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O "MUY BOM FIDALGO" QUE DESCOBRIU O BRASIL

Gustavo Antonio Solimeo

Entre os "barões assinalados / que, da ocidental praia lusitana, / por mares nunca de antes navegados, / passaram ainda além da Taprobana" (Lusíadas, Canto I, 1-4), um nome esqueceu ao Vate: o de PEDRO ALVARES CABRAL.

A posteridade, porém, soube render ao Descobridor do Brasil o tributo de respeito e admiração que seus contemporâneos lhe negaram. No ano recém-findo, ao ensejo do quinto centenário de seu nascimento, duas nações, dois continentes, dois mundos evocaram com veneração a figura daquele que fora destinado pela Providência para "dilatar a Fé e o Império" (Lusíadas, 1, 2).

"Catolicismo", que teve sua programação sobrecarregada em 1968 — com um número duplo dedicado a Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano e um número tríplice consagrado à campanha do abaixo-assinado da TFP ao Papa — não se pôde associar a essas comemorações no próprio ano jubilar. Fá-lo agora, na primeira oportunidade, a qual coincide com mais um aniversário da partida do Tejo da esquadra cabralina para a histórica viagem de que resultaria descoberto para a civilização e para a Igreja o nosso Brasil.

"Nenhuma Casa a sobrepuja em feitos de variada lição"

Em pleno coração de Portugal, na Beira montanhosa, a um tempo agreste e florida, ergue-se o Castelo de Belmonte. O colosso de pedra, dominando a paisagem, resiste impávido aos séculos e aos ventos, numa afirmação perene da grandeza de seu passado.

Construído pelos agarenos ao tempo em que os sequazes de Mafoma impunham ainda com seus alfanjes pesado jugo sobre aquelas partes de Espanha, foi conquistado pelos cristãos depois de árduas refregas, e reedificado por D. Diniz, o marido da Rainha Santa Isabel. A soberba torre quadrangular evoca-nos os gloriosos dias em que a bravura e a fé forjaram na extremidade ocidental da Europa um Reino Cristão. Parece-nos ainda hoje ver postadas nas ameias as atalaias a perscrutar o horizonte, atentas a qualquer movimento de homens d'armas. Sobre a porta, insculpido na pedra dura, um escudo recorda, na simplicidade de suas figuras — duas cabras passantes — o nome de seus poderosos Senhores de outrora: CABRAL.

Esse apelido é tão antigo e tão ilustre, que desafia os linhagistas a lhe buscarem as origens nas brumas do mais remoto passado lusitano. O Visconde de Sanchez de Baêna assim escreve:

"A família Cabral demarca a sua existência desde tempos imemoráveis, e, como muitas outras, teve prósperas e adversas alternativas de fortuna, ora subindo até aos mais elevados cargos da república, ora descendo até se perder numa obscuridade plebéia.

Aparece e desaparece durante o reinado de D. Afonso III, bruxuleia nos de D. Diniz e de D. Afonso IV, volta à cena dos acontecimentos nos de D. Pedro I e D. Fernando; e afinal no de D. João I firma-se definitivamente nos fastos mais ilustres da nobreza de Portugal" ("O Descobridor do Brasil, Pedro Alvares Cabral", Lisboa, 1897, pp. 10-11).

E mais adiante: "Nenhuma outra a sobrepuja em sólida antiguidade de nobreza, e feitos de edificante e variada lição. O seu aparecimento, embora a princípio não se possa coordenar numa série genealógica, que nos leve, indivíduo por indivíduo, a estabelecer a sua continuidade desde os primeiros tempos da monarquia, remonta-se todavia bem longe, vendo nós brilhar de espaço a espaço nas lutas de Portugal nascente, alguns indivíduos do apelido Cabral" (p. 22).

No século XIII deparamo-nos com Pedro Annes Cabral, Comendador e Alcaide-Mor do Castelo da Vide, senhor de várias terras, ocupando um lugar de Oficial-Mor entre os Grandes do reino, o que denota provir de nobre e antiga linhagem; sua assinatura aparece em uma escritura celebrada entre o Infante D. Afonso, filho do Rei D. Afonso III, e a Ordem de Aviz, no ano de 1278. Foi um dos mais valorosos guerreiros de seu tempo, companheiro de D. Sancho II e de D. Afonso III nas suas empresas contra os mouros. Soube com sua faina belicosa granjear para si uma boa parte da glória que coube aos portugueses na conquista do Algarve, em 1248, que completou a libertação definitiva de Portugal do domínio sarraceno.

Durante os trágicos sucessos dos reinados de D. Afonso IV e de D. Pedro I, vemos surgir a figura de D. Gil Cabral, Bispo da Guarda. Exerceu esse Prelado grande influência sobre o ânimo do Rei D. Pedro, o Cruel, procurando moderar-lhe a vingança que tirava aos matadores de Inês de Castro, a cujo casamento com o rude Monarca jurou D. Gil ter assistido (cf. Sanchez de Baêna, pp. 23 e 75).

Alvaro Gil Cabral, sobrinho do Bispo da Guarda, é o primeiro que os genealogistas encontram com sucessão comprovada. Muito honrado de D. Fernando, o derradeiro afonsino, era Alcaide-Mor do Castelo da Guarda quando o Rei de Castela, D. João, genro do Soberano português, entrou em Portugal a reclamar a coroa pela morte do sogro. Muitos fidalgos lusos o apoiaram em suas pretensões, e o Castelhano tentou obter a adesão do poderoso Senhor da Guarda. Debalde, porém. Cerrou-lhe Alvaro Gil as portas de seu castelo e, com besteiros nas ameias e frecheiros nas barbacãs, proclamou-se pelo Mestre de Aviz, como o fizera o Bem-Aventurado Nuno Alvares Pereira. Essa atitude corajosa e outros grandes serviços prestados à causa do futuro D. João I foram largamente recompensados pelo Mestre de Aviz, então apenas Defensor e Regedor do Reino, que lhe concedeu várias terras e lhe fez mercê, em 1384, da alcaidaria — de juro e herdade para sempre, isto é, hereditariamente — dos castelos da Guarda e de Belmonte, sem que fossem ele e seus descendentes obrigados a prestar homenagem ao Rei por esses castelos.

Vemos assim a sorte dos Cabrais ligada sempre à da monarquia, desde as duras pelejas da Reconquista e dos dias difíceis em que a independência pátria esteve ameaçada. Depois de expulsar definitivamente de seu solo os mauritanos, sai-lhes ao encalço o pequenino Portugal, que vai desafiá-los em sua mesma terra africana. Nesta nova epopéia figuram ainda os Cabrais na primeira linha.

Luís Alvares Cabral, filho e herdeiro de Alvaro Gil, escudeiro-fidalgo de D. João I e vedor da Casa do Infante D. Henrique, o Navegador, acompanha a êste Príncipe na tomada de Ceuta e, sempre a seu lado, vem a perecer na conquista de Tanger.

O filho, Fernão Alvares Cabral, seguira o pai nas campanhas de Ceuta e de Tânger, entrando nas mais acesas refregas. Casou-se com D. Teresa Novaes de Andrade, filha do Almirante de Portugal e Alcaide de Viseu, Rui Freire de Andrade. Desse matrimônio nasceu Fernão Cabral, de quem se falará adiante.

Foi um Cabral o primeiro a desafiar o tenebroso Atlântico

Quando Portugal se faz ao mar, lançam-se com ele os Cabrais: "As primeiras léguas de mar que os portugueses cortaram para o Ocidente foi sob o comando de um Cabral. Ao arrojado Comendador de Almourol coube a dita de preceder todos todos os vultos que se internaram pelas brumas tenebrosas do Oceano Atlântico" (Sanchez de Baêna, p. 25). Outro não era senão o intrépido Frei Gonçalo Velho Cabral, comendador de uma das mais antigas e afamadas praças da Ordem Militar de Cristo, o qual em 1432 descobriu, por ordem do Infante D. Henrique, o arquipélago dos Açores, cujo governo logo lhe confiou o Navegador.

Mas eis que Portugal se atira à conquista da Índia; tampouco a esses "cristãos atrevimentos" (Lusíadas, 7, 14) podiam ficar alheios os Cabrais. Descoberta a desejada rota, apressou-se D. Manuel em estender o seu domínio àquelas longínquas paragens e determinou mandar nova e aguerrida expedição para submeter os régulos indianos, pois "segundo o negocio ficava suspeitoso polas cousas que Dom Vasco da Gama passara — conta-nos o cronista João de Barros — parecia que mais havia de obrar neles temor de armas que amor de boas obras" (Décadas da Índia", Década I, livro V, cap. 1).

Convocou o Rei ao seu Conselho para decidir sobre a armada que enviaria. "E não somente se assentou no conselho o número das naus e gente que havia de ir nesta armada — prossegue o mesmo cronista — mais ainda o capitão-mor dela, que por as calidades de sua pessoa, foi escolhido Pedralvares Cabral, filho de Fernam Cabral" (loc. cit.).

Pouco se sabe da infância e juventude do nosso herói

Nasceu Pedro Alvares Cabral no Castelo de Belmonte, em 1468, segundo se acredita, pois não se guardou memória exata do ano. Foram seus pais Fernão Cabral, bisneto do aguerrido Alcaide-Mor da Guarda, Alvaro Gil, e D. Isabel de Gouveia.

Fernão Cabral, apelidado o gigante da Beira por sua avantajada estatura e força hercúlea, participara nas conquistas de Alcácer Seguer, Arzila e Tânger, na África, e brandira igualmente a serviço de seu Rei nos campos de Castela sua descomunal maça de ferro com peso de uma arroba, que se conservou durante muito tempo no Castelo de Belmonte (cf. Sanchez de Baêna, p. 17). Fidalgo da Casa de El-Rei D. Afonso V, herdou as alcaidarias e senhorios de seu pai em Belmonte, Azurara, Manteigas, Moimenta, Quinta de Santo André; a esses bens vieram juntar-se os que sua mulher houve por morte do pai, o probo João Gouveia, Alcaide-Mor de Castelo Rodrigo, Senhor de Almendra, Valhelhas e Castelo Bom. Fernão Cabral foi um dos grandes potentados de seu tempo, pois além de senhor de opulenta casa, ocupou durante dezessete anos o cargo de corregedor das justiças das comarcas da Beira e Ribacoa, exercendo-lhe as funções sob dois Monarcas, D. Afonso V e D. João II, com um rigor que o fez largamente temido e respeitado (cf. Jaime Cortesão, "A Expedição de Pedro Alvares Cabral e o Descobrimento do Brasil", Lisboa, 1922, pp. 62-63; Sanchez de Baêna, pp. 17-18).

O nome de Fernão Cabral aparece em várias trovas do Cancioneiro Geral de Garcia de Rezende, que ora satirizam o poderoso corregedor das justiças, ora exaltam a grandeza da sua estirpe.

Da infância de Pedro Alvares Cabral pouco se sabe. Ele a terá talvez passado na calma daquele austero e abastado castelo beirão, a ouvir enlevado, entre os folguedos próprios da idade, a narração dos heróicos feitos de seus maiores, cuja tradição de lealdade, valentia, nobreza e sacrifício pela pátria haveria de influir na formação de seu caráter (cf. J. Estêvão Pinto, "Pedro Alvares Cabral", Lisboa, 1968, pp. 8-9).

"Entrou em verdes anos, segundo os usos do tempo, para os paços do Rei D. João II, onde no foro de moço-fidalgo se filhou, como lhe competia pelo seu nascimento, e de harmonia com as praxes então estabelecidas" (Sanchez de Baêna, p. 56). O foro de moço-fidalgo, como se sabe, pertencia à primeira das três ordens hierárquicas da antiga nobreza portuguesa, e dava direito a ser, eventualmente, chamado a desempenhar honrosas funções na corte.

Ali aprendeu o futuro Descobridor o uso das armas, as regras da sociabilidade cortesã e a instrução então usual às pessoas de sua condição. Ignora-se até quando demorou-se Cabral na corte; seu nome figura, contudo em 1484 na Lista dos Moços-Fidalgos da Casa de D. João II. O Monarca seguinte, D. Manuel I, o agraciou com o foro de Fidalgo de seu Conselho e lhe fez mercê do hábito de Cristo e da tença anual de 40$000 réis.

A elevada linhagem e o prestígio da família permitiram a Pedro Alvares Cabral contrair matrimônio com D. Isabel de Castro, dama pertencente à mais alta nobreza do Reino, como terceira neta, que era, dos Reis D. Fernando de Portugal e D. Henrique de Castela. Sobrinha do grande herói da Índia, Afonso de Albuquerque, a quem chamou Camões de "terribil" pelo temor que infundia aos inimigos e pelo rigor de sua justiça, foi ainda irmã de D. Garcia de Noronha, terceiro Vice-Rei da Índia. Este casamento trouxe para Cabral um rico dote que, somado à parte que lhe coubera na sucessão paterna, fazia-o senhor de algum cabedal (segundo a maioria dos biógrafos, teria ele se casado muito cedo; outros, contudo, dão o ano de 1503, quando contava já 35 anos, como o de seu matrimônio). Houve seis filhos, dois varões e quatro mulheres.

El-Rei D. Manuel, na carta em que confirma e divide em duas partes a tença concedida por seu antecessor a Pedro Alvares e seu irmão mais velho, João Fernandes Cabral, declara, referindo-se unicamente ao futuro Descobridor do Brasil, haver "respeito a seus serviços e merecimentos" (Jaime Cortesão, p. 66).

Que serviços e merecimentos seriam esses? Nas antigas crônicas não encontram eles registro algum; também os modernos historiadores nada aduzem a propósito dos méritos adquiridos por Cabral antes de sua viagem ao Oriente.

Jaime Cortesão aventa a hipótese de feitos em África, por serem já tradição da família, e costumarem os jovens fidalgos de então iniciar-se nas lides de armas naquelas paragens (pp. 6768)

O fato é que Pedro Alvares Cabral já havia dado mostras bastantes das "calidades de sua pessoa" — como vimos dizer o cronista João de Barros — quando se viu escolhido para ser posto à testa da poderosa armada que deveria submeter os príncipes das Índias. Cumpre, porém, esclarecer que essas "calidades" não precisavam de ser necessàriamente ligadas às coisas do mar, pois, como mostra o Visconde de Sanchez de Baêna, os fidalgos que em geral comandavam essas expedições marítimas eram educados no trato dos assuntos de Estado e nas lides dos campos de batalha, e freqüentemente pisavam pela primeira vez as tábuas de um navio ao receberem semelhantes missões. Se bem que alguns desses, de tanto andarem embarcados, acabassem adquirindo conhecimentos sobre a complexa arte de marear, como aconteceu com o grande Afonso de Albuquerque, não é menos certo que um navegador do porte de Vasco da Gama, por exemplo, passou a sua mocidade entre os livros de teologia e de gramática latina com que se preparava para o sacerdócio (destino quase obrigatório dos filhos-segundos, conforme censurável costume da época), e o primeiro tombadilho em que pôs o pé foi o do navio com que dobrou o Cabo da Boa Esperança e chegou às Índias (cf. Sanchez de Baêna, pp. 143-148).

"& dandolhes el Rei a benção de Deos & a Sua, se embarcárão"

Tudo pronto para a partida da esquadra confiada a Pedr'Alvares Cabral, conta-nos João de Barros, "foi el-Rei, que então estava em Lisboa, um domingo oito dias de Março do ano de mil e quinhentos, com toda a corte ouvir missa a Nossa Senhora de Betlem que é em Rastelo: onde já as naus estavam com seu alardo da gente de armas feito. Na qual missa houve sermão que fez Dom Diogo Ortiz, Bispo de Cepta, que depois foi de Viseu, todo fundado sobre o argumento desta impresa: estando no altar enquanto se disse a missa arvorada uma bandeira da cruz da Ordem de Cavalaria de Cristo, que no fim da missa o mesmo Bispo benzeu. E desi [depois disso] El-Rei a entregou a Pedralvares Cabral, com a solenidade de palavras que os tais auctos requerem: ao qual enquanto se disse a missa el-Rei por honra do cargo que levava teve consigo dentro da cortina” (Década I, livro V, cap. 1).

"E assi — narra outro cronista da época — [El-Rei] lhe pos na cabeça hum barrete bento que ho Papa lhe mandara. E deitandolhe ho bispo a benção ho levou el Rey a embarcar, falando sempre coele ate ho mar: & hi lhe beyjarão Pedralvares & os outros Capitães a mão: & dandolhes el Rey a benção de Deos & a sua se embarcárão nos bateis, desparando toda a artelharia da frota com grande arroido" (Fernão Lopes de Castanheda, "Historia do Descobrimento & Conquista da Índia pelos Portugueses", livro I, cap. XXX).

Aquele foi um dia de grande festa, pois além da corte, que se deslocara toda para o Restelo, considerável multidão do povo para ali também se dirigiu, como podemos ver pelas crônicas. Grande número de batéis rodeava as naus "e assi serviam todos com suas librés e bandeiras de cores diversas, que não parecia mar, mas um campo de flores, com a frol daquela mancebia juvenil que embarcava. E o que mais levanta o espírito destas cousas eram as trombetas, atabaques, sestros, tambores, frautas, pandeiros: e até gaitas, cuja ventura foi andar em os campos no apacentar dos gados, naquele dia tomaram posse de ir sobre as agoas salgadas do mar nesta e outras armadas, que depois a seguiram, porque para viagem de tanto tempo, tudo os homens buscavam para tirar a tristeza do mar" (João de Barros, Década I, livro V, cap. 1).

Por falta de vento, não puderam as naus largar ferros naquele dia; ao seguinte, segunda-feira, fazia-se ao mar "a mais fermosa e poderosa armada que té aquele tempo par tam longe deste Reino partira" (id., ibid.).

"A principal cousa do regimento que Pedralvares Cabral levava"

Duplo era o objetivo da expedição: a dilatação da Fé e do Império, como o definiu a voz inspirada de Camões.

Assim o atestam os cronistas: "E porque el Rei foi sempre mui inclinado às cousas que tocavam a nossa sancta Fé catholica, mandou nesta armada oito frades da Ordem de S. Francisco, homens letrados, de que era Vigário Frei Henrique, que depois foi confessor del Rei e Bispo de Cepta, os quaes com oito capelaens, e hum vigario ordenou que ficassem em Calecut, para administrarem os Sacramentos aos Portugueses, e aos da terra que se quisessem converter à Fé" (Damião de Goes, "Chronica d'El Rei D. Manuel", Parte I, cap. LIV).

E acrescenta João de Barros: "E a principal cousa do regimento que Pedralvares levava era, primeiro que cometesse os moiros e a gente idolatra daquelas partes com o gladio material e secular: leixasse a estes Sacerdotes e Religiosos usar do seu espiritual Que era denunciar-lhes o Evangelho, com amoestações e requirimentos da parte da Igreja Romana, pedindo-lhes que leixassem suas idolatrias, diabolicos ritos e se convertessem a fé de Cristo. [...] E quando fossem tão contumaces que não aceptassem esta lei de fé, e negassem a lei de paz que se deve ter entre os homens pera conservação da especia humana, e defendessem "[impedissem] o comércio e comutação, que é o meio per que'se concilia e trata a paz e amor entre todolos homens, [...] em tal caso lhes pusessem ferro e fogo, e lhes fizessem crua guerra" (Década I, livro V, cap. 2).

"O Capitam pos nome a terra a Terra da Vera Cruz"

Levantou ferros a esquadra de Cabral, como vimos, aos 9 de março, segunda-feira. A 14, sábado, achavam-se as naus próximas à Grã Canária. Seguia a viagem sem novidades e no domingo seguinte avistaram as ilhas de Cabo Verde; à altura da de São Nicolau, informa Pero Vaz de Caminha na sua famosa Carta, "se perdoo da frota vasco datayde com a sua nao sem hy aver tempo forte nem contrário pera poder ser. Fez o Capitam suas deligencias pera o achar a huas e outras partes e nom pareçeo mais".

Era o primeiro incidente da viagem; logo prossegue o bom do escrivão a sua narrativa: "E asy seguimos nosso caminho per este mar de longo até terça feira doitavas de pascoa que foram xxi dias dabril que topamos alguns synaes de terra [...], os quaes herã muita camtidade dervas compridas a que os mareantes chamã Botelho e asy outras a que tam bem chamã rabo dasno. E a quarta feira seguinte pola manhã topamos aves a que chamã fura buchos e neste dia aoras de vespera ouvemos vista de terra premeiramente dhum grande monte muy alto e redondo e doutras serras mais baixas ao sul dêle e de terra chã com grandes arvoredos ao qual monte alto o Capitam pos nome o Monte Pascoal e a terra a Terra da Vera Cruz..."

Assim nasceu o Brasil, Desde o primeiro instante em que é avistada a nova terra, coloca-a Cabral sob a proteção da Cruz de Cristo. Não fora sob esse Sinal que a armada partira do Reino? Não estava Ele estampado na própria bandeira da expedição, sob a forma da cruz potêntea de goles, dos Freires de Cristo? Aliás, estava já o futuro país-continente, antes mesmo de ser descoberto, colocado debaixo da autoridade da Ordem de Cristo, pois El-Rei D. Duarte concedera à insigne Milícia a jurisdição espiritual de todas as descobertas portuguesas, atuais e por se fazer, concessão essa renovada por D. Afonso V e confirmada pelos Papas Eugênio IV, Nicolau V, Calisto III e Sixto V (cf. José Carlos de Macedo Soares, "Fronteiras do Brasil no Regime Colonial", Rio de Janeiro, 1939, pp. 11-12).

E para que aquela terra nova ficasse mais intimamente ligada ao Mistério da Cruz, determinou o Capitão-Mor fazer dizer ali a Missa, na qual é renovado de forma incruenta o Sacrifício que sobre a Cruz se consumou. Durante toda a Missa "era com o Capitam a bandeira de Cristo com que sayo de Belém a qual esteve sempre alta à parte do Evangelho", escreve Caminha; procurou por sua vez o celebrante, Frei Henrique, no seu sermão, relacionar com a Cruz de Cristo a viagem que faziam: "tratou de nossa vinda e do achamento desta terra, conformandose com o sinal da Cruz, sob cuja obediencia viemos".

Mandou Pedr'Alvares que se armasse com dois grandes paus um Santo Lenho, a ser solenemente erguido no dia 1° de maio, que era uma sexta-feira, dia especialmente consagrado à memória da Paixão. Na véspera, vindo à terra — conta-nos Pero Vaz de Caminha — "quando saymos do batel disse o Capitam que seria bom hirmos dereitos à Cruz que estava emcostada a hua arvore junto com o rio pera se poer de manhã que he sesta feira, e que nos posessemos todos em giolhos e a beijassemos pera eles [os índios] verem ho acatamento que lhe tinhamos, e asy o fezemos. E [a] eses x ou xii que hy estavam acenaramlhes que fezessem asy e foram logo todos beijala".

No dia 1°, escolhido o lugar mais adequado, enquanto alguns homens faziam a cova para chantar o precioso Lenho, foi o Capitão com os outros a buscá-lo. Trouxeram-no solenemente, em procissão, com os Sacerdotes e Religiosos à frente. Erguido o Cruzeiro, com as armas reais que lhe pregaram, armou-se um altar ao pé dele e Frei Henrique celebrou novamente Missa, durante a qual Pedro Alvares Cabral e alguns de seus homens comungaram.

Estava, pois, plantada em nosso solo aquela mesma Cruz que acima dele, no céu, já havia colocado o próprio Criador. Nem escapara a formosa constelação à observação do "bacharel mestre Johan físico e çerurgyano" do Rei, que ia na armada de Cabral, o qual a assinalou na carta que de "Vera Cruz" dirigiu a D. Manuel.

Este nome, bem como o de Santa Cruz, foi o que realmente teve a nossa terra nos primeiros anos. "Porém — escreve João de Barros — como o demonio per o sinal da Cruz perdeu o dominio que tinha sobre nós, mediante a paixão de Cristo Jesu consumada nela: tanto que daquela terra começou de vir o pau vermelho chamado brasil, trabalhou que este nome ficasse na boca do povo, e que se perdesse o de Santa-Cruz. Como que importava mais o nome de um pau que tinge panos que daquele pau que deu tintura a todolos Sacramentos per que fomos salvos, per o sangue de Cristo Jesu que nele foi derramado. E pois em outra cousa nesta parte me não posso vingar do demonio, amoesto da parte da Cruz de Cristo Jesu a todolos que este lugar lerem, que deem a esta terra o nome que com tanta solenidade lhe foi posto, sob pena de a mesma cruz que nos há-de de ser mostrada no dia final, os acusar de mais devotos do pau brasil do que dela" (Década I, livro V, cap. 2).

Descoberta a terra, não vem ao caso discutir aqui se intencionalmente ou por acaso — discussão essa que apaixonou os eruditos do século passado, mas hoje perfeitamente superada (ninguém mais aceita a tese do acaso) — dela tomou posse Pedro Alvares Cabral em nome de seu Rei, e mandou o navio de Gaspar de Lemos de volta a Lisboa a dar notícia do achamento. Ele próprio zarpou com as outras naus para a Índia no dia 2 de maio, depois de se terem aprovisionado de lenha, água e mantimentos, que junto à praia sobejavam.

"Não se ouvia mais que o nome de Jesu e de sua Madre"

Deixando para trás o novo senhorio português, rumou a esquadra cabralina para o Cabo da Boa Esperança, a caminho da Índia distante e misteriosa. Navegavam já obra de nove dias, quando viram aparecer entre as nuvens um grande cometa, que durante uma semana brilhou no firmamento, enchendo a todos de grande temor, que o tomaram como mau presságio.

Mais adiante, um espesso negrume, a que chamavam "bulcão", envolveu os valentes navegadores. Desabou então uma terrível borrasca, e o mar ficou tão revolto, que ora parecia lançar ao ar os navios e em seguida tragá-los num profundo abismo. "Finalmente, escreve João de Barros, assi cortou o temor destas cousas o animo de todos: que no geral da gente não havia mais que o nome de Jesu, e de sua Madre, pedindo perdão de seus pecados, que é a última palavra daqueles que teem a morte presente" (Década I, livro V, cap. 2).

Tão de improviso se desencadeou a tormenta, que não houve tempo de colher os panos; num abrir e fechar de olhos, soçobraram quatro naus, sem que delas se salvasse coisa viva. Eram seus capitães Simão de Pina, Luís Pires, Aires Gomes e Bartolomeu Dias, o intrépido descobridor do cabo a que chamara das Tormentas, em cuja altura se encontravam. Era como se o "Tormentório" se vingasse daquele que havia ousado vencer-lhe pela primeira vez as insídias: "Aqui espero tomar, se não me engano, / de quem me descobriu suma vingança. / E não acabará só nisto o dano / de vossa pertinace confiança: / antes, em vossas naus vereis, cada ano, / se é verdade o que meu juízo alcança, / naufrágios, perdições de toda á sorte, / que o menor mal de todos seja a morte!" (Lusíadas, V, 44).

As naus que escaparam ao furor dos elementos, depois de correrem vinte dias em "árvore sêca" (isto é, com as velas arriadas) e separadas, reuniram-se nas costas de Moçambique. A 16 de julho descobre Cabral o parcel de Sofala; prosseguindo a navegação, achava-se a armada em Quíloa a 26 do mesmo mês. Manteve o Capitão-Mor conversação com o soberano local, Ibraim, mas foi avisado pelo irmão do sultão de Melinde, que ali se achava, de que o de Quíloa urdia uma traição aos navegantes lusos, razão pela qual seguiu Pedr'Alvares adiante, sem se deter na ilha por mais tempo.

Em Melinde, teve a armada acolhida amistosa, pois o sultão permanecia fiel ao tratado que havia anteriormente celebrado com os portugueses, e cumulou a todos de presentes, oferecendo ainda ao Capitão-Mor dois pilotos que o conduzissem às costas malabares. Partiu dali Cabral a 7 de agosto e no dia 22 chegou às Ilhas Angedivas, onde se demorou por duas semanas a refazer-se dos trabalhos do mar; finalmente aportou a esquadra a 13 de setembro em Calecute, meta de sua viagem.

O poderoso Samorim autoriza a pregação do Evangelho

No mesmo dia em que Pedro Alvares Cabral e seus companheiros chegaram a Calecute, mandou o Samorim, senhor daquelas terras, que os fossem visitar alguns naires (guardas nobres) de sua casa e um mercador mouro, muito rico, e que de sua parte convidassem o Capitão-Mor a vir ter com ele. O fidalgo luso, contudo, não se arriscou a desembarcar sem antes exigir reféns que fossem pessoas gradas daquela corte.

Os mouros da cidade, procuraram desde logo indispor o régulo malabar com Cabral, dizendo-lhe que a exigência deste era uma afronta, pois parecia que ele não confiava na palavra régia. Não quis, porém, o Samorim entrar em choque com os recém-chegados, cuja fama conhecia de sobejo, e enviou os reféns pedidos; Pedr'Alvares, por sua vez, mandou desembarcar alguns portugueses que deu por sua garantia.

O encontro do Samorim com o nobre Capitão realizou-se em um "cerame", espécie de choupana com teto de ramagens, junto à praia, pois não quis o chefe português internar-se na cidade, longe de sua esquadra e à mercê dos indianos, em quem não confiava. Desembarcou Cabral em traje de grande cerimônia, e acompanhado de trinta fidalgos também ricamente vestidos. "O qual em chegando á praia tomarão do batel em hum andor, em que acompanhado de muitos Caimaens, Paicaens, e Naires, que hiam a pé, foi levado até o Cerame, onde achou el Rei vestido de pannos dalgodão, seda, e ouro, e arraiado de tanta, e tão rica pedraria, que não sômente lhe fez espanto quando a elle chegou, mas ainda as chamas, que dellas sahião, lhe impedião a vista", escreve com maravilhada hipérbole Damião de Goes (Chronica, Parte I, cap. LVIII).

O poderoso rajá fez sentar o visitante em uma cadeira de prata junto dele, e por meio de intérpretes procurou saber como vinha, e como lhe fora a viagem, e como ficava El-Rei de Portugal, seu irmão. Depois de a tudo responder, apresentou-lhe o Capitão-Mor uma carta mandada por D. Manuel, escrita em língua arábica e em português, e entregou o rico presente que o mesmo Rei enviara, a saber, uma bacia de mão com seu gomil, tudo de prata trabalhada, arte em que já então eram mestres os portugueses.

Foi em seguida celebrado um acordo, pelo qual o Samorim concedia uma casa junto à praia para os lusitanos estabelecerem a sua feitoria, com livre trânsito e permissão para o comércio, como se fossem da terra. Prometia ainda o marajá que os navios de Cabral seriam carregados dentro de vinte dias, com preferência aos de qualquer outra nação. Autorizou por fim a pregação dos Frades em sua cidade, pelo que desembarcaram, juntamente com o feitor designado, Ayres Corrêa, Frei Henrique e os seus Religiosos.

"Tinhão os mouros odio aos nossos por serem estes Christaons"

Não podiam os mouros de Calecute se resignarem a ver os cristãos levarem a melhor sobre eles no comércio do qual tinham tido até então o monopólio, e — coisa mil vezes pior — pregarem livremente a Fé de Jesus Cristo. Urdiram pois suas intrigas junto ao Samorim. E assim é que que com a conivência deste, que não os queria por inimigos, puseram-se a comprar secretamente todas as especiarias que havia na cidade e as que chegavam de fora, de maneira tal que Ayres Corrêa nada encontrava para carregar os seus navios, a não ser uma pouca mercadoria a preço que não lhe era possível aceitar.

Ante as queixas do feitor, o dúplice magnate sugeriu-lhe que tomasse pela força uma nau surta no porto, para ver se os mouros a estariam carregando sem autorização régia. O ingênuo Corrêa aceitou a idéia e propôs ao Capitão-Mor a empresa; "Pedralvares com êste recado não ficou muito satisfeito, porque sabia já per experiencia que era el Rei de Calecut vario, e mudavel, e via que o recado era cheo dalgum conselho armado em seu perjuizo, pelo que pos em duvida tentar o negócio, em lugar onde os agravados serião mais poderosos, e mais favorecidos que os nossos". Entretanto, como estava ali já há três meses, sem lograr carregar seus navios, e "movido por requerimentos que lhe cada dia mandava da terra Ayres Corrêa, dizendo-lhe que sem tomar especearias das naos dos Mouros a armada tornaria de vazio per o regno, porque elle se não atrevia a achar mais da que já tinha comprada, e isto com protestos de damnos e interesses, mandou [Cabral] recado ao capitão, e mestre de huma nao, de que era senhorio hum Mouro rico de Calecut, per nome Cogecem Micide, que estava já fora do porto carregada de mercadorias, e ancora a pique, que se não fezesse á vela por el Rei de Calecut assi mandar, do que não fazendo caso, mandou aos mestres da frota, que cada hum em seu batel armados lhe fossem metter aquela nao ha toa dentro no porto, o que fezerão sem contradição" (Damião de Goes, Chronica, Parte I, cap. LIX).

Era o que queriam os de Mafoma; o rico comerciante dono do navio foi queixar-se ao Samorim, e depois de receber dele a garantia de que não interviria no negócio, com os mais mouros da cidade, movidos pelo "odio que tinhão aos nossos por serem

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