PODE UM CATÓLICO REJEITAR?

(continuação da página 19)

tornem patente que houve a vontade de definir a questão irrevogavelmente.

Na "Humanae Vitae" não se encontram os referidos termos solenes, e por isso numerosos teólogos, tanto progressistas quanto tradicionais, se apressaram em dizer que a Encíclica não contém nenhum ensinamento "ex cathedra".

Mas as circunstâncias que envolveram o preparo do Documento e sua publicação nos parecem tais, que permitem pôr em dúvida essa asserção. Com efeito, consideremos os fatos: mais de quatro anos de estudos; nomeação de importantes comissões especiais; expectativa geral do mundo católico e mesmo dos acatólicos; numerosos apelos de todas as partes para que a doutrina tradicional fosse abrandada; o Papa reserva a si o assunto por ocasião do Concílio; vários Discursos de Paulo VI dizem da dificuldade da matéria e da perplexidade em que ele se encontrava; a carta do Cardeal Cicognani a todos os Bispos, que acompanhou o texto da Encíclica, encarecendo a necessidade de se observar a doutrina nela contida; e, finalmente, as diversas Alocuções posteriores à divulgação da "Humanae Vitae", nas quais o Soberano Pontífice reafirma os mesmos princípios e chama à obediência os espíritos renitentes.

De modo particular, queremos ressaltar o caráter ímpar da referida carta do Cardeal Secretário de Estado, a qual constitui um documento de um gênero singular nos fastos eclesiásticos, e que bem fala do excepcional empenho do Papa em que a Encíclica seja por todos acatada.

Tais circunstâncias, a cuja enumeração poderíamos acrescentar ainda outras de indiscutível peso, parecem-nos indicar um pronunciamento do Magistério extraordinário, isto é, "ex cathedra". Realmente, são elas tão incisivas e incomuns, que tornam difícil admitir que o Papa não tenha tido a vontade de definir, isto é, de dirimir de modo efetivo e inapelável a dúvida lançada por maus semeadores no meio dos fiéis.

Por outro lado, entretanto, tem-se dito, de modo praticamente universal, que a Encíclica não é um documento "ex cathedra". Ora, como sabemos (4), se o Sumo Pontífice permite que um ensinamento seu seja interpretado universalmente de determinada maneira, sem intervir com eventuais retificações, está autorizando tal interpretação. Portanto, se se disser por toda parte, sob o silêncio pontifício, que a "Humanae Vitae", não é um documento "ex cathedra", tal fato sem dúvida indicará que Paulo VI realmente não quis usar de sua infalibilidade.

Por enquanto, a questão não nos parece ainda resolvida, pois o silêncio do Papa só se torna um sinal inconfundível de sua verdadeira intenção quando os debates sobre o documento atingem um certo grau de plenitude e maturidade. Ora, a "Humanae Vitae" ainda não foi alvo de uma análise teológica ampla e profunda.

Um dogma do Magistério ordinário

É frequente em meios católicos a noção de que só são dogmas aqueles que foram objeto de definições solenes, por Papas ou Concílios. Essa noção é falsa e perigosa. De fato, há também numerosos dogmas definidos pelo Magistério ordinário e universal, isto é, pela continuidade dos ensinamentos dos Papas e Bispos no exercício quotidiano de sua missão docente, através de Encíclicas, Alocuções pontifícias, Pastorais coletivas, etc. Se uma doutrina de fé ou moral é pacificamente ensinada durante muito tempo por toda a Igreja, não há como duvidar de que ela seja infalível. Se não o fosse, a Esposa de Cristo se teria transformado em mestra do erro, e estaria levando as almas para o inferno. Assim é que os teólogos ensinam que a Co-redenção mariana é hoje dogma, pois, embora ainda não tenha sido objeto de definição solene, no entanto foi ensinada pelos Papas ininterruptamente durante cem anos (5).

Ora, a condenação das práticas contra-conceptivas artificiais data dos primeiros séculos. Os próprios progressistas o reconhecem.

São insofismáveis os textos de Clemente de Alexandria, de Santo Epifânio, de São Jerônimo, de Santo Agostinho, de São Cesário de Arles, de São Martinho de Braga, de São Gregório Magno, dos Penitenciais, do antigo Direito Canônico, de São Tomás de Aquino e dos demais Doutores medievais, do Catecismo Romano, de Sixto V, de Gregório XIV, de Santo Afonso de Ligório.

No século XIX e na primeira metade do século XX, a doutrina condenatória da contracepção artificial é também firme e incontestada entre os teólogos, e, sobretudo, é sancionada por cerca de vinte documentos do Santo Ofício e da Sagrada Penitenciaria, bem como por graves pronunciamentos de Pio XI e Pio XII.

Em vista de tal clareza da Tradição, já no tempo de Pio XI os teólogos eram unânimes em sustentar que a questão estava fechada por uma definição dogmática do Magistério ordinário. Foi só com a investida progressista que se começou a criar dúvidas em torno desse ponto. Mas semelhantes dúvidas são absolutamente destituídas de fundamento.

Impõe-se pois a conclusão de que a condenação dos métodos contraceptivos artificiais constitui um dogma do Magistério ordinário.

E impõe-se também, como consequência imediata desse fato, a afirmação de que a sentença favorável à contracepção artificial é herética.

Não nos estenderemos aqui sobre a sequela gravíssima de conclusões que daí se inferem para a ordem prática. Já tratamos desse assunto em artigos anteriores.(6). Basta lembrar aqui que sustentar uma proposição herética, com pleno conhecimento de causa e obstinadamente, é excluir-se do seio da Santa Igreja Católica.

Numa outra ordem de ideias, torna-se também patente que não é lícito invocar o probabilismo em favor da sentença que autoriza a contracepção artificial. Com efeito, uma proposição oposta a um dogma nunca pode gozar da nota de probabilidade, ainda que seja abraçada por teólogos tidos por eminentes.

Esperemos que todos — eclesiásticos e leigos — permaneçam fiéis a esse ponto fundamental de doutrina católica ensinada pela "Humanae Vitae", pois, como afirma Paulo VI, apelando aos Sacerdotes de todo o orbe, "é da máxima importância, para a paz das consciências e para a unidade do povo cristão, que, tanto no campo da moral como no do dogma, todos se atenham ao Magistério da Igreja e falem a mesma linguagem" (n.° 28).

* * *

1) Sobre o sentido em que uma palavra pode ser transformada em talismã da Revolução, ver a obra do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, "Baldeação Ideológica Inadvertida e Diálogo", Editora Vera Cruz Ltda., São Paulo, 3.a edição, 1966, pp. 12 ss. — publicada originariamente em "Catolicismo", n.° 178-179, de outubro-novembro de 1966.

2) Não nos cabe aqui analisar em profundidade a noção de pronunciamento "ex cathedra", a questão do assentimento interno e externo aos Documentos pontifícios e conciliares não infalíveis, etc. Sobre esses pontos, remetemos o leitor aos manuais de Teologia tradicionais, bem como a nosso artigo "Qual a autoridade doutrinária dos Documentos pontifícios e conciliares?", publicado em "Catolicismo", n.° 202, de outubro de 1967.

3) Segundo o probabilismo, quando os moralistas divergem a respeito de uma obrigação moral, é lícito seguir a sentença benigna, desde que ela seja sólida e verdadeiramente provável, e ainda que a sentença rígida seja mais provável.

4) Cf. artigo supracitado "Qual a autoridade doutrinária dos Documentos pontifícios e conciliares?"

5) Cf. artigo citado.

6) "Não só a heresia pode ser condenada pela autoridade eclesiástica", "Atos, gestos, atitudes e omissões podem caracterizar o herege", "Respondendo a objeções de um imaginário leitor progressista", in "Catolicismo", números 203, 204 e 206, de novembro, dezembro e fevereiro p. p.

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Conclusão da página 18

EVITANDO UM CONFLITO

Movimento, tenho o direito de perguntar: "D. Helder, aonde o Sr. quer levar o Brasil?" E diante de seu silêncio, agravado ainda pela afirmação de que a propriedade particular é um assunto que ainda deve ser estudado, vejo que, relatando a nossa conversa pública da noite de 18 de julho no Colégio "Sacré Coeur", no Rio de Janeiro, não só exerci um direito de cidadão, como também cumpri um dever de Bispo e de Brasileiro".

Desafogo no seio das Forças Armadas

Já mencionamos o degelo provocado nos ambientes militares pelas sucessivas declarações do Arcebispo de Diamantina. Sua conferência na Vila Militar, do Rio, no dia 20 de agosto, constituiu-se num verdadeiro êxito, quebrando definitivamente o jogo dos que pretendiam lançar as Forças Armadas contra a Igreja, apresentada como artífice do esquerdismo.

Nessa conferência, pronunciada no auditório da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, S. Excia. Revma. condensou as declarações que havia feito até então, sendo aplaudido entusiasticamente.

Agradecendo a conferência do ilustre Prelado, o General Moniz de Aragão afirmou que "a palavra de D. Sigaud é uma tranquilidade, um estímulo, um consolo para lutarmos pelo Brasil".

Compareceram ao ato, além do General Moniz de Aragão, ex-Presidente do Club Militar, os Generais José Calderari e José Rabelo, este último comandante da EsAO, bem como comandantes ou representantes do comando de todas as unidades da Vila Militar, e numerosos oficiais.

Na imprensa, a conferência repercutiu largamente, sendo noticiada com grande destaque pelos principais órgãos do País.

Resolvendo uma crise de consciência

Se tão relevante foi a atuação do Exmo. Arcebispo no sentido de dissolver o conflito em gestação entre as Forças Armadas e o Clero, mais benemérita ainda foi a sua contribuição para resolver a imensa crise de consciência que perturbava milhões de católicos brasileiros, os quais não conseguiam compreender o que se passava com a sua Igreja.

A natureza e a extensão dessa crise são tratadas mais longamente em outro artigo deste número (p. 6), de modo que nos limitamos a observar aqui que os sucessivos pronunciamentos de D. Sigaud, ao lado dos documentos que publicou juntamente com outros Arcebispos e Bispos, fez com que incontáveis católicos reencontrassem, afinal, a sua Igreja, a Igreja de ontem, de hoje, de sempre. Esses Prelados representavam colunas em que as almas se podiam apoiar, e assim uma imensa crise de consciência estava debelada.

Nesta operação da graça divina coube ao Exmo. Arcebispo de Diamantina um papel que é evidente para todos.

Integral apoio à campanha da TFP

A corajosa atuação de D. Geraldo de Proença Sigaud no campo eclesiástico foi afim com a campanha que, por uma coincidência providencial, a TFP desencadeou concomitantemente no campo cívico. É natural, pois, o apoio que S. Excia. e a TFP se dispensaram reciprocamente.

Em seus sucessivos pronunciamentos, o ilustre Prelado timbrou em manifestar o seu aplauso à campanha daquele Sociedade contra a infiltração esquerdista em meios católicos. Segundo suas expressivas palavras a um jornal, "se fosse leigo, estaria empenhado também na campanha da TFP, à qual dava integral apoio".

Por sua vez, o Conselho Nacional da entidade ofereceu um banquete a S. Excia. Revma., no Jockey Club de São Paulo, no dia 21 de agosto, como manifestação pública de aplauso por sua desassombrada atitude contra as atividades de esquerda dentro da Igreja.

Em Medellín, à margem do CELAM

Viajando para a Colômbia, onde participaria do Congresso Eucarístico Internacional, D. Geraldo de Proença Sigaud desejava assistir também à reunião do CELAM, na qualidade de observador. É de praxe, em assembleias do gênero, admitir nessa qualidade os Bispos que delas não são membros com voz e voto.

Esta praxe, entretanto, não foi observada no presente caso, devido à rigidez com que se aplicou o regulamento da assembleia.

S. Excia. dedicou então o seu tempo a escrever artigos para uma coluna intitulada "Al margen del CELAM", a ele oferecida pelo jornal "El Tiempo", de Bogotá.

O que se deu foi realmente providencial, pois a opinião pública acabou sendo muito melhor esclarecida por esses artigos do que pelas informações esparsas que filtravam da reunião do CELAM.

Deixamos para um próximo número os detalhes da benemérita atividade desenvolvida pelo Arcebispo de Diamantina na Colômbia. Hoje registramos apenas que ela fez rejubilar os círculos anti-esquerdistas do continente inteiro, ao mesmo tempo que os setores esquerdistas não esconderam uma consternação irritada. À falta de argumentos doutrinários, esses setores apelaram, como sói acontecer, para o deplorável recurso dos ataques pessoais fraudulentos.

A verdade é que o impacto dessa atuação de D. Geraldo de Proença Sigaud provocou, em escala continental, o mesmo efeito altamente benéfico que seus anteriores pronunciamentos tinham tido no Brasil.

Texto de

A. A. Borelli Machado


Conclusão da página 18

O SOLENE ENCERRAMENTO

Em 1959, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira discerniu os rumos para os quais as forças da revolução pretendiam conduzir o País, e mostrou a seus colaboradores mais chegados a necessidade de proceder a estudos sobre o problema agro-reformista, do qual se começava apenas a falar no Brasil.

Um ano depois vinha a lume o livro "Reforma Agrária — Questão de Consciência", de cuja elaboração participaram, com o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, D. Geraldo de Proença Sigaud, D. Antonio de Castro Mayer e o economista Luiz Mendonça de Freitas.

A obra produziu um formidável impacto sobre a opinião pública e sustou até hoje a aplicação, entre nós, de uma reforma agrária socialista.

Ainda em defesa da propriedade privada, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira promoveu um primeiro grande abaixo-assinado, interpelando a Ação Católica de Belo Horizonte, que procurava negar o aspecto moral e religioso do problema agro-reformista.

Chegava, então, ao auge a agitação provocada pelo Governo João Goulart. É inegável que o confessado intento deste, de realizar as reformas de estrutura confiscatórias, incompatibilizou-o com a opinião pública, produzindo a sua queda. Mostrou o orador que o amplo e caloroso debate que se travou em torno de "Reforma Agrária — Questão de Consciência" é que sensibilizou a opinião Nacional a respeito das implicações ideológicas das reformas de estrutura, e propiciou assim uma maciça demonstração de repúdio popular ao esquerdismo, frontalmente contrário à nossa formação cristã.

Em 1966, um novo golpe se preparava contra a civilização cristã no Brasil, desta vez visando diretamente a família. Foi mais uma vez Plinio Corrêa de Oliveira quem vislumbrou a maneira de aparar esse golpe, e lançou a ideia do abaixo-assinado da TFP contra o projeto de novo Código Civil, que instituía sorrateiramente o divórcio. Um milhão de pessoas, em cinquenta dias, respondeu ao apelo da TFP, e o Presidente Castello Branco retirou o projeto.

Finalmente, veio a campanha contra a infiltração esquerdista em meios católicos.

Houve quem dissesse, observou o Sr. Xavier da Silveira, que a TFP espera sempre o momento certo para atuar. Entretanto, é preciso que se consigne, ainda uma vez, que foi o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira quem, discernindo os verdadeiros sentimentos do povo brasileiro, percebeu que um outro abaixo-assinado propiciaria uma manifestação retumbante da opinião pública em consonância com as nossas tradições cristãs. Foi ele o cérebro e a alma dessa batalha, como o fora das anteriores.

Assim, a atuação da TFP não é senão o fruto do pensamento e da ação desse grande líder. Quando os sócios da TFP e os militantes saem às ruas, e são aplaudidos ou agredidos, pode-se dizer que é Plinio Corrêa de Oliveira que é aplaudido ou agredido neles. A vitória da TFP não é, pois, senão a vitória de seu Presidente.

Fazendo suas as palavras proferidas momentos antes pelo Exmo. Arcebispo de Diamantina, o orador concluiu dizendo que o Presidente do Conselho Nacional da TFP era um instrumento de Nossa Senhora, para a realização de tão grandiosa obra. E que por sua vez a Sociedade e seus colaboradores honravam-se de ser instrumentos nas mãos do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira.

Ao brado de "Pelo Brasil: Tradição! Família! Propriedade!", proferido pelos sócios e militantes, chegou ao fim a solenidade de encerramento da gloriosa campanha da TFP.

Ao longo de toda a sessão o auditório, constituído por pessoas de todas as idades e classes sociais, acompanhou os discursos com vivo interesse, o qual frequentemente chegou ao entusiasmo. É o que exprimiam os calorosos, prolongados e repetidos aplausos que o público dispensou — de pé, mais de uma vez — aos oradores.


TFP AGRADECE AO PAPA A ENCÍCLICA

No dia 30 de julho p. p., ao tomar conhecimento do texto da Encíclica "Humanae Vitae", a TFP apressou-se a manifestar ao Santo Padre seus filiais sentimentos de adesão e agradecimento, endereçando a Sua Santidade o seguinte telegrama: "A Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, entidade de caráter cívico para propugnar o Direito Natural, em nome de seus sócios e militantes constituindo Secções e Núcleos em cinquenta cidades, envia a Vossa Santidade felicitações calorosas e agradecimento profundo pela Encíclica "Humanae Vitae", que salva a família contemporânea da corrupção e da esterilidade. Pede respeitosamente a Bênção Apostólica. — Plinio Corrêa de Oliveira, Presidente do Conselho Nacional".


Continuação da página 15

CINCO DOCUMENTOS ESTARRECEDORES

- sofremos ainda com a visão que o povo tem do padre como pessoa identificada e que se identifica com a classe dominante à qual serve, contra os interesses do bem comum, negando os direitos das pessoas;

- sentimo-nos, enfim, meros funcionários de uma empresa curial que cerceia e bitola todas nossas aspirações, reduzindo-nos ao serviço de simples distribuidores de sacramentos.

O sacerdote, mergulhado nestes angustiantes problemas, e que ainda se dá o tempo de refletir profundamente sobre sua missão, não sabe mais a quem está se dirigindo: se ao turista inconsciente que lhe pede ritos folclóricos ou se ao cristão desejoso de construir o Reino de Deus.

A comunidade religiosa parece-lhe u'a massa fantasmática, sem forma, sem núcleo firme, sem articulações. Se ele fizer uso da palavra com a rica e dura precisão do apóstolo Paulo, ou com a clareza profunda do evangelista João, irrita, decepciona, escandaliza, aborrece e provoca uma oposição maciça, alcunhando-o de "subversivo" da ordem social estabelecida, ou '"rebelde" dos códigos canônicos.

Separado de seus irmãos homens e de seus irmãos cristãos, o sacerdote o é também, de seu bispo. Entre eles levanta-se a montanha de julgamentos feitos, de deveres divergentes, de honrarias, de processos, de tradições, de camadas hierárquicas, de experiências diversas, de vocabulário, de problemas, de circunstâncias, etc.

[...]".

288 Padres de nove Estados

288 SACERDOTES seculares e regulares, de diversas cidades dos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia, e Pará — entre os quais o Pe. Joseph Comblin — enviaram uma carta aos Prelados reunidos na Assembleia da CNBB, "com o propósito de comunicar-lhes algumas das sérias preocupações que afligem nossa consciência".

Depois de tratar, na primeira parte, intitulada "Vida e Fé", da "Situação do povo brasileiro" (1 — Um povo assassinado: A mortalidade infantil, Privação do pão quotidiano, Salários e política salarial; 2 — Um povo roubado: Contribuição do povo e benefícios recebidos, Relações econômicas internacionais), procura o documento demonstrar que essas questões, que muitos julgam competir cinicamente "às empresas, aos sindicatos, aos Poderes Públicos", constituem também "um problema religioso, um problema de Fé". E prossegue:

Atitudes da Igreja frente à realidade

1. ASSISTENCIALISMO E PATERNALISMO

É a perspectiva com que as pessoas da Igreja, inclusive investidas de grande responsabilidade, enfocam os problemas sociais, e tentam uma resposta como dever de caridade fraterna. Criaram-se e se criam inúmeras obras sociais e caritativas. Fazem-se campanhas.

Estimulam-se, sem qualquer juízo de valor, as iniciativas filantrópicas das burguesias, que procuram com isso livrar-se da consciência de culpa e do reconhecimento de sua responsabilidade pelo desnível entre seu padrão de vida e a miséria circundante.

Procura-se minorar as consequências sem atacar as causas. A linha de ação da Igreja na prática é a conivência com a brutal exploração da população, e a tentativa ilusória de resolver casos individuais de miséria e doença.

Duas consequências altamente negativas resultam disto: a) Surge a necessidade da contribuição dos mais ricos, dos favores de políticos e governos, e perde-se a liberdade da palavra e das atitudes. Um bispo chegou mesmo a escrever: "Estamos vivendo uma hora curiosa em que parece indecente a gente falar de reforma social, e andamos (contra a palavra do Papa ao Celam) "pedindo licença" para falar". b) Como organização, a igreja passa a assumir tarefas temporais que cabem no mundo secularizado de hoje a sindicatos, órgãos governamentais, políticos. E a igreja deixa de apontar as verdadeiras responsabilidades dos cidadãos e dos dirigentes investidos da competente autoridade.

Entretanto, o problema fundamental não parece ser só o da coragem em afrontar os princípios que regem o sistema de produção capitalista, e em decidir-se pela libertação da Igreja dos poderes econômicos, mas também o próprio despreparo do clero, incapaz de se aperceber da verdadeira dimensão do problema.

2. FÉ COMERCIALIZADA

É impossível esconder a exploração de certas devoções populares, envolvendo inclusive, é triste dizê-lo, a Padroeira do Brasil.

Os bilhetes de Santa Rita de Cássia prometendo milagres, os mais impossíveis, vão aparecendo em nossas igrejas com a frequência de sempre. S. Judas em certo mês e só nesse dia e só no altar que lhe é consagrado recebe os agradecimentos generosos dos devotos, em troca de graças alcançadas: em geral favores de ordem "material.

Exploração religiosa, enquanto a aceitação fácil por parte do povo, atraído pelas graças a promessas, traz a consolação ingênua das igrejas cheias e das concentrações em massa e a ilusão igualmente ingênua de uma Fé viva.

Exploração comercial, enquanto tais devoções dão boas arrecadações, que facilitam as construções de santuários e igrejas paroquiais e a manutenção de outras obras.

Perguntamos se isto não justifica a acusação de que a religião é ópio do povo.

Constatamos que a juventude atual vem surgindo com espírito de rejeição de todas essas formas primárias e mentirosas de religião. Se não nos corrigirmos, teremos Fé amanhã?

3. ESPÍRITO DO POVO

O espírito que anima aspectos fundamentais da vida do povo é marcadamente fatalista e conformista. A vida, mesmo na miséria, se aceita como é. É destino. É vontade de Deus. E a maneira habitual com que a maioria dos padres interpreta para o povo fatos da vida, acontecimentos, não é de molde a nutrir essa mentalidade, ao invés de desfazê-la?

Toda essa comercialização e sacramentalização é possível porque "os devotos" ignoram o modo de agir de Deus em relação ao homem. Ignoram que Deus age por causas segundas. Ignoram que o homem é sujeito da história. Que sua vocação é dominar o mundo material e colocá-lo a serviço do homem. Só tem ideia de um Deus paternalista que tudo deixa pronto, ou quando não deixa, é um. Deus arbitrário e vingador. Se dermos ao homem brasileiro a exata noção do agir de Deus, um Deus que respeita a liberdade e dignidade do homem, e se nosso homem brasileiro adquirir consciência desta dignidade e possibilidade de comandar os acontecimentos, só então teremos libertado nossos irmãos de crendices e superstições. Daí a enorme importância para o Evangelho de libertar o homem de todas as escravidões: escravidão do medo, da insegurança, do sentimento de inferioridade.

4. BENS DA IGREJA

Sabemos que a questão está em estudo. Queremos colocar alguns aspectos sérios que nos inquietam:

- a preocupação com, construções é excessiva. Dá-se mais importância aos edifícios que às necessidades atuais dos cristãos. Comparem-se os gastos. Certos movimentos leigos lutam com, sacrifícios para viver, para promover dias e semanas de estudo, encontros regionais e nacionais, enquanto se gastam milhões em construções. Em uma cidade pequena já se gastou 700 milhões de Cr$. velhos na igreja nova, e o piso está orçado em 170 milhões;

- os edifícios não trazem o sinal da pobreza. Há gastos desnecessários e supérfluos. Há o desejo da ostentação e do luxo. Procura-se um padrão burguês. Conserva-se o gosto do monumental. Nestes últimos tempos, foram adquiridas duas casas para dois bispos. Cada uma ficou em perto de 90 milhões de Cr$. velhos;

- a utilização das propriedades, dos espaços, traduz um espírito individualista. Não se dá a dimensão social. Quantos espaços mal ocupados, desperdiçados. Pensamos às vezes na possibilidade de colocar igrejas e capelas a serviço do povo: escolas, cursos, etc.

Segunda parte: Limitações e compromissos

Diante disso, nós, padres, somos levados a nos perguntar: e nós, como vivemos a Fé? Cada um faz sua revisão pessoal. O que queremos dizer em comum é bem nesta perspectiva de revisão. É por causa de nosso amor à Igreja, esse mistério de Cristo no mundo, que temos que falar.

I- AS LIMITAÇÕES QUE SENTIMOS HOJE

1. PRISIONEIROS DE NOSSO ESTILO DE VIDA

1.1. Longe da vida do povo

A começar da casa onde moramos. Nível de classe média, na localização e no conforto. Quando quase sempre a maioria da população é mais pobre. E mais que a casa, os nossos diários de vida, de mentalidade, de educação nos distancia. Aprendemos a viver separados, e a evitar o mundo. Uma falsa noção do "segregatus", ligada à antiga aproximação da vida do padre secular ao ideal monástico, levou-nos a um isolamento social, de vida.

Entretanto, na vida real sentimo-nos mais à vontade no trato com pessoas da classe média e burguesa, que com os trabalhadores e pobres.

Participamos mais de suas realizações: aniversários, almoços, festas de casamento. Identificamo-nos com seus problemas, aspirações e reações.

Outro aspecto. Nossas relações se fazem com os mais chegados à Igreja. Movemo-nos em ambiente nosso, católico, em que temos um lugar, nos vemos aceitos e prestigiados. Com outros ambientes temos contatos superficiais, e com o prestígio social e exterior de padres. Razão por que esses ambientes não nos marcam e não chegam a ser uma séria interrogação para nós.

1.2. Longe das preocupações vitais do povo

A vida dos homens é marcada por problemas de manutenção de mulher e filhos, de emprego estável, de salários, de saúde, de educação. Nossa manutenção, além de só individual, não depende de uma política salarial de governo, de luta sindical, dos interesses de patrões injustos ou em má situação econômica.

Não temos preocupação "de profissão para o futuro, como a Juventude operária e universitária. Não vivemos as deficiências de um ensino profissional que em quantidade qualidade não acompanha os avanços da técnica moderna, ou de um ensino universitário que não atende às exigências da realidade brasileira. Não vivemos na dependência das múltiplas insuficiências das organizações temporais.

Por isto ficamos alheios e não entendemos a luta do camponês, do trabalhador urbano, a luta do universitário e com grande desembaraço lançamos nossas opiniões. Não será a razão de aceitarmos tão pacificamente a violência, a opressão, o clima de guerra enfim, do feudalismo e capitalismo nacionais?

2. PRISIONEIROS DE UMA "MÁQUINA PASTORAL"

2. 1. Sacramentalizar

O padre aparece quase exclusivamente como o homem do culto. Sobretudo como, distribuidor de sacramentos. Está aí para celebrar missas, batizar, casar, enterrar, confessar, promover páscoas, novenas, benzer. O povo o procura para isso. A vida paroquial se organiza nessa perspectiva. A manutenção, os papéis, as construções pesam. Quando se cria uma paróquia nova, implanta-se o mesmo esquema: é um novo centro de serviços religiosos. Não há respeito às etapas na formação da nova comunidade, como prescreve o capítulo II de "Atividade Missionária da Igreja".

A renovação atual atinge bem a liturgia. São mais preocupações, mais tempo, mais energia, mais recursos com a atualização da pastoral sacramental. São necessidades. Entretanto, quando terá tempo para evangelizar? Para sair dessa poderosa estrutura paroquial? E a tarefa primordial da Igreja no Brasil não é a evangelização? Assim achamos.

2. 2. Doutrinar

Está ainda bem presente e vivo entre nós o espírito de doutrinação. Quantos dos Srs. não afirmaram já em assembleias, reuniões, na imprensa, que a maior necessidade religiosa do povo é a instrução religiosa? mas que é essa instrução religiosa?

Por todo o Brasil há cursos para padres, religiosas e leigos. Notamos a mesma perspectiva: estudo de princípios, teses conciliares. Os cursos bíblicos e litúrgicos partem sempre do interior da própria Bíblia e da Liturgia. Sempre das realidades internas da Igreja. Não se parte dos problemas de vida e das necessidades espirituais do homem. Preocupam-nos certos condicionamentos que envolvem os padres e os futuros padres, e causam as deficiências presentes. Por exemplo. Por exemplo, a insuficiente incarnação na vida dos estudos teológicos dificulta uma maior sensibilidade à descoberta e aprofundamento dos valores teológicos da vida quotidiana do mundo. Para o mundo do trabalho, que chance tivemos de explicitar a teologia do trabalho, o mistério da criação no trabalho, o mistério da redenção e a luta pela redenção social, as exigências morais da justiça em país subdesenvolvido?

Quando provocamos as reuniões da comunidade cristã, quase nunca dialogamos sobre a vida terrestre, quase nunca aprofundamos os acontecimentos dos homens à luz do espírito evangélico. Das últimas reuniões do Episcopado temos a sensação profunda e séria de uma Igreja que não entra na vida quotidiana dos homens e do mundo de hoje. Temos a convicção de ainda tristemente vivermos o que o Concílio condena: "Esta separação entre a Fé professada e a vida quotidiana de muitos deve ser enumerada como um dos erros mais graves do nosso tempo" (I.M., n.° 43).

A Declaração de Aparecida, que estabelece as linhas do "Ano da Fé" não foge à perspectiva da doutrinação. Eucaristia, pecado original, Imaculada Conceição, nos termos e no espírito em que foram colocados, são realmente os graves problemas da Fé hoje no Brasil? Sinceramente achamos que não.

2. 3. Não participar

Constatamos que as linhas mestras da pastoral renovada vêm de cima para baixo, vêm prontas. Não há na elaboração e revisão de planos a efetiva participação de padres que exercem a pastoral de base, em contato direto com o povo. Que bispo conversa de verdade com seus padres sobre os temas a tratar e decisões a tomar em assembleias nacionais e regionais? Quem ouve suas necessidades, aspirações e sugestões? Há muitos padres que desejam falar, mas não se dá oportunidade e plena liberdade. Porque essa dificuldade em escutar? "O bom pastor conhece suas ovelhas".

Não se estimulam iniciativas, experiências novas e mais originais. Não se favorece um espírito de busca. Tudo está predeterminado. Há mais executores que criadores. Somos mais objetos da pastoral que sujeitos. Crê-se na força de estruturas bem montadas, e não na ação criadora do Espírito e dos carismas.

Por que tantos juízos apressados e sumários sobre certas iniciativas, e certas pessoas realmente pioneiras? Não são por acaso anseios evangélicos que esquemas pré-estabelecidos e discutíveis impedem de crescer e fermentar? Não nos escapa também à percepção o fato de que os senhores bispos aguardam demais decisões de cima, das autoridades romanas, e não assumem com mais sentido de autonomia e responsabilidade coletiva os rumos da Igreja no Brasil.

Sobre a participação dos leigos nos planejamentos estamos longe demais, e, no entanto, é uma necessidade.

II — NOSSOS COMPROMISSOS

A Fé é adesão pessoal de vida como resposta ao dom de Deus. E por isso, ao terminar esta carta, vendo as limitações da nossa resposta ao mundo de hoje, queremos manifestar aos Srs. alguns compromissos que nos parecem essenciais.

1. NÃO SÓ SACRAMENTALIZAR...

Pessoalmente sentimos a necessidade de uma vida sacramental autêntica e purificada, antes de sermos ministros dos sacramentos. Com este esforço pessoal teremos o direito de ser exigentes para acabar com o "distributismo sacramental". Neste sentido pedimos três medidas:

- que se apoiem e se acelerem os trabalhos e estudos das comissões litúrgicas, nacional, regionais e diocesanas, que, visam a renovação da pastoral de iniciação;

- que as comissões litúrgicas busquem uma renovação auscultando a vida do povo: realidade de trabalho, os atos de luta pela justiça, participação das organizações de bairro, etc. Isto porque toda a vida pode ser "hóstias espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo" (1 Ped. 2, 5), e deve ser animada pelos mistérios litúrgicos;

- que os sacramentos sejam administrados sem qualquer tipo de taxa. Não se cobrem espórtulas de missa.

2. ... MAS EVANGELIZAR

À luz das atitudes de Cristo, da melhor tradição missionária e do Concílio, descobrimos que evangelizar não é só pregar ou dar catequese, seja a mais atualizada.

Toda evangelização tem de levar em conta a realidade dos homens a que se destina, e partir dela. Partir dos problemas, das necessidades, das aspirações e exigências dos homens. E aí descobrir, viver e desenvolver os valores evangélicos, sobretudo as bem-aventuranças e o capítulo 25 de Mateus. Revelar pelas Palavras, explicitando o testemunho de vida, quando for possível.

Isto tem de se traduzir para nós em algumas exigências ou compromissos básicos:

2. 1. Sensibilidade aos valores do povo

Uma característica fundamental do nosso compromisso é sermos sensíveis aos valores que encontramos no meio do povo e que nos leva:

- a ter uma presença efetiva nas grandes

(continua)