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(continuação)

O "MUY BOM FIDALGO" QUE DESCOBRIU O BRAZIL

Cristaons" (id., ibid.), acometeu contra a feitoria portuguesa, matando aos que não puderam fugir. Pedr'Alvares, que se encontrava acamado de febres, mandou socorro à terra por Sancho de Tovar, que recolheu em batéis aos que escaparam vivos, todos muito feridos, entre os quais se achava o bravo Frei Henrique. A feitoria, atacada por mais de quatro mil infiéis, foi pilhada e saqueada, sendo mortos sessenta ou setenta portugueses.

Informado da morte de Ayres Corrêa e de tantos companheiros, viu Cabral o mal que havia feito em mandar tomar a nau dos mouros, e lastimou-se de ter consentido na proposta do Samorim apesar de lhe ter previsto as funestas conseqüências. Reuniu então todos os seus Capitães para deliberar sobre a atitude a ser tomada, e resolveu aguardar que o malabar lhe desse alguma satisfação, antes de tomar represália.

Enérgica represália de guerra do Capitão-Mor agravado

"E vendo Pedralvares passar aquele dia, & que el rey não mandava nehua desculpa — escreve Fernão Lopes de Castanheda — ao outro que foram dezasete de Dezembro mandou por seus capitães tomar dez naos de mouros que estavam no porto carregadas de fazenda e de gente, & forão tomadas por força darmas, & forão mortos seiscentos mouros & outros feridos sem morrer nenhum Português. Tomadas as naos foy achada nelas alguma espiciaria, & outra fazenda, & tres Alifantes que Pedralvares mandou salgar pera mantimento da gente, & despejados ficarão nelas os cativos atados de pés & mãos, & assi forão queimadas a vista de muita gente da cidade que estava na praya pera lhes acodir mas não ousaram com medo de nossa artelharia. E era espantosa cousa ver arder dez naus todas juntas & fazeremse carvoens, & ouvir a grande grita dos mouros que estavão dentro, & nisso se gastou todo aquele dia. E ao outro tendo Pedralvares chegadas as naos a terra ho mais que pode mandou desparar a artelharia q. em todo o dia não fez outra cousa, & fez muyto grande dano por toda a cidade, derribando casas, quebrando arvores, & matando gente sem conta. E a el Rey de Calicut lhe foy forçado sairse da cidade porque junto dele espedaçou um pelouro hum Naire seu privado: & da banda do mar não ficou nenhua casa em pé nem a gente ousou desparar, & passouse da banda do sertão" (livro I, cap. XXXIX).

Depois desse espantoso ato de energia e altivez, partiu Cabral para Cochim, a ver se podia fazer amizade com o rei, de quem tinha informação de ser homem muito cordato e desejoso da aliança com os portugueses. Ali chegou na véspera do Natal daquele ano de 1500, sendo recebido com toda a cordialidade. Empenhou-se o rajá em que as naus lusitanas fossem carregadas prontamente; e obrou nisso com tanta diligência, como se se tratasse de negócio próprio. Foi assinado um tratado entre o rei de Cochim e D. Manuel, pelo qual ficou estabelecida a primeira feitoria portuguesa nas costas do Malabar. Enviou o régulo um embaixador a Lisboa, para levar à Rainha de Portugal um rico presente de sedas e magnífico colar de pérolas.

A fama de valor dos portugueses e a notícia da terrível vingança que o fidalgo beirão tirara ao rajá de Calecute correram céleres por todo o Industão. Os senhores de Cananor e de Coulão, que com o de Calecute eram os principais de toda a costa malabar, enviaram mensagens ao Capitão para que fosse aos seus portos completar a carga que lhe faltasse. Dirigiu-se Cabral a Cananor, onde comprou algum gengibre e canela, parando só um dia, depois do que zarpou de volta para o Reino, levando igualmente um embaixador desse soberano.

De, volta ao Reino, depois de 470 dias de viagem aventurosa

Ao caminho topou com uma grande esquadra de Calecute que o Samorim lhe mandara ao encalço, a qual, contudo, pouco confiada dos seus vinte navios e numerosas outras embarcações menores, guardou distância das seis naus de Pedro Alvares Cabral, sem ousar atacá-las. Não quis tampouco o Descobridor oferecer-lhes combate, pois estava com os navios abarrotados, pelo que passou direito em frente ao inimigo.

Tocou a frota lusa para Melinde, em cujas alturas novo tributo haveria de pagar à inconstância do mar. A nau de Sancho de Tovar, o valente Sota-Capitão da armada, estando com carga plena, encalhou em uns baixios. Não podendo salvá-la, mandou Pedr'Alvares deitar-lhe fogo. As chamas, no entanto, não devoraram à artilharia de bordo, que foi aproveitada pelo régulo de Mombaça para hostilizar de futuro os navios portugueses na entrada de seu porto. Passados mais uns dias, chegou-se a Moçambique, demorando-se algum tempo ali o Capitão-Mor a reparar os navios para a dura prova do Cabo da Boa Esperança. Fazendo-se novamente ao mar, dobrou Cabral o tormentoso cabo a 22 de maio; aportou em seguida em Bezenegue, junto a Cabo Verde, onde encontrou três navios comandados pelo florentino Américo Vespúcio, que se dirigiam por ordem de D. Manuel à terra que o fidalgo beirão havia descoberto um ano antes.

Velejando direto, sem mais escala, chegou Pedro Alvares Cabral ao Tejo no dia 23 de junho de 1501, ou seja, um ano, três meses e quatorze dias depois de sua partida. El-Rei, que estava em Sintra, "de sua vinda foi mui alegre, posto que com alguma tristeza por caso da gente que morrera nas naos que çoçobraram", conta-nos Damião de Goes (Chronica, Parte I, cap. LX).

Embora apenas quatro navios, dos treze que partiram, tivessem regressado ao Reino, seu carregamento em drogas, especiarias, porcelanas, sedas, etc., foi mais do que suficiente para pagar todas as despesas da viagem e atrair a Lisboa grande número de mercadores estrangeiros.

Por outro lado, estava estabelecida definitivamente a cabeça-de-ponte portuguesa no Oriente, com a fundação da feitoria de Cochim. Pôde desse modo El-Rei Dom Emanuel, o Venturoso, acrescentar ao seu título de Rei de Portugal e dos Algarves Daquém e de Além Mar em África, e Senhor da Guiné, o de Senhor da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia. Não percebera ele ainda, a essa altura, que Cabral enriquecera sua coroa com um florão incomparavelmente mais suntuoso e, muito mais do que isso, levantara o Estandarte da Cruz na terra que estava destinada a ser o maior país católico do mundo.

Preterido, o Descobridor retira-se para sempre da corte

Ao fim de oito meses de repouso, foi chamado Pedr'Alvares para segunda vez ir à Índia. Sabedor o Monarca luso de todas as traições que os mouros da terra lhe haviam urdido, determinara mandar a submetê-los uma esquadra mais poderosa. Não se sabe bem porque, à última hora, recusou Cabral o comando dessa expedição, indo em seu lugar Vasco da Gama.

Os cronistas Damião de Goes e João de Barros, que viveram largos anos na corte de D. Manuel, dão como motivo da recusa o fato de El-Rei dar a Vicente Sodré, tio do Gama, o comando de uma divisão de cinco navios, com um regimento tal, que o tornava praticamente independente do Capitão-Mor da armada. Essa versão é repetida por quase todos os historiadores (p. ex.: Jaime Cortesão, "A Expedição de Pedro Alvares Cabral e o Descobrimento do Brasil"; J. Estêvão Pinto, "Pedro Alvares Cabral"; J. M. Latino Coelho, "Galeria de Varões Ilustres de Portugal — Vasco da Gama", etc.).

Com ela não concorda o Visconde de Sanchez de Batina; afirma, porém, que se essa tivesse sido a razão da recusa de Cabral, teria sido mais do que justificada pelos desatinos que Sodré veio a cometer nas Índias. A versão que esse historiador apresenta é baseada nas "Lendas da Índia", de Gaspar Corrêa.

Segundo Gaspar Corrêa, estando já a armada prestes para partir, eis que aparece Vasco da Gama a pedir-lhe o comando, mostrando a D. Manuel uma carta na qual este lhe havia, tempos antes, outorgado a capitania de todas as esquadras que partissem para a Índia, quando quisesse ele embarcar, sem que nenhum outro Capitão o pudesse substituir. A isso contestou El-Rei dizendo: "Dom Vasco, muyto vos agradeço a vontade que tendes de meu serviço, e haverey prazer que fiqueis pera o ano, e que agora vá Pedralvares, como está ordenado". Ao que teria retrucado Vasco da Gama que não lhe dando o Monarca aquele comando, que já era seu por direito, far-lhe-ia um grande agravo. D. Manuel tentou ainda dissuadi-lo, sobretudo por se ter ele lembrado de reclamar seus direitos à última hora, e disse que não tinha nenhuma intenção de o agravar, senão que pelo contrário o reservava para serviços ainda maiores, mas que temia agora causar mágoa a Cabral: Ao que respondeu o Gama: "Senhor, não há nisto mais agravo que o que elle quiser tomar de sua vontade, que o proprio deve ser contra mim, no que sou eu o culpado de assi tarde me acordar... inda que o homem que tem desastres no mar devia de fugir delle". Ante essa resposta impertinente — pois não tinha sofrido Vasco da Gama, em sua primeira viagem, reveses semelhantes aos de Cabral? — não teve El-Rei senão que pedir a Pedr'Alvares que desistisse da nova expedição, para não ficar quebrada a palavra régia.

O fidalgo beirão, "homem de muitos primores acerca de pontos de honra", como o qualifica João de Barros, acedeu ao pedido do Rei, mas reservou-se o acerto de contas com o rival. Não sabemos qual foi a sua desafronta; talvez se tenha batido em armas com o Gama, do que resultou quiçá a este último o ferimento na virilha com o qual foi para a Índia, fazendo constar que fora de uma queda (cf. Sanchez de Baêna, pp. 46-50 e 57). O fato é que Pedro Alvares Cabral teve que se retirar da corte, e nunca mais recebeu qualquer encargo público. Vasco da Gama, igualmente, ao seu regresso da Índia foi relegado a um completo ostracismo durante os restantes anos do reinado de D. Manuel.

Jaime Cortesão não concorda com tal versão. Sem pretender apresentá-la senão como hipotética, devemos reconhecer que muitos dos acontecimentos posteriores da vida de Cabral resultam explicados à luz dessa hipótese.

"Que descontentamento he este, que V. A. de sua pessoa tem?"

Depois dos sucessos referidos, criou-se entre o Monarca e o Descobridor do Brasil um ambiente de tensa frieza, pelo que o fidalgo se manteve afastado da corte, recolhido a suas terras de Santarém, a cuidar da administração de sua casa.

Seus serviços não foram de todo esquecidos, se bem que mal remunerados; de fato, agraciou-o D. Manuel com várias pensões num total de 243$000 réis, fêz-lhe mercê de três filhas suas entrarem em Religião com um dote de 70$000 réis cada uma, e estabeleceu a tença de 20$000 réis para seu filho mais velho.

Não quis, porém, o Rei tornar a chamar Pedro Alvares Cabral a seu serviço, nem mesmo depois da carta quase patética que, em 1514, de Calecute lhe enviou o grande Afonso de Albuquerque, Vice-Rei da Índia, tio por afinidade (como dissemos) do Descobridor. "Senhor —escreveu o "Vizo-Rei" — eu tenho tamta nececydade de meus parentes vos falarem por mim o requererem minhas cousas ante vosalteza, que nam sey como ouso de fazer por ninguém, porem eu ey de fazer meu dever; [...] obrigaçam que neste caso tenho a minha irmã e a meus sobrinhos e a meus parentes: o por que isto digo a vosalteza he por pero alvares meu cognado casado com minha sobrynha, filha de minha irmã criada de vosalteza e da Senhora Rainha; eu fuy o que comcertey e ordeney este casamento". Era Pedr'Alvares "muy bom fidalgo", por sua "bomdade e cavalarya" tinha recebido de El-Rei "cargos muy omrrados", e não parecia então que o Soberano pudesse deixar de fazer "omra e merce por sabermos que era cavaleiro, homem avisado e que ha de dar em todo tempo e em todo feito boa rezam de sy, como vosalteza já delle tem tomado a espiryencia: agora Senhor vejo esta quebra sua ante vosalteza durar muitos dias em tempo que vosalteza se serve jeralmente dos cavaleiros e fidalgos de vosso Reino e conquistas, os quaes recebem merce e rendas segundo cada hum faz e merece"; e sendo "pero alvares homem desejador em obras e em dito e em feito ser sempre 'servidor' de vosalteza e feitura e obra de vossas mãos, apartado asy de vossa vontade e prazer que nam posso saber que descontentamento he este que vossa alteza de sua pessoa tem que asy o temdes lançado do vosso serviço; e quanto me a mim mais parece que a culpa deste feito era sua tanto mais sua de parecer, e ey de crer que elle tem certo o perdam e galardam de vosalteza, como vimos por espiryencia em outras pessoas seremlhes seus erros perdoados e feita omra e dado rendas e merce [...]” (Sanchez de Baêna, pp. 113-114).

De Pedro Alvares Cabral não temos a partir de então mais notícias que a da tença que recebeu em 1515, depois da carta de Albuquerque, e a de aparecer o seu nome no Livro dos Moradores de D. Manuel, como Cavaleiro do Conselho régio, em 1518 (cf. J. Estêvão Pinto, pp. 56-57).

Faleceu o ilustre fidalgo em Santarém no ano de 1520, segundo alguns autores, ou no de 1528, como quer o Visconde de Sanchez de Baêna (apoiado nos trabalhos de Frei Antonio Rousado, Religioso agostiniano do convento daquela cidade, que teve em mãos os documentos do cartório da família Cabral).

De sua sepultura perdeu-se a memória com o correr dos anos. Encontrou-a em 1839 o historiador brasileiro Francisco Adolpho de Varnhagen, Visconde de Pôrto Seguro, na sacristia da Igreja de Nossa Senhora da Graça, em Santarém. Em 1882, tendo em vista certos rumores de que haviam desaparecido de seu jazigo os despojos do grande descobridor, constituiu-se uma comissão de pessoas notáveis do lugar, a qual procedeu às competentes verificações e chegou à conclusão de que tais rumores eram infundados. Em 1903 um particular, o Bel. Alberto de Carvalho, trouxe para o Brasil uma parte dos restos mortais de Pedro Alvares Cabral, que foram depositados em uma urna na capela-mor da Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro.

Em todo homem chamado a desempenhar uma missão histórica, mais que os pormenores de ordem biográfica, interessa-nos conhecer o dinamismo que o movia, aquele aspecto mais profundo de sua personalidade que ilumina e explica o conjunto de seus atos.

Na vida de Cabral, de que tão pouco se sabe em tantos pontos, algo disso podemos vislumbrar.

Aparece-nos, antes de tudo, o homem de fé, que se lança ao mar sob a proteção da Cruz de Cristo, cujo guião arvora, e cujo nome lhe acode logo à mente para dá-lo à terra "muito chaã e fremosa" que descobre. Homem de fé, que leva consigo em sua ousada navegação a doce imagem da Senhora da Esperança — até hoje venerada em Belmonte — certo de ser Ela o melhor refúgio nas inconstâncias do mar tenebroso.

Impressiona-nos ainda o vulto do bravo capitão, que enfrenta com igual coragem e audácia a fúria dos homens e dos elementos.

Temos por fim o católico zeloso, empenhado na dilatação da Fé, como na do Império, e por isso mesmo intolerante com os infiéis, de quem pune as traições com o rigor e a presteza de quem se sente nascido para sempre mais "cristãos atrevimentos" (Lusíadas, VII, 14).

À figura de nosso herói não terão faltado, decerto, como estigmas do século, deploráveis contaminações renascentistas. Não obstante, seu exemplo de fé, heroísmo e abnegação deve inspirar-nos, a nós que navegamos nas incertezas dos dias presentes, sobre esse mar do mundo contemporâneo, cujas águas são agitadas por todos os ventos e borrascas do comunismo e do progressismo. Nesta hora há de valer-nos a mesma Senhora da Esperança que viu nascer o Brasil, e de quem esperamos auxílio para que esta nossa terra, chamada da Vera Cruz no primeiro momento em que foi divisada, permaneça fiel, agora e para sempre, àquele Vexilo que lhe emprestou tão glorioso nome.