A PROPRIEDADE PRIVADA: COMO PODE SERVIR AO BEM COMUM? QUAL A SUA FUNÇÃO SOCIAL?
DIÁLOGOS SOCIAIS 2
DEVEMOS TRABALHAR SÓ PARA O ESTADO?
Oferecemos hoje a nossos leitores a tradução do segundo fascículo dos "Diálogos Sociais" editados pela Sociedade Argentina de Defesa da Tradição, Família e Propriedade.
Como observávamos ao publicar o primeiro desses fascículos, revestem-se eles, do ponto de vista doutrinário e prático, de transcendental importância.
Realmente, apresentando num resumo substancioso vários temas de doutrina social versados no grande público, fazem-no na própria linguagem em que tais temas costumam expressar-se nas conversas de casa e de rua.
Assim é que os "Diálogos Sociais" colocam ao alcance de todos, sob forma acessível e atraente, assuntos que, expostos à maneira de tratado, pareceriam demasiado profundos e por isso mesmo repeliriam muita gente.
A oportuna iniciativa da TFP argentina oferece, pois, aos leitores os meios de desenvolver um apostolado realmente eficaz junto às pessoas de seu convívio.
* * *
Bernini: um velho político, que não crê em Deus, mas pretende basear suas teorias revolucionárias nas Encíclicas dos Papas. Deputado radical ao Congresso da província, há vinte anos atrás.
Sanábria: Um fazendeiro tradicional que defende com energia os seus direitos, mas se sente um tanto desconcertado ante os argumentos “teológicos” de Bernini.
Fernando: um jovem e entusiasta leitor de "Cruzada" — a revista em que militam elementos da TFP argentina — com sólido conhecimento da doutrina social católica, rebate eficazmente as falácias de Bernini.
A Calle General Rodriguez, em Tandil, cidade da província argentina de Buenos Aires, estava movimentadíssima. Começava a declinar o sol de uma esplêndida tarde de outono, e todos se apressavam em terminar o serviço do dia. Contrariamente ao costume, entretanto, uma roda de ouvintes se deteve em torno de algumas pessoas que discutiam.
No foco da discussão, o fazendeiro Sanábria se defrontava com o político radical Bernini. Sanábria, na força de seus quarenta anos, alto, corpulento, calvo, auto-suficiente e seguro de si, dominava o grupo tanto pela estatura como pela natural consideração em que era tido pelos circunstantes.
O outro, de estatura que mal chegava a mediana, bem magro, ombreava com Sanábria com sua voz aguda e penetrante, com a abundância de seu verbo, e com algo de literário que comunicava a tudo quanto dizia. Eram os últimos fogos que conservava, aos 67 anos, da época em que fora um fogoso orador no Congresso provincial.
De fato, há quase vinte anos Bernini tinha sido um audacioso deputado radical.
Fim individual da propriedade
Sanábria. — Pois eu trabalho principalmente para mim mesmo e para minha família. E confesso que não teria estímulo para me esforçar de sol a sol, tornando produtivas as minhas terras, se não visse nisto, diretamente, um proveito para mim e para os meus.
Bernini. — É isso mesmo! Vocês proprietários não enxergam nada além de suas próprias pessoas. Não sabem que o homem não pode viver senão em sociedade, e que, portanto, vive antes de tudo para a sociedade. É necessário que ele pense primeiro na comunidade, depois nos seus, e em terceiro lugar em si mesmo. Enquanto isto não for assim, continuaremos a presenciar toda espécie de abusos, e é em nome do povo que eu digo: [levantando a voz] — Defendo a soberania popular, que não é só a independência do país, mas também o direito da comunidade dos cidadãos de limitar todos os direitos privados, na medida em que isto seja necessário ao interesse da pátria!
Sanábria. — Esse é um ponto de vista seu, Bernini. Percebo nele algumas ressonâncias dos intelectuais da Revolução Francesa, e, em sua eloquência, alguns fermentos da propaganda comunista. De minha parte, sou católico, e sigo as Encíclicas. E elas garantem os direitos privados contra os avanços da demagogia.
Função social da propriedade
Bernini. [com um sorriso vitorioso]. — Você fala de Encíclicas, meu caro. Não sou adepto delas como você, porém as li. Quem está com as Encíclicas sou eu. Você já ouviu falar da função social da propriedade?
Sim, sua propriedade, a do industrial, a do comerciante, a do locador de imóveis, têm sobretudo uma função social. Isto quer dizer que todo proprietário existe principalmente, não para si mesmo — como parecem pensar você e seus congêneres, os empresários e os locadores — mas para o povo. A propriedade deve servir às necessidades e conveniências do povo em toda a linha, e só depois, na medida em que não sirva de mais nada ao povo, pode servir a vocês, os proprietários.
Intervencionismo do Estado
Sanábria. — Mas então não me servirá nunca! Pois será sempre possível para a administração pública inventar alguma utilização a mais para um imóvel rural ou urbano, como para uma empresa. Ainda que seja somente para enchê-los de repartições e funcionários públicos; ou para instalar organismos paraestatais, que sirvam de pretexto para a preparação de novos sistemas dirigidos, em última análise, pelo Estado.
Bernini. — Você vê de um modo pejorativo o que eu vejo de outra maneira. Nesta época, em que a economia teve um desenvolvimento tão prodigioso e a administração consegue maravilhas, é preciso admitir que O Estado desenvolve cada vez mais sua capacidade de tutelar o bem comum. E o Estado exercerá sua função social se ampliar cada vez mais o seu raio de ação. Para isso, deverá restringir o de vocês, que pagarão sempre mais impostos e terão uma ação diretiva cada vez menor. Aceitando isto, a propriedade cumpre sua função social.
A morte da propriedade
Sanábria. — Seria, então, a morte da propriedade privada e individual?
Bernini. — De sua propriedade, talvez. Não uma morte imediata, pois o Estado, como a natureza, não dá saltos: avança ao longo dos anos. Mas não é a morte do direito de propriedade, e sim o nascimento de outro tipo de direito de propriedade. O que convém é que a propriedade saia das mãos de alguns e passe às de todos que os bens pertençam diretamente àqueles que os utilizam; a casa aos que a habitam; a empresa aos que nela trabalham. Será a pequena propriedade para os indivíduos e a grande propriedade comunitária para os grupos sociais de grandes proporções. É a sociedade comunitária de amanhã, em que todos serão proprietários...
Sanábria. — ... ou em que cada um será dono de uma tal migalha, que o único proprietário, realmente, será o Estado.
* * *
À medida que a discussão se ia acalorando, diálogos paralelos cruzavam-se entre os assistentes.
De repente, um deles olhou o relógio e exclamou:
— Tenho que sair correndo para chegar ao Banco antes que feche!
Rapidamente, tão logo se lembraram de que o tempo ia passando, dispersou-se a roda como se houvesse caído uma pancada de chuva.
Sanábria e Bernini, voltando bruscamente do mundo da doutrina em que discutiam, acharam-se de novo no mundo da realidade quotidiana, no qual mantinham relações cordiais. Reconstituiu-se entre eles, inesperadamente, a bonomia habitual. Despediram-se amistosamente, e cada qual foi tratar de seus negócios.
* * *
À noite, havia pouco movimento no club. Na sala de bilhar, entretanto, uma conversa animada reunia um grupo considerável de amigos. A partida estava interrompida. Sanábria, com o taco na mão, dirigia-se com vivacidade a seu companheiro de jogo, o qual, sem deixar também o taco, ouvia-o com atenção.
A doutrina social da Igreja
Sanábria. - Enquanto ele estava desenvolvendo suas teorias socialistas, não me incomodei muito. São coisas que todo mundo sabe, e quase todo mundo rejeita. É uma completa falta de bom senso.
Mas eu confesso que me senti desorientado quando o velho diabo radical começou a falar com voz de ermitão, alegando textos de Papas e decretos do Concílio. Francamente, de um momento para outro eu tive impressão de estar metido na pele de um egoísta feroz, sem entranhas para com os pobres, e tendo os olhos voltados exclusivamente para mim mesmo e para os meus. Parece que um escrúpulo se formava em mim, soprando em meu ouvido: "Você não existe para si mesmo, sua família não existe para si mesma, vocês todos existem para o povo, e somente os egoístas consumados discordam disto!"
Você que é estudioso desses assuntos, talvez possa tirar-me desta teia de argumentos teológicos em que me enredou o ateu do Bernini.
Antes que Sanábria acabasse de falar, Fernando, de estatura mediana, aspecto saudável e alegre, com a vitalidade própria de seus 22 anos, fixando com olhos inteligentes o seu amigo, começou a sorrir:
União harmônica do bem comum e do bem individual
Fernando. — Imagine, Sanábria, que todos os argentinos se persuadissem das doutrinas do Dr. Bernini. Ninguém pensaria em si mesmo, mas no todo social, de maneira que o bem individual ficaria descuidado, e prevaleceria cinicamente a preocupação pelo bem comum. Mas como a Argentina é uma soma de indivíduos, o menosprezo do bem individual por parte de cada um resultaria na dissolução do próprio país.
A contradição que Bernini supõe entre o bem individual e o bem comum não existe. Se cada indivíduo cuida diligentemente de seu próprio bem e do dos seus, respeitando o direito dos demais, o país inteiro prospera.
Sanábria. — Nesse caso, não existe o bem comum?
Necessidade e defesa de todo ser individual
Fernando. — Existe, mas não como contrário ao bem dos indivíduos. Cada ser vivo tem, de acordo com as leis da natureza, um conjunto de necessidades e, correspondentemente, um conjunto de recursos individuais para satisfazer a essas necessidades.
Isto é verdade, por exemplo, no caso de uma planta que precisa respirar, e, em consequência, tem seus meios próprios que lhe permitem fazê-lo. Do mesmo modo, um pássaro, que deve alimentar-se e defender-se dos riscos, tem suas próprias asas para voar e procurar o alimento ou fugir do adversário.
Cada ser individual é um circuito fechado de necessidades e de meios de ação correspondentes. E, utilizando em proveito próprio os meios de que dispõe, tudo segundo a ordem que Deus pôs na natureza, cada qual sustenta, ao mesmo tempo, na medida que lhe toca, essa imensa maravilha que é a ordem universal.
Sanábria. — Mas Bernini diria que isso é pura poesia...
Fernando. — Não. É pura ciência. Imagine que cada indivíduo, na natureza, deixasse de prover a si mesmo: poderia haver cataclismo mais imediato e total?
Sanábria. — Não há dúvida. Mas você não me vai dizer que esse princípio, bom para as galinhas e para os sapos, é válido também para o homem ...
O homem ser individual com alma imortal
Fernando. — De fato, tal qual o enunciei, não vale. Pois há algo no homem que altera a questão. Ao contrário das galinhas e dos sapos, ele tem uma alma imortal, criada por Deus para a realização de um destino, pessoal, que consiste em amá-Lo e servi-Lo nesta terra, a fim de contemplá-Lo, face a face, amorosamente, por toda a eternidade.
Sanábria. — É isso, precisamente, o que não pensa o nosso ateu Bernini.
Fernando. — Esse é o mal que decorre do estudo de documentos eclesiásticos feito por ateus! Muitas vezes interpretam de modo errado a letra por não conhecerem o espírito. Leem os Papas como se estes fossem meros economistas que se esquecem de que o homem tem uma alma imortal. E, assim, entendem muitas coisas às avessas.
Sanábria. — Começo a sentir mais frouxa, em torno de meu pescoço, a corda da argumentação de Bernini. Continue, quero ver até onde você vai chegar.
A ordem do amor de Deus e do próximo
Fernando. — O fim do homem não é a ordem terrena, ao contrário dos animais e das plantas, cujo fim imediato, de algum modo, é a ordem universal. O homem existe, fundamentalmente, para Deus, como todos os seres, mas, possuindo uma natureza espiritual, seu fim imediato é ele mesmo, e depois os que lhe são próximos segundo a ordem da natureza, ou das relações sociais de toda espécie — família, amigos, empregados, etc. Neste vasto "etc.", cabe também a sociedade toda.
Em outros termos, cuide ele de si e dos seus, seja justo e caritativo para consigo e para com todos, e terá prestado ao bem comum um dos serviços mais fundamentais que lhe possa prestar.
O reto amor de si mesmo não é egoísmo
Sanábria. — É precisamente o que não vejo claro. Isso não é egoísmo? Não é amor de si mesmo?
Fernando. — Aqui está, meu caro, outro dos pressupostos coletivistas que tornam Bernini estrábico no momento de ler as Encíclicas. O amor de si mesmo não é egoísmo. Está para o egoísmo assim como o original está para a caricatura. Como a força está para a brutalidade, ou como a bondade está para a fraqueza.
Sanábria. — E onde é que eu ponho o amor ao próximo?
Fernando. — Exatamente onde ponho o amor a mim mesmo. Pois, quem está mais próximo de mim que eu mesmo? Por isso, devo cumprir com a justiça e com a caridade antes de tudo para comigo, depois, em círculos concêntricos, para com os meus, para com os amigos, empregados, etc. Tudo na medida do variado jogo das proximidades.
Sanábria. — E se Bernini lhe perguntasse em que é que isto se diferencia do egoísmo? Que é que você responderia?
Fernando. — Que o egoísta não é o que tem consciência de estar colocado em seguida a Deus no centro de seu próprio amor, mas aquele que, por amor de si, se recusa, a amar a Deus ou ao próximo; e, em consequência, abandona a fé, transgride as obrigações de justiça ou as de caridade, e se torna, em maior ou menor medida, um inimigo de Deus e dos homens. O reto amor de si não é egoísmo. De nenhum modo exclui o amor de Deus e do próximo, mas ao contrário, participa dele.
Cuide de si e dos seus, cumprindo seus deveres de justiça e de caridade para com Deus e o próximo, e você poderá estar seguro de ser um bom católico e um excelente argentino.
Supremacia do bem comum
Sanábria. — Confesso, Fernando, que a sua argumentação me agrada enormemente e me convence, mas deixa no meu espírito uma certa dúvida. À vista do que você acaba de afirmar, um direito individual nunca deveria sofrer limitações em favor do bem comum. Bernini descobriria nisso um individualismo utópico e irredutível. Cada homem, exercendo seus direitos até o fim, trabalharia para o bem comum. Portanto, sacrifícios para a sociedade — jamais!
Fernando. — Se você prestou atenção ao que eu disse, terá notado que tive o cuidado de apresentar esta promoção do bem individual, feita por cada pessoa ou por cada família, como uma imensa contribuição básica para o bem comum, e não como a única contribuição que se pode prestar para esse fim.
A sociedade, enquanto é um todo orgânico de indivíduos e de famílias, é mais nobre do que estes. Assim sendo, é indispensável compreender que, quando a comunidade está em perigo, ou quando uma razão autêntica de necessidade pública ou social exige o sacrifício de direitos individuais, êste sacrifício deve ser efetuado. Esta é a função social de todo direito individual.
Função social de outros direitos
Sanábria. — De todo direito individual?!... Ouvi. falar apenas da função social da propriedade...
Fernando. — É verdade, Bernini e seus congêneres só falam de função social da propriedade. Entretanto, se admitíssemos que os outros direitos — o de trabalho, por exemplo — não têm função social, não haveria razão para afirmar que só o direito de propriedade privada está sujeito a essa função. O nosso bom Bernini omite qualquer referência à função social dos demais direitos porque isso conduziria à limitação de certas formas de tirania sindicalista, tais como existem nos Estados Unidos e como existem aqui na Argentina.
O Dr. Bernini imagina que é inimigo de todas as tiranias, mas promove, por omissão, todas as formas de ação que conduzem à tirania sindical.
Sanábria [rindo alegremente]. — Amanhã mesmo vou dizer isso a ele, na Calle General Rodríguez, quando nos encontrarmos!
Casos em que podem ser limitados os direitos individuais
Fernando. — Assim, na hipótese de ser necessária a restrição de um ou de alguns direitos individuais em favor do bem comum, essa restrição deve ser feita. Mas, tanto no caso da propriedade privada, como no dos demais direitos, a efetivação dessa restrição está sujeita a alguns princípios. Deve fazer-se apenas quando comprovadamente necessária, apenas na medida do necessário, apenas durante o tempo que for necessário, e indenizando cuidadosamente, em toda a medida do possível; os titulares dos direitos restringidos.
Sanábria. — Bem, então a função social da propriedade não conduz à abolição desta última?
A função (social) não pode matar o órgão (o proprietário)
Fernando. — A função, por definição, é um serviço prestado por um órgão. Se esse serviço é necessário a todo o organismo, é preciso que o exercício da função não destrua o órgão. Sempre que se exige de um órgão uma atividade da qual ele morre, faz-se algo de monstruoso e se atenta contra o organismo inteiro. Se é necessário, para o bem comum, que a propriedade privada exerça sua função social, matar a propriedade é, ao mesmo tempo, golpear mortalmente o bem comum.
Sanábria. — Esplêndido! Direi isto a Bernini, na Calle General Rodríguez, mas... depois de amanhã. Uma dose por dia prolongará o meu triunfo, e lhe dará tempo de digerir resposta por resposta.
Fernando. — Então, daqui a três dias, para aliviar a tensão ofereça a Bernini um presente. Se quiser, ofereça de minha parte. Você conhece "Cruzada"?
Se, no emaranhado de opiniões teológicas que pululam por aí, postas em circulação pelos Berninis peronistas, demo-cristãos e outros, dos quais a Argentina está cheia, eu consegui ver claro, devo-o a essa revista. Doutrina clara, argumentação coerente, especializada em apresentar contra-venenos para as teses "berninianas"... Enfim, não falta nada nessa revista. Sou leitor dela há anos, e gostaria que Bernini a lesse. Ofereça-lhe uma assinatura.
Sanábria. . — Bernini, aos 67 anos, fala como se fosse um líder da juventude. Vai dizer que "Cruzada" é uma revista embolorada de sexagenários superados, e vai recusar o seu presente.
Fernando. — Então, diga-lhe que, quando for a Buenos Aires, me avise. Iremos, os três, visitar a sede de "Cruzada", onde ele não encontrará ninguém que tenha mais de 30 anos, É um grupo numeroso de jovens ativos, combativos e alegres.
Uma risada geral distendeu os circunstantes, que acompanhavam com atenção a conversa.
A roda ia-se desfazendo com sucessivos "boa noite!" recíprocos, e rápidos comentários jocosos, quando Sanábria chamou Fernando, que se dirigia para a porta de saída:
Pequenas, médias e grandes propriedades
Sanábria. — Escute, Fernando, quero que me responda ainda uma coisa. Que é que você pensa da sociedade comunitária de Bernini, com a pequena propriedade para os indivíduos, e a grande propriedade comum para os grupos sociais?
Fernando. — Ah, é verdade! Faltava isso. Vamos primeiro à pequena propriedade individual. Não discuto que, em muitos casos, ela seja altamente recomendável e profundamente simpática. Mas proibir o pequeno proprietário de converter-se em médio proprietário, e depois em grande, é uma característica do espírito ditatorial do Dr. Bernini. Embora não o confesse, ele quer uma lei que diga: "É proibido aos homens mais trabalhadores e aos mais capazes, trabalhar mais, produzir mais, e melhorar suas próprias condições de vida e as do país". A isto ele chama democracia e função social da propriedade.
Sanábria. — E as propriedades excessivamente grandes?
Fernando. — Veja bem: uma propriedade muito grande pode não ser excessivamente grande. Ela seria excessivamente grande se tivesse proporções concretamente incompatíveis com as necessidades vitais da sociedade. Só então, e se o bem comum o exigisse, poderia a lei determinar a divisão, mediante prévia e justa indenização.
A propriedade industrial
Sanábria. — Passando a outro aspecto do problema, que posso responder se ele me disser que concede isso quanto ao campo, mas que, no plano industrial, as fábricas têm que ser propriedade dos operários?
Fernando. — Não discuto que em algum caso uma fábrica possa ser fundada ou adquirida legitimamente pelos operários. Porém, esta situação excepcional não poderia converter-se em regra geral. Normalmente, uma fábrica — do mesmo modo que uma casa de comércio — deve pertencer a um indivíduo, e estar sob a direção responsável deste. Isto não exclui que, em certos casos, mediante um livre acordo entre as partes, a propriedade individual da empresa possa coexistir com alguma, participação dos empregados e operários no capital social, bem como nos lucros e na gestão da mesma. Isto poderá ser excelente algumas vezes, anódino outras, e até nocivo algumas outras...
Sanábria. — Dar a Bernini uma solução destas é coisa para deixá-lo desapontadíssimo. Sua grande arma contra mim consiste em chamar-me monopolizador, intransigente, defensor "à outrance" dos direitos de minha classe. Até insinua que sou uma espécie de "condottiere" capitalista da luta de classes. Mas quando me ouvir, desta vez, não terá mais nada que dizer!
Fernando se afastou, dando uma risada sonora. Da porta, exclamou, dirigindo-se a Sanábria:
Fernando. — Escute! Não deixe de convidar o velho Bernini para visitar "Cruzada". O "condottiere" sindicalista verá então um grupo de jovens que lutam... contra a luta de classes. Ofereceremos a ele uma "Interpelação aos atuais dirigentes do peronismo" e outra contra os deputados do Partido Democrata-Cristão [ver "Catolicismo", n.os 170 e 177, de fevereiro e setembro de 1965], que lhe darão muito que pensar.
Apagavam-se as últimas luzes do club. Rindo e conversando, o grupo dos que tinham presenciado o diálogo entre Sanábria e Fernando dissolveu-se no plácido silêncio da cidade que dormia.
TEXTOS PONTIFÍCIOS
A propriedade privada satisfaz fundamentalmente a um bem individual
LEÃO XIII. — Eis, aliás, em algumas palavras, o resumo desta doutrina: quem quer que recebeu da divina Bondade maior abundância, quer de bens externos e do corpo, quer de bens da alma, recebeu-os com o fim de os fazer servir ao seu próprio aperfeiçoamento, e, ao mesmo tempo, como ministro da Providência, ao alívio dos outros.
(Encíclica "Rerum Novarum", de 15 de maio de 1891 — Editora Vozes Ltda., Petrópolis, p. 18).
O direito de propriedade é distinto do seu uso
PIO XI. — [...] a fim de por termo às controvérsias que acerca do domínio e deveres a ele inerentes começam a agitar-se, note-se em primeiro lugar o fundamento assente por Leão XIII, de que o direito de propriedade é distinto do seu uso (Encíclica "Rerum Novarum", § 35). Com efeito, a chamada justiça comutativa obriga a conservar inviolável a divisão dos bens e a não invadir o direito alheio, excedendo os limites do próprio domínio; mas que os proprietários não usem do que é seu, senão honestamente, é da alçada não da justiça, mas de outras virtudes, cujo cumprimento "não pode urgir-se por vias jurídicas" (cf. Encíclica "Rerum Novarum").
(Encíclica "Quadragesimo Anno", de 15 de maio de 1931 — Editôra Vozes Ltda., Petrópolis, p. 18).
A propriedade privada, fundamento da existência da sociedade e da família
PIO XII. — Segundo a doutrina da "Rerum Novarum", a natureza mesma uniu intimamente a propriedade privada com a existência da sociedade humana e com a sua verdadeira civilização, bem como, em grau eminente, com a existência e o desenvolvimento da família. Um tal vínculo é mais do que manifesto. Não deve, porventura, a propriedade privada, assegurar ao pai de família a sadia liberdade, da qual tem necessidade para cumprir os deveres que lhe foram impostos pelo Criador, concernentes ao bem-estar físico, espiritual e religioso da família?
(Radiomensagem "La Solennità", de 1.° de junho de 1941 — "Discorsi e Radiomessaggi", Tipografia Poliglotta Vaticana, vol. III, p. 116).
Não se pode abolir a propriedade particular com impostos excessivos
LEÃO XIII. — [...] a propriedade particular não seja esgotada por um excesso de encargos e de impostos. Não é das leis humanas, mas da natureza, que emana o direito da propriedade individual; a autoridade pública não o pode pois abolir; o que ela pode é regular-lhe o uso e conciliá-lo com o bem comum. É por isso que ela obra contra a justiça e contra a humanidade quando, sob o nome de impostos, sobrecarrega desmedidamente os bens dos particulares.
(Encíclica "Rerum Novarum", de 15 de maio de 1891 - Editora Vozes Ltda., Petrópolis, pp. 33-34).
Destruir a propriedade privada, reduzindo-a a propriedade coletiva, é objetivo socialista
LEÃO XIII. — Por tudo o que Nós acabamos de dizer, se compreende que a teoria socialista da propriedade coletiva deve absolutamente repudiar-se como prejudicial àqueles mesmos a que se quer socorrer, contrária aos direitos naturais dos indivíduos, como desnaturando as funções do Estado e perturbando a tranquilidade pública.
(Encíclica "Rerum Novarum", de 15 de maio de 1891 - Editora Vozes Ltda., Petrópolis, pp. 11-12).
LEÃO XIII. — Os socialistas, para curar êste mal [a opressão dos proletários por um pequeno número de ricos], instigam nos pobres o ódio invejoso contra os que possuem, e pretendem que toda a propriedade de bens particulares deve ser suprimida, que os bens de um indivíduo qualquer devem ser comuns a todos, e que a sua administração deve voltar para os municípios ou para o Estado. Mediante esta transladação das propriedades e esta igual repartição das riquezas e das comodidades que elas proporcionam, entre os cidadãos, lisonjeiam-se de aplicar um remédio eficaz aos males presentes.
- Mas semelhante teoria, longe de ser capaz de pôr termo ao conflito, prejudicaria o operário se fosse posta em prática. Outrossim, é sumamente injusta, por violar os direitos legítimos dos proprietários, viciar as funções do Estado e tender para a subversão completa do edifício social.
- (Encíclica "Rerum Novarum", de 15 de maio de 1891 - Editora Vozes Ltda., Petrópolis, p. 5).
- Prioridade dos direitos do indivíduo em relação aos do Estado
- LEÃO XIII. — E não se apele para a providência do Estado, porque o Estado é posterior ao homem, e antes que ele pudesse formar-se, já o homem tinha recebido da natureza o direito de viver e proteger a sua existência.
- (Encíclica "Rerum Novarum", de 15 de maio de 1891 — Editora Vozes Ltda., Petrópolis, p. 7).
- A função do Estado não é absorver, mas defender a propriedade privada
- PIO XI. — [...] assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efetuar com a própria iniciativa e indústria, para o confiar à coletividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir, é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua ação é coadjuvar os seus membros, e não destruí-los nem absorvê-los.
- (Encíclica "Quadragesimo Anno", de 15 de maio de 1931 — Editora Vozes Ltda., Petrópolis, pp. 30-31 — Citada por. JOÃO XXIII, na Encíclica "Mater et Magistra").
- O amor a si mesmo e à família é harmônico com o amor à pátria e ao gênero humano
- PIO XI. — [A Igreja] é igualmente alheia a todos os extremos do erro como a quaisquer exageros de partidos ou sistemas que lhes sejam aderentes; atém-se sempre ao equilíbrio da verdade e da justiça; reivindica-o em teoria, aplica-o e promove-o na prática conciliando direitos e deveres de uns com os outros, isto é, a autoridade com a liberdade, a dignidade do indivíduo com a do Estado, a personalidade humana do súdito com a representação divina no superior, e pois a devida dependência e o amor ordenado de si próprio, da família e da pátria, com o amor de outras famílias e de outros povos, fundado no amor de Deus, Pai de todos, primeiro princípio e último fim.
- (Encíclica "Divini Redemptoris", de 19 de março de 1937 — Editora Vozes Ltda., Petrópolis, p. 18).
- A propriedade tem duplo caráter: individual e social; ambos devem ser respeitados
- PIO XI. — Primeiramente, tenha-se por certo que nem Leão XIII, nem os teólogos, que ensinaram seguindo a doutrina e direção da Igreja, negaram jamais ou puseram em dúvida a dupla espécie de propriedade, que chamam individual e social, segundo diz respeito aos particulares ou ao bem comum; pelo contrário, foram unânimes em afirmar que a natureza, isto é, o próprio Criador, deu aos homens o direito do domínio particular, não só para eles proverem às necessidades próprias e da sua família, mas para que sirvam verdadeiramente ao seu fim os bens destinados pelo Criador a Vida a família humana: ora, nada disto se pode obter, se não se observa uma ordem certa e bem determinada.
Deve, portanto, evitar-se cuidadosamente um duplo escolho. Pois, tal como negar ou cercear o caráter social e público do direito de propriedade precipita no chamado "individualismo" ou dele muito aproxima, assim, também, rejeitar ou atenuar o caráter privado e individual do mesmo direito leva rapidamente ao "coletivismo", ou pelo menos à fronteira de seus princípios. Sem a luz destas verdades ante os olhos, cair-se-á nas malhas do modernismo moral, jurídico e social, que denunciamos na Encíclica do princípio do Nosso Pontificado [Encíclica "Ubi Arcano", de 23-12-1922].
(Encíclica "Quadragésimo Anno", de 15 de maio de 1931 — Editora Vozes Ltda., Petrópolis, pp. 17-18, e Livr. Editora "Lar Católico", Juiz de Fora, 1944, pp. 27-28).
A propriedade privada tem uma função social; não é, porém, exclusivamente uma função social
PIO XII. — O direito do indivíduo e da família à propriedade é uma consequência imediata da essência da pessoa, um direito da dignidade pessoal, um direito onerado, é verdade, por deveres sociais; não é, porém, exclusivamente uma função social.
(Radiomensagem ao "Katholikentag" de Viena, em 14 de setembro de 1952 — "Discorsi e Radiomessaggi", vol. XIV, p. 314).