“PRAESTA MEAE MENTI DE TE VIVERE”

NÃO SÓ A HERESIA PODE SER CONDENADA PELA AUTORIDADE ECLESIÁSTICA

Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira

E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam (Jo. 1,5). A este mundo que, pela maldade dos homens, se tornara um abismo de pecados e de erros, Nosso Senhor Jesus Cristo veio trazer a luz fulgurante da Verdade eterna, que é Ele próprio.

As trevas não a receberam, mas na Santa Igreja Ele deixou todos os seus ensinamentos, num depósito íntegro e sem mancha. A doutrina católica é a Jerusalém celeste descida à terra para iluminar as inteligências e mover as vontades. Nessa cidade santa devemos amar e defender não apenas os pontos estratégicos mais importantes, mas cada bastião, cada palácio, cada praça, cada pedra. Pois tudo aí é sagrado, tudo merece ser osculado com amor e reverência.

Em torno dos dogmas, que nos são apresentados pela Igreja com a garantia da infalibilidade, há todo um conjunto de verdades, dispostas à maneira de círculos concêntricos. À medida que elas se aproximam da periferia, sua luz vai-se tornando menos intensa. A doutrina católica se constitui de todas essas verdades, e não de pontos isolados, desconexos entre si. As verdades já conhecidas e definidas iluminam as menos claras, e por sua vez têm o seu alcance mais explicitado por elas.

Não podemos, por isso, estudar uma tese fora do todo, mas devemos colocá-la no lugar que lhe é próprio, onde ela receberá toda a luz das demais, e completará o panorama do conjunto. Não podemos estudar apenas os dogmas, dizendo que somente eles nos interessam e nos bastam, mas devemos vê-los ao lado das verdades que lhes são conexas, que deles decorrem, e que até, de algum modo, os elucidam naquilo que é acessível à nossa razão.

Não poderia ter verdadeiro conhecimento de Maria Santíssima, por exemplo, quem estudasse apenas os dogmas marianos, deixando de lado os numerosos privilégios da Mãe de Deus ensinados pelos Santos e Doutores mas ainda não propostos pela Igreja como revelados.

Dado, contudo, que vivemos num vale de lágrimas e de pecados, ao lado da contemplação enlevada da Revelação cumpre mantermos a atitude combativa e vigilante do bom soldado. As trevas da heresia a todo momento ameaçam o dogma. E em torno delas existem também círculos concêntricos em que a obscuridade se vai tornando cada vez menos intensa. Em não poucas circunstâncias o erro pode parecer verdade, a obscuridade pode parecer luz.

Por isso mesmo, tais erros disfarçados, semi-ocultos e freqüentemente insinuantes, são em geral mais perigosos do que a heresia declarada. Contra eles é necessário prevenir os espíritos, especialmente em nossos dias, quando os mais graves desvios campeiam em meios católicos.

As censuras teológicas: seu conceito e importância

Ao longo dos séculos, a Igreja elaborou minuciosas classificações desses meios-erros que circundam o erro total e confessado. Encontramo-las no estudo das chamadas censuras teológicas. Conhecê-las é armar-se de um instrumento subtil e eficaz para desmascarar a heresia em sua forma ainda larvada.

A censura teológica é um juízo ou uma sentença pela qual uma proposição ou doutrina nociva à fé é marcada com uma nota que exprime a que título ela é condenável (cf. Tanquerey, p. 116). Assim, uma proposição é censurada como herética se contraria frontalmente um dogma; como perigosa se traz perigo para a fé; como escandalosa se causa escândalo ao povo fiel, etc.

No presente artigo desejamos dar ao leitor uma visão geral do que são as censuras teológicas, sem todavia entrarmos nos aspectos técnicos muitas vezes complexos que a questão apresenta. Com efeito, existe entre os teólogos grande diversidade de nomenclatura e de conceituação no estudo das censuras teológicas (cf. Tanquerey, pp. 116 ss.; Hervé, vol. 1, pp. 503 ss.; Mors, pp. 194 SS.; Salaverri, pp. 805 SS.; Cartechini, pp. 8-9).

Não entraremos nas disputas de ordem sistemática, a não ser em um ou outro ponto de particular importância para compreensão de problemas de nossos dias.

Para evitar certas divergências fundamentais existentes entre os autores, e que não nos seriam de interesse, tomaremos por base de nossa exposição a nomenclatura e as definições apresentadas por Tanquerey, o qual além de claro e sintético, é geralmente indicado como um dos bons expositores deste assunto.

Antes de passarmos à análise das afirmações que circundam ou insinuam o erro, digamos uma palavra sobre as proposições heréticas, que são aquelas que frontalmente contrariam uma verdade revelada e infalivelmente proposta pela Igreja à crença dos fiéis.

Proposição herética

Segundo o cânon 1325, herege é aquele que, depois de batizado, e conservando o nome de cristão, nega ou põe em dúvida, com pertinácia, uma verdade que deve ser crida por fé divina e católica.

Analisemos ràpidamente os diversos elementos contidos nessa conceituação canônica (cf. Genicot, p. 154).

O herege é batizado e se diz cristão. Quem não é batizado, como um judeu, ou quem apostatou do Cristianismo, não pode ser considerado herege propriamente dito.

É preciso pertinácia em negar urna verdade de fé, para cair em heresia. Se alguém, por pura ignorância, afirma por exemplo que o Espírito Santo procede só do Filho, e não do Padre Eterno, não é por isso herege. Advertido, logo retificará sua afirmação.

É herege quem nega uma verdade de fé divina e católica. Verdade de fé divina é aquela que foi revelada. E verdade de fé católica é aquela que é proposta pela Igreja aos seus filhos como devendo ser crida. Assim, se alguém se atreve a negar que o Concílio de Trento foi autêntico Concílio, não é herege, pois na Revelação nada está diretamente afirmado a respeito. E se São Bernardo, por exemplo, negava a Imaculada Conceição, não incorria por essa razão em heresia, pois no seu tempo a Igreja não propunha essa verdade como devendo ser crida pelos fiéis.

Finalmente, para ser herege não é necessário negar uma verdade de fé divina e católica, mas basta dela duvidar, com pertinácia. Pois quem incide em tal dúvida "julga, quer formal, quer virtualmente, que um dogma proposto pela Igreja é incerto, e, portanto, impugna a autoridade da Igreja" (Genicot, p. 155).

Sobre o conceito de heresia impõe-se uma observação de ordem técnica. Nos meios católicos em geral é muito difundida a noção de que só é herética a proposição que contradiz um dogma solenemente definido pela Igreja, como o da Infalibilidade pontifícia ou o da Imaculada Conceição.

Ora, essa noção é falsa. Segundo a unanimidade dos teólogos, tanto é heresia a negação de uma verdade revelada e definida solenemente, quanto a negação de uma verdade revelada e proposta como tal pelo Magistério ordinário e universal.

A razão é clara: como já expusemos em artigo anterior ("Qual a autoridade doutrinária dos documentos pontifícios e conciliares?" — in "Catolicismo", n.° 202, de outubro p.p.), não é só o Magistério extraordinário que é infalível, mas também o ordinário pode vir a sê-lo. O I Concílio Vaticano foi claríssimo a respeito (cf. Denz., 1792). Logo, se um dogma pode ser proposto pelo Magistério ordinário, pode também haver heresias contra verdades não definidas solenemente.

Tal nos parece ser a importância deste ponto, que queremos apresentar ao leitor interessado em maiores aprofundamentos uma bibliografia mais abundante: Diekamp, pp. 14, 78; Hervé, Vol. 1, p. 504; Tanquerey, p. 117; Prümmer, p. 367; Muncunill, p. 446; Genicot, pp. 154, 155; Vermeersch-Creusen, p. 314; Mors, p. 194; Vagaggini, cols. 1794 ss.; Berthier, p. 49; Salaverre, p. 815; Piolanti, "Herejía"; Cartechini, pp. 8-9, 23.

Como explicar que, ante a clareza com que os autores tratam do assunto, se possa ter insinuado entre numerosos católicos a noção de que só é herege quem nega uma verdade definida solenemente por um Papa ou um Concílio?

Deixando de lado as razões não especulativas que possam ter contribuído para o fato, queremos lembrar (cf. nosso artigo anterior) que certas imprecisões de linguagem são responsáveis por graves mal-entendidos nessa matéria.

Um exemplo: alguns autores dizem que a heresia se opõe a uma verdade de fé definida como tal pela Igreja, mas não esclarecem que essa definição pode ser feita pelo Magistério ordinário (cf. Parente, "Censura teológica"). Ora, como adverte a "Enciclopedia Cattolica", "por dogma definido alguns entendem, de modo pouco próprio, definido pelo Magistério extraordinário" (Vagaggini, co1. 1795).

O alcance prático da reta conceituação de heresia é enorme. Não parece admissível, por exemplo, que hoje em dia se possa negar a Co-redenção mariana, ou a Mediação universal, ou os princípios fundamentais da propriedade privada, sem cair em heresia (cf. nosso artigo citado).

Cumpre aqui observar que, quando afirmamos que uma proposição é condenável — quer como herética, quer como merecedora de uma censura menos grave — estamos, no presente artigo, considerando a proposição em si, no seu sentido objetivo. Julgamo-la em função do que nos ensina a Igreja nos seus dogmas e em todo o acervo riquíssimo da doutrina católica. Colocamo-nos, portanto, num ponto de vista fundamentalmente dogmático, e não moral ou canônico.

Com efeito, se alguém defende uma proposição condenável, cabe perguntar que pecado está cometendo. Esse seria o problema moral, no qual se deveria considerar se a pessoa labora em ignorância, se é contumaz, etc.

O problema canônico consistiria em saber que penas deveriam recair sobre quem admitisse alguma dessas proposições condenáveis.

As referências que façamos a aspectos morais e canônicos da questão serão apenas incidentais, visando um melhor esclarecimento do aspecto dogmático.

Proposições indiretamente opostas à fé

Somente a proposição herética contradiz frontalmente um dogma. Mas há diversos tipos de proposições que, indiretamente, se opõem à fé. Destas, os teólogos costumam enumerar três grandes categorias: 1 — aquelas cujo conteúdo exprime uma doutrina oposta à fé; 2 — as que são censuráveis pelo modo como são formuladas; 3 — as que o são pelos maus efeitos que podem produzir (Cf. Tanquerey, p. 117; Hervé, Vol. 1, p. 503; Parente, "Censura teológica").

Analisemos em poucas linhas cada uma dessas três categorias.

■ 1 — Uma afirmação, mesmo que não chegue a ser herética, pode trazer no seu bojo algum erro, claro ou disfarçado. Pertencem a essa classe, por exemplo, as proposições próximas à heresia, as que têm sabor de heresia, as errôneas, as próximas do erro, as que têm sabor de erro, as temerárias (cf. Tanquerey, pp. 117-118).

■ 2 — Mas, por outro lado, pode-se afirmar de modo inconveniente até mesmo uma verdade. Tais afirmações podem dar azo a que a heresia surja ou se alastre, e preparar os espíritos para a aceitação do erro. É por isso que a Igreja condena as proposições suspeitas, as mal sonantes, as ofensivas aos ouvidos pios, as equívocas, etc. (cf. Tanquerey, p. 118 ) .

■ 3 — Outras, enfim, ainda que talvez irrepreensíveis no conteúdo, são, todavia, de molde a produzir efeitos deletérios, e por isso são condenáveis. Nessa classe se enumeram as proposições escandalosas, as cismáticas, as sediciosas, as não seguras, etc. (cf. Tanquerey, p. 118).

No presente artigo, entretanto, não desejamos sobrecarregar a atenção do leitor com distinções de ordem sistemática. Assim, apenas enumeraremos algumas das principais censuras de que uma proposição pode ser objeto, explicando no que consistem e apresentando um ou outro exemplo.

Como é fácil verificar, uma única afirmação pode ser merecedora de várias censuras. Numa mesma frase, por exemplo, pode haver um sabor de heresia, um convite à sedição e uma blasfêmia contra Deus Nosso Senhor.

Proposição próxima à heresia

Uma proposição se diz próxima à heresia quando se opõe a uma verdade ainda não definida, mas que está próxima de o ser.

Exemplo: negar a Imaculada Conceição algum tempo antes de sua definição (cf. Tanquerey, p. 117).

Note-se, nas vésperas de ser definida por Pio IX, a Imaculada Conceição já era doutrina proposta infalivelmente pelo Magistério ordinário. Rejeitá-la, portanto, a essa altura, era cair em heresia, e não apenas estar próximo à heresia. Mas entre o século XII, em que São Bernardo podia negá-la sem merecer censura alguma, e o momento em que ocorreu a definição pelo Magistério ordinário, houve um lapso de tempo em que recusá-la era colocar-se numa posição próxima à heresia. (Sobre a determinação desse lapso de tempo, ver nosso artigo anterior).

Também é denominada próxima à heresia a proposição que "não todos os teólogos, mas muitos, e com bom fundamento, dizem herética" (Cartechini, p. 164).

Exemplo: sem a graça, o homem pode guardar duravelmente todos os preceitos da lei natural, evitando todo pecado mortal.

Tal proposição é próxima à heresia porque muitos teólogos, mas não todos, sustentam que a verdade oposta foi definida pela Igreja (cf. Hervé, vol. III, p. 154, nota 2).

"Sapiens haeresim": proposição com sabor de heresia

Diz-se que uma afirmação tem sabor de heresia ("sapiens haeresim") quando é de tal modo ambígua, que, embora possa ter uma interpretação boa, tudo nela sugere a interpretação má.

Exemplo: a fé justifica (cf. Tanquerey, p. 117).

Essa proposição sugere veementemente a idéia de que a fé justifica sem as obras, o que é uma tese herética dos protestantes.

Alguns autores colocam a proposição que tem sabor de heresia entre as que são condenáveis pelo seu conteúdo (Tanquerey, p. 117; Hervé, vol. I, p. 504; Mors, p. 197; Parente, "Censura teológica"). Outros a classificam como condenável pelo modo inconveniente da formulação (Peinador, pp. 119-120). O "Dictionnaire de Théologie Catholique" põe fim à questão mostrando que tal proposição pode caber numa categoria ou em outra conforme quem a formule seja um herege ou esteja apenas incorrendo numa imprecisão de linguagem (Quiliet, col. 2108).

É fundamental, entretanto, ressaltar que a proposição que tem sabor de heresia é, não a puramente ambígua, mas, no dizer de Tanquerey, aquela que, "sendo equivoca, admite quer o sentido católico quer o herético, de tal modo, porém que, em vista das circunstâncias, prevalece o sentido mau" (p. 117).

Ademais, segundo um velho aforismo jurídico, "verba dubia contra proferentem sunt interpretanda" — as palavras dúbias devem ser interpretadas contra quem as profere.

Todas essas razões explicam que a maior parte dos teólogos, sem aprofundar muito a questão, classifiquem as proposições que têm sabor de heresia entre as condenáveis em virtude de seu conteúdo.

Proposição suspeita de heresia; suspeição e sabor

A proposição suspeita de heresia se aproxima muito da que sabe à heresia. Mas, como bem esclarecem os Salmanticenses (apud Peinador, p. 120), "não negamos que de algum modo se distingam. A suspeição importa num fundamento leve, enquanto o sabor traz um indício grave, dado pela experiência. Assim também, exige-se menos para que uma proposição seja suspeita, do que para que tenha sabor de heresia; para esta segunda hipótese é necessário o concurso de circunstâncias mais numerosas".

Proposição errônea

O que distingue a proposição herética da errônea é que aquela, como vimos, nega uma verdade revelada, e proposta como tal pela Igreja, enquanto a segunda nega uma verdade não revelada mas necessàriamente dedutível de uma verdade revelada (cf. Tanquerey, p. 117). Essa dedução é tão necessária, que negada a conclusão está ipso facto negada a premissa, e afirmada a premissa está ipso facto afirmada a conclusão.

Demos um exemplo: não foi formalmente revelado que a ciência de Nosso Senhor estava imune de qualquer erro (cf. Tanquerey, p. 110). Logo, não é herege quem negue essa verdade. Mas foi revelado que Jesus Cristo é Deus, e daí se deduz necessàriamente que sua ciência não podia conter erro algum. Logo, é errônea a proposição que negue tal verdade.

Para efeitos concretos — perguntaria talvez algum leitor — que diferença há entre a heresia e o erro?

A diferença fundamental está em que a razão do assentimento que dou a um dogma é a autoridade de Deus revelante, o qual não pode enganar-Se nem enganar-nos. Ora, se uma verdade não foi formalmente revelada por Deus, mas se deduz de outra, revelada, o assentimento que a ela dou não é baseado apenas na autoridade de Deus revelante, mas baseia-se também na razão humana, que procedeu à dedução.

Essa diferença tem grande repercussão na ordem concreta: a aceitação de uma proposição herética exclui da Igreja, por ser a negação daquilo que constitui a razão formal da fé, enquanto a aceitação de uma proposição errônea é pecado mortal mas não exclui o fiel da Igreja.

Não cabe nos estreitos limites deste artigo o estudo dos diversos problemas relativos à perda da condição de membro da Igreja, tais como: o herege oculto não está dela excluído? em que sentido se pode admitir a distinção entre corpo e alma da Igreja? quais os efeitos jurídicos da heresia manifesta? qual o alcance da excomunhão? (Ver, a respeito, Salaverri, pp. 878 ss.; Penido, pp. 169 ss.).

Diz-se também errônea a proposição que nega um fato dogmático, isto é, um fato tão intimamente conexo com verdades reveladas, que não pode ser negado sem a negação implícita de algum dogma. São fatos dogmáticos, por exemplo, a legitimidade do Concílio de Trento; o caráter herético de Nestório, Wiclef, Lutero, etc.; a ortodoxia dos Padres da Igreja; a santidade de uma pessoa que foi canonizada; a invalidade das ordenações sacerdotais da igreja anglicana; o valor santificante das Regras religiosas aprovadas pela Igreja (cf. Cartechini, pp. 110-111).

Não nos ocuparemos, também, de diversas disputas de ordem técnica que dividem os teólogos quanto à conceituação da proposição errônea. Deve-se excluir dessa categoria a negação das chamadas verdades de fé eclesiástica? (Cf. Tanquerey, pp. 110 ss.; Iragui-Abárzuza, pp. 444 ss.; Salaverri, p. 812). Convém subdividir a proposição errônea em diversas espécies? (Cf. Salaverri, p. 815). Deve-se chamar de errônea a proposição que nega uma verdade revelada mas não definida? (Cf. Quilliet, col. 2106).

■ Como já analisamos as proposições próximas à heresia, as que têm sabor de heresia e as suspeitas de heresia, é dispensável analisar as próximas ao erro, as que têm sabor de erro e as suspeitas de erro.

Proposição temerária

A proposição que se opõe às sentenças comumente professadas pelos teólogos se chama temerária.

Exemplo: algum Santo, além de Nossa Senhora, foi concebido sem pecado original (cf. Prommer, p. 367).

Outro exemplo: a maior parte dos homens que levam má vida se convertem no momento da morte, por uma graça especial da Misericórdia divina.

Proposição falsa

Falsa é a proposição que se opõe a uma verdade certa que, entretanto, não se relaciona imediatamente com a Revelação (cf. Peinador, p. 120).

Exemplo: São Luís IX, Rei de França, não lutou contra os maometanos por amor à fé católica, mas por razões meramente políticas.

Essa proposição é falsa do ponto de vista histórico. Imediatamente não diz respeito à Revelação. Mas, tratando-se de um Santo canonizado, que apresentou essas guerras sob uma forte luz religiosa, tal erro histórico se relaciona, de algum modo mediato com a Revelação.

Cumpre relembrar aqui uma observação importante que fizemos de início: freqüentemente uma proposição é condenável a mais de um título. É o que acontece com o exemplo que acabamos de dar. Pois a afirmação de que São Luís IX moveu Cruzadas por motivos políticos não nega, diretamente, senão uma verdade histórica que, como tal, não tem uma relação imediata com a Revelação. Mas insinua várias idéias que ofendem a fé, como, por exemplo, que em nome da Religião não se possam mover guerras. Assim, a proposição em apreço, além de condenável como falsa, o é como suspeita de heresia.

Proposição escandalosa

Escandalosa é a asserção que, embora contenha eventualmente uma verdade, entretanto "oferece ocasião de ruína, fazendo inclinar os ou- vintes ao pecado ou afastando-os do exercício da virtude" (Cartechini, p. 166).

Exemplo: se Deus previu que vós vos condenareis, morrereis em vosso pecado, por mais que façais (Cf. Tanquerey, p. 118).

Proposição mal sonante

Diz-se que soa mal a frase que, embora talvez verdadeira, "é reprovável pelo abuso de palavras tomadas em sentido ou tom diverso daquele que é comumente empregado pelos fiéis" (Cartechini. p. 167).

Exemplo: num súbito movimento de raiva, Nosso Senhor expulsou os vendilhões do Templo. A expressão "súbito movimento de raiva" sugere a idéia de uma paixão desregrada, que evidentemente não podia existir em Nosso Senhor. Empregá-la para designar a cólera santa do Filho de Deus contra aqueles que profanavam o Templo é forçar o sentido natural das palavras.

Proposição ofensiva aos ouvidos pios

As asserções que contêm em si algo que, embora talvez verdadeiro, é indigno ou indecente em matéria de Religião, denominam-se ofensivas aos ouvidos pios (cf. Cartechini, p. 168).

Delas o Pe. Cartechini nos dá, entre outros, os seguintes exemplos: "São Pedro, perjuro e apóstata, rogai por nós"; "no Breviário, a Igreja nos conta fábulas, e não fatos historicamente verdadeiros" (p. 168).

Outras censuras

Tão numerosas são as censuras com que a Igreja e os teólogos qualificam as proposições condenáveis que não podemos pretender definir a todas. O "Dictionnaire de Théologie Catholique" nos informa que "António Sessa, Franciscano de Palermo, contou 69 censuras no século XVII, no seu Scrutinium doctrinarum. E de lá para cá muitas outras vieram engrossar esse número já tão elevado" (Quilliet, col. 2104).

Ademais, em vista das censuras que já analisamos torna-se claro o que vêm a ser as proposições ímpias, as blasfemas, as improváveis, as perigosas, as sediciosas, as não seguras, as capciosas, as contumeliosas não apenas contra a Igreja mas também contra os poderes seculares, as já muitas vezes condenadas, as impuras, as escrupulosas, as cismáticas, as sedutoras dos simples, etc. (cf. Quilliet, cols. 2104 ss.).

O Magistério eclesiástico e as censuras teológicas

Alguém que estivesse mal informado objetaria talvez que as proposições passíveis de censura inferior à heresia não podem ser formalmente condenadas pela Igreja. Tal idéia é muito freqüente em certos meios católicos.

Nada existe, entretanto, de mais falso. Basta abrir o "Enchiridion Symbolorum", para aí encontrar condenações formais incidindo sobre proposições qualificadas pelos mais variados tipos de censuras teológicas.

São Pio V condenou 79 teses de Baio, afirmando que entre elas havia proposições heréticas, errôneas, suspeitas, temerárias, escandalosas e ofensivas aos ouvidos pios (Denz., 1001-1080).

O Bem-Aventurado Inocêncio XI condenou 68 proposições de Molinos como heréticas, suspeitas, errôneas, escandalosas, blasfemas, ofensivas aos ouvidos pios, temerárias, dissolventes da disciplina cristã, subversivas e sediciosas (Denz., 1221-1288).

Alexandre VIII condenou 31 proposições jansenistas como temerárias, escandalosas, mal sonantes, injuriosas, próximas à heresia, com sabor de heresia, errôneas, cismáticas e heréticas (Denz. 1291-1321).

Inocêncio XII condenou 23 proposições de Fénelon, Arcebispo de Cambray, como temerárias, escandalosas, mal sonantes, ofensivas aos ouvidos pios, na prática perniciosas e errôneas (Denz., 1327-1349).

A lista poderia se estender com as condenações dos fraticelli (Denz., 484-490), de Marsílio de Pádua (Denz., 495-500), do Mestre Eckhart (Denz., 501-529), de Wiclef (Denz., 581-625), de Lutero (Denz., 741-781), do Sínodo de Pistóia (Denz., 1501-1599), etc. Mas tais enumerações, longas e fastidiosas já nos seriam supérfluas.

Uma objeção final: censurar não é ofício de leigos

Em face deste quadro das censuras doutrinárias, algum leitor poderia ainda objetar que nada tem a ver com isso, uma vez que é só ao Papa e aos Bispos — e nunca a um simples leigo — que cabe a missão de censurar uma asserção que se oponha à fé.

A objeção não procede. Com efeito, os teólogos, depois de mostrarem que a missão de pronunciar censuras doutrinárias cabe em primeiro lugar ao Soberano Pontífice e aos Bispos, e a todos aqueles que têm jurisdição no foro externo, acrescentam que "os particulares podem, também eles, usar de sua inteligência cristã para apreciar e qualificar livros ou proposições em face da ortodoxia e dos costumes. Essa é uma faculdade e, até certo ponto, um dever de cada um com vistas à conservação, defesa e propagação da fé [...]" (Quilliet, col. 2102).

Por isso, os manuais costumam distinguir as censuras judiciais, que são pronunciadas por uma autoridade eclesiástica, de modo oficial, das puramente doutrinárias ou científicas, que são proferidas por teólogos, gozando portanto da mera autoridade privada de quem as emitiu (cf. Tanquerey, p. 116).

A essas considerações, Dom Antonio de Castro Mayer acrescenta que "a condenação dos erros dos heresiarcas em geral, como Lutero, Jansênio, e mais recentemente os modernistas, foi sempre precedida de uma polêmica esclarecedora travada entre os inovadores e alguns beneméritos defensores da Fé, eclesiásticos ou leigos, agindo sob responsabilidade própria" (p. 65).

Esmagou todas as heresias

"Gaude, Maria Virgo, cunctas haereses sola interemisti in universo mundo", rezamos no Ofício Parvo de Nossa Senhora .(1.a ant. do 3.° not.) — Alegrai-vos, ó Virgem Maria, pois sozinha esmagastes todas as heresias no mundo.

Peçamos a Ela a graça de termos uma fé pura e ardente, sabendo evitar não só a heresia, que a destrói, mas tudo que a possa manchar.

AUTORES CITADOS

BERTHIER, M. S. J. — "Abrégé de Théologie Dogmatique et Morale" Vitte, Lyon-Paris, 1927.

CARTECHINI, S. J., Sisto "Dall'Opinione al Domma" — La Civiltà Cattolica, Roma, 1953.

DENZINGER, Henricus — "Enchiridion Symbolorum" — Herder, Barcelona, 1946.

DIEKAMP, Franciscus — "Theologiae Dogmaticae Manuale" — Desclée, Parisiis-Tornaci-Romae, 1933, vol. I.

GENICOT, S. J., Eduardus — SALSMANS, S. J., Ios. "Institutiones Theologiae Moralis" Desclée, Brugis, 1951, vol. I.

HERVÉ, J. M. — "Manuale Theologiae Dogmaticae" Berche, Paris, 1952.

IRAGUI, O. F. M. Cap., Serapino de — ABÁRZUZA, O. F. M. Cap., Franciscus de — "Manuale Theologiae Dogmaticae" — Studium, Madrid, 1959, vol. I.

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PARENTE, Card. Pietro — Verbete "Censura teológica" in "Diccionario de Teologia Dogmática", Editorial Litúrgica Española, Barcelona, 1955.

PEINADOR, C. M. F., Antonius — "Cursus Brevior Theologiae Moralis" — Coculsa, Madrid, 1950, tomus II, vol. I.

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PIOLANTI, Antonio — Verbete "Herejía" — in "Diccionario de Teologia Dogmática", Editorial Litúrgica Española, Barcelona, 1955.

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■ O primeiro artigo desta série, intitulado "Qual a autoridade doutrinária dos documentos pontifícios e conciliares?" foi publicado no n.° 202, de outubro último, desta folha.