que cercam o documento mostrarão que houve a vontade de definir. É o que se dá quando o Papa impõe a toda a Igreja que aceite uma fórmula de fé. Ou quando soluciona oficial e definitivamente uma disputa doutrinária surgida entre Bispos, em documento dirigido, de modo pelo menos indireto, à Igreja Universal.

O Magistério universal extraordinário

O Concílio Vaticano I não declarou em que condições um Concílio Ecumênico é infalível. Mas, por analogia com o Magistério pontifício, pode-se afirmar que as condições são as mesmas quatro. Como o Papa, o Concílio tem a faculdade de ser infalível, mas pode dela usar ou não, conforme queira.

Muitos católicos mal informados poderiam aqui nos objetar que sempre ouviram dizer que todo Sínodo Ecumênico é necessàriamente infalível. Não é isso, entretanto, o que dizem os teólogos.

São Roberto Bellarmino explica que é somente pelas palavras do Concílio que se pode saber se seus decretos são propostos como infalíveis. E conclui que, quando as palavras não são claras nesse particular, não é certo que tal doutrina seja de fé ("De Conc.", 2, 12). E, se não é certo, não é dogma, pois, segundo o Código de Direito Canônico, "nenhuma verdade deve ser tida por declarada ou definida como dogma, a menos que isso conste de modo manifesto" (can. 1323, § 3). Ver, no mesmo sentido, Cartechini, p. 26.

Um estudo exaustivo do Magistério universal extraordinário deveria comportar a análise de numerosos problemas que, entretanto, escapam aos limites do presente artigo. A fim de dar ao leitor uma visão mais ampla do assunto, ainda que sumária, enunciamos aqui algumas teses que são pacíficas entre os teólogos não progressistas:

* As decisões conciliares nunca podem ser infalíveis se não tiverem sido aprovadas pelo Papa.

* Um Concílio só é infalível naquilo que claramente impõe como devendo ser crido (cf. São Roberto Bellarmino, "De Conc.", 2, 12).

*Os Concílios de Trento e do Vaticano I quiseram definir não apenas nos seus cânones, mas também nos seus capítulos doutrinários (Cf. Salaverri, p. 816).

Continuidade de um ensinamento no Magistério ordinário

Não se pode definir o Magistério ordinário, quer pontifício quer universal, como sendo o dos ensinamentos que não gozam da nota de infalibilidade.

É verdade que por si só, isto é, isolado dos demais, um ensinamento do Magistério ordinário não envolve infalibilidade. Assim, quando a Encíclica "Ad Diem Illum", de São Pio X, defende a Co-redenção Mariana, nada diz que empenhe a infalibilidade pontifícia. Nesse caso estamos longe, pois, das definições solenes, como por exemplo a da Bula "Ineffabilis Deus", que definiu a Imaculada Conceição, e que por si só fecharia a questão, ainda

Página seguinte