P.14-15

O TEXTO DE “ECCLESIA”

OS PEQUENOS GRUPOS E A “CORRENTE PROFÉTICA”

O trabalho cuja tradução publicamos aqui apareceu na revista “Ecclesia”, de Madrid, órgão oficial da Ação Católica espanhola, no. 1423, de 11 de janeiro deste ano, pp. 19-33.

Na apresentação do trabalho assim escreve a revista: “Chegou à nossa Redação, com todas as garantias de seriedade e de procedência idônea, o extenso estudo que a seguir oferecemos aos nossos leitores sobre o pensamento e a atuação de certos grupos chamados “proféticos”, que vão pululando nos diversos ambientes de fora e de dentro de nossas fronteiras, no seio da comunidade cristã. Julgamos prestar um bom serviço a nossos leitores com a sua publicação. Isso porque, além do valor informativo das páginas que se seguem, podem elas evitar em muitos espíritos um pernicioso confusionismo e prevenir contra possíveis erros aos quais poderiam ser arrastados de boa-fé não poucos de nossos fiéis”.

Para não sobrecarregar a presente edição, deixamos para o número de junho a publicação do tópico final desta matéria, relativo ao desenvolvimento e às manifestações concretas dos “grupos proféticos” em vários países do mundo.

Advertência Preliminar

Este estudo não pretende dar uma visão exaustiva e total da “ideologia profética”, mas apenas assinalar os aspectos que nos pareceram mais relevantes e fáceis de verificar, e que, por sua vez, podem proporcionar uma pequena ajuda para análises e estudos mais completos e profundos. Trata-se, pois, de uma modesta contribuição para um possível estudo sobre as correntes ideológicas, de caráter religioso, mais frequentes ou espalhadas no mundo, e de cuja influência e presença a Espanha não se encontra isenta.

Para a exposição dos dados que no presente trabalho se transcrevem, tomados como principal referência as seguintes fontes: o centro IDO-C e a revista “Informations Catholiques Internationales” (que no texto apresentaremos, para abreviar, sob a sigla I.C.I.), ambos considerados como os principais sustentáculos do “movimento profético”. O primeiro, enquanto fornece o conteúdo ideológico e elabora as linhas a seguir; e a segunda, enquanto, por sua extraordinária penetração nos meios católicos, difunde e propõe como exemplo as manifestações concretas desse “movimento profético”.

Examinamos em primeiro lugar alguns aspectos da “corrente profética” que se assemelham notavelmente ao pensamento dos “teólogos da morte de Deus”. Damos, a seguir, uma breve informação sobre os “grupos proféticos”; sua missão, natureza, etc., e seu desenvolvimento e manifestações concretas.

Resta-nos apenas tornar público o nosso agradecimento a todas as pessoas que colaboraram na preparação deste trabalho, cujo valor revela, por si mesmo, a competência delas e manifesta o ingente esforço que realizaram. Cremos, sinceramente, que prestaram um excelente serviço à Igreja, o que, ainda que fosse só isto, já seria merecedor do nosso mais sincero reconhecimento.

Conteúdo, estrutura e manifestações

I . Introdução

1 . Os pequenos grupos

Ao observar o panorama do apostolado leigo encontramos um fenômeno: o aparecimento e proliferação de pequenos grupos independentes, desligados de toda organização apostólica concreta(6).

(6) I.C.I., no. 303, p 6, François Houtart: “É necessário descobrir, como fenômeno recente e em vias de aceleração, o aparecimento de pequenos grupos de leigos que às vezes tomam verdadeira importância, e se estabelecem fora dos quadros oficiais, sem vínculo orgânico com a Hierarquia, se bem que permanecendo dentro da Igreja”

Este fato pode obedecer, entre outras causas, à aspiração natural do homem moderno – inserto em uma sociedade de massas, em que amiúde e de infinitas formas se sente despersonalizado, diluído – de integrar-se em pequenas comunidades onde, em um clima de cálida amizade, sua individualidade, sua personalidade, seja reconhecida e valorizada, e encontre um meio de expressão através de uma participação responsável.

Junto a esta aspiração, é preciso assinalar também a tendência – bastante saliente em alguns setores – a repelir toda estrutura que implique numa organização complexa.

Deste ponto de vista, trata-se de tendências legítimas e respeitáveis, próprias de nossa época, que têm sua repercussão dentro da Igreja. Nela, e concretamente no campo do apostolado leigo, há uma multiplicidade de vocações, de opções, de formas, que são perfeitamente legítimas.

Por isso, os pequenos grupos podem ter sua razão de ser hoje em dia, e sua dinâmica pode até oferecer um meio de canalizar setores da Igreja até agora passivos, que não participariam de outro modo nas tarefas da evangelização.

É bem de ver que esta estrutura tem também seus riscos, que podem ser, entre outros:

desmembrar-se horizontalmente da comunidade e transformar-se num “ghetto” com complexo de elite;

viver e atuar à margem das necessidades da comunidade eclesial, constituindo um fator de desagregação na unidade da Igreja;

desvincular-se da Hierarquia, de uma forma mais ou menos consciente.

Se estes riscos forem superados – através de uma conexão com as comunidades básicas da Igreja (paróquia, etc.), e de uma vigilante atenção e docilidade às orientações do Magistério (Papa, Bispos) – a fórmula será perfeitamente válida e enriquecedora, e não cremos que ofereça motivo algum de inquietação. Simplesmente coincide com tendências naturais que se inserem nos novos caminhos abertos pelo Vaticano II: o apostolado leigo.

Contudo, esta nova forma de inserção do apostolado leigo na Igreja apresenta – em um número crescente de casos – certas características realmente alarmantes, que merecem séria reflexão e estudo.

Com efeito, dentro da estrutura flexível dos pequenos grupos há alguns que se caracterizam por determinadas constantes, que os tornam inconfundíveis e os situam na órbita de uma “corrente”, que corresponde a um sistema de pensamento e a certas atitudes concretas. Esta corrente se auto define como “corrente profética”(7).

(7) J. Grotaers: conferência citada, pp. 14 e ss.

Dela – tanto em suas ideias, como em suas atitudes – participam, em maior ou menor grau e de maneira mais ou menos consciente, todos os membros destes grupos.

Isto se deve a que – apesar de sua aparente dispersão e variada fisionomia no âmbito da Igreja Universal – os grupos estão ligados entre si, tanto através de pessoas como de ideias e técnicas comuns. Ligações que, na maioria dos casos, não costumam ser percebidas por seus membros.

Entretanto, não quer isso dizer que a “corrente profética” se reduza apenas a esses grupos. São principalmente eles que a difundem, porém a corrente em si os ultrapassa amplamente, e chega a invadir setores cada vez mais dilatados da Igreja Universal.

Assim, graças ao dinamismo e às eficazes técnicas de difusão que caracterizam seus membros, logram estes introduzir-se nos seminários, organizações apostólicas, Ordens Religiosas, centros de pastoral, imprensa e editoras católicas, congressos, onde pessoalmente, ou através de figuras representativas do Clero e do laicato católico, realizam uma disseminação de ideias que são maravilhosamente aceitas no clima de “aggiornamento” pós-conciliar.

2 . Suas características

Entre as características mais salientes dos “grupos proféticos” encontram-se as seguintes:

Nascem esses grupos, de ordinário, não tanto por impulsos de uma vocação apostólica específica, quanto de uma confrontação mais ou menos visível com a Hierarquia Eclesiástica, que os leva a separar-se das organizações.

Constituem-se não como uma forma a mais de apostolado, mas como a única forma válida para dar testemunho e apresentar “a verdadeira face da Igreja”.

Consideram-se especialmente assistidos pelos carismas do Espírito Santo – ao que atribuem sua assombrosa e “espontânea” proliferação em todos os continentes – para cumprir uma missão profética. Missão que consiste em denunciar a corrupção das estruturas da sociedade e da Igreja e em apresentar uma nova Igreja, adaptada às exigências de um mundo secularizado e de um laicato adulto(8).

(8) I.C.I., no. 303, p. 8, Gunnel Valquist: “Le réveil du prophétisme”: “Por toda parte tenho encontrado a mesma coisa: de um lado, a “jovem Igreja” ou a “nova Igreja”, representada por uma grande parcela de jovens, estudantes, operários e Sacerdotes. E, por outro lado, a “Igreja estabelecida”, com sua Hierarquia à testa, com muito poucas exceções, salvo o caso da Holanda, onde o Episcopado teve a coragem de assumir também a responsabilidade da jovem Igreja”.

Por isso consideram absolutamente necessário:

uma reforma radical, realizada pela “Igreja carismática” (laical), dos aspectos fundamentais da “Igreja-instituição”: Magistério, teologia, moral, Sacramentos, liturgia, etc.;

a aceitação de que o único testemunho cristão válido diante dos homens é o “compromisso temporal encarnado”, quer dizer, a colaboração com marxistas e membros de outras confissões cristãs para a “libertação dos oprimidos e explorados”, recorrendo a toda classe de meios, inclusive a violência.

Distinguem-se por uma crítica acerba:

de todo apostolado vinculado à Hierarquia, o qual consideram defasado, superado e incapaz de sintonizar com o mundo para dar uma resposta adequada às necessidades de nosso tempo;

do Magistério. O fundamento destas críticas, que dirigem principalmente aos Bispos, e mesmo ao Papa e ao Concílio, se funda na resistência – segundo eles – do Episcopado da Igreja Universal a aceitar as novas ideias sobre a missão da Igreja no mundo e o compromisso temporal.

Estas características emprestam luz para se compreender o mais profundo de algumas situações que se estão produzindo hoje na Igreja.

Por exemplo, muitos pensam que as tensões, as “crises” que ocorrem atualmente no interior da Ação Católica de diferentes países (França, Itália, Bélgica, Espanha, etc.) se devem simplesmente a discrepâncias entre o Episcopado e os dirigentes mais “dinâmicos” a respeito da forma concreta de adaptação dos princípios fundamentais do apostolado leigo, formulados pelo Concílio, a diversas situações e países.

A realidade é bem diferente. O que é objeto de polêmica são esses mesmos princípios fundamentais. O que está em jogo é a essência mesma do apostolado leigo em seu conjunto. Não se trata de fazer um rigoroso reajuste das estruturas da Ação Católica, nem do acesso de outros movimentos a um nível de diálogo institucionalizado, nem do reconhecimento de outras formas de apostolado mais flexíveis.

Decididamente, trata-se da vinculação ou separação com referência à Hierarquia Eclesiástica, segundo esta aceite ou não determinados compromissos temporais. E isto afeta todos os setores do apostolado leigo, organizado ou não.

Esta separação é uma das características da “corrente profética”. Seu objetivo a curto prazo é “a libertação de estruturas demasiado pesadas”, a qual consiste em repelir o mandato hierárquico e criar “grupos proféticos” comprometidos na ação temporal.

Por trás desta fórmula inicial – que pretende aparecer como uma reforma necessária das estruturas do apostolado leigo organizado, na linha conciliar, para seu melhor enquadramento numa sociedade secularizada – está latente, entretanto, uma nova concepção da Igreja que opõe, de fato, a “Igreja comunidade de homens” à “Igreja instituição”, e o “profetismo leigo” ao Magistério eclesiástico.

II – Conteúdo ideológico da corrente profética

1 . Visão do Mundo

Em primeiro lugar, dedica-se um especial interesse ao descobrimento da realidade do mundo atual, como pressuposto indispensável para a desejada adaptação da Igreja a estas realidades.

Para descobrir “os sinais dos tempos” utilizam as modernas técnicas de investigação social: sociologia e estatística. Esta utilização, que é necessária, padece, neste caso, de alguns vícios fundamentais:

Por um lado, prescinde-se de qualquer outro tipo de realidades que não possam ser captadas ou explicadas através destas técnicas. O resultado é que, exorbitando de um realismo necessário, utilizam-se exclusivamente critérios sócio-políticos ao focalizar as realidades da própria Igreja, o que desemboca fatalmente em um relativismo.

Com a agravante de que muitos dos inquéritos que promovem não se limitam a sondar e recolher uma opinião, mas estão claramente dirigidos a CRIÁ-LA em um determinado sentido que interessa ao pesquisador. As perguntas costumam ser elaboradas de tal forma que põem o entrevistado na alternativa de decidir-se por algo de arcaico e superado ou pela resposta exata que os pesquisadores querem obter e que sempre se apresenta como “a atraente”. O resultado é óbvio: diante de algo que se faz de forma apressada e sem tempo para refletir, ou versando temas que não se conhecem a fundo, preferimos todos hoje em dia passar por “avançados” e não como “retrógrados”.

Por outra parte, dá-se a estas ciências um valor tão absoluto, que de indicativas se convertem em normativas. Ao apontar certos fatos, sublinham “o que é”, e diante disto não cabe sequer cogitar “o que deveria ser”; simplesmente, “o que é” é igual a “o que deveria ser”.

Já não se trata de que estas ciências possam indicar-nos, entre outras coisas, “os sinais dos tempos”, senão que indefectivelmente tudo o que elas indicam são “os sinais dos tempos” (no sentido de um “sinal” que deve ser recolhido e aceito pela Igreja).

Em consequência, tudo o que elas indicam são “processos inelutáveis”, que não admitem oposição nem reajuste, mas que, pelo contrário, impõem uma mudança e uma adaptação. À vista disso, como veremos mais adiante, não se deve tentar, por exemplo, “ressacralizar o mundo”, mas “dessacralizar a religião”(9).

(9) O Pe. Congar assinalou e refutou esta idéia em sua conferência “O apelo de Deus” dirigida ao III Congresso Mundial do Apostolado Leigo, celebrado em Roma em outubro de 1967. O texto integral desta conferência foi transcrito na obra de Congar “A mes frères”, Editions du Cerf, 1968, capítulo III, pp. 77-104.

O ateísmo e secularização

Como resultado deste estudo do mundo, encontram-se eles diante de um fato evidente: o fenômeno maciço do ateísmo. Esta realidade inegável se generaliza e radicaliza de tal forma, que chegam à conclusão de que o homem é hoje essencialmente ateu, repele toda religião e só admite ajuda para promover-se cultural e socialmente. Aprofundando as causas do ateísmo, resumem-nas dizendo que se trata de um fenômeno coerente e lógico e que corresponde em sua totalidade ao “contra-testemunho” dado pelos cristãos, tanto individual, como comunitariamente.

“O mundo não é ateu por sua culpa, mas por nossa culpa”.

“Fizemos de nosso Deus e de nossa Igreja um espantalho, o qual é lógico que desprezem aqueles que amam a sinceridade, a liberdade, a responsabilidade, e ao qual contudo permanecemos fiéis, para vergonha nossa”.

“Desfiguramos de tal modo a face da Igreja, que Ela não pode ser aceita pelos homens”.

“Em lugar de apresentar um Deus vivo, encarnado, realista, nós cristãos alimentamos com tanta frequência de lendas e mitos religiosos, que temos sido incapazes de convencer” (10).

(10) L. Evely : “Uma religião para nosso tempo”, pp. 27-28.

Por outro lado, afirmam que o ateísmo pode tornar-se um fato positivo: mais do que de “perda de fé”, dever-se-ia falar de um processo de purificação e de maturidade. O homem de hoje, liberado pelo progresso científico de um estado ancestral de mitificação, substitui os mitos religiosos por algo mais racional, portanto mais em consonância com sua natureza.

A figura do ateu adquire aos olhos deles uma nova dimensão. Não se trata de uma pessoa diminuída e incompleta, como se nos fez crer repetidamente. Pelo contrário, aparece amiúde como um homem “de elevada estatura” que “caminha na vanguarda”, que tem a coragem de viver encarando seus problemas e os do mundo, sem a ajuda de “Um Deus suporte” ou “um Deus explicação”.

Esta admiração leva-os a se perguntarem em que se diferencia um cristão de um ateu. Sua resposta é desconcertante: - “Várias vezes temos tocado neste ponto, nas discussões, sem haver obtido respostas satisfatórias”(11).

(11) L. Evely: obra cit., p. 31.

A valorização do ateu estende-se também ao ideal moderno e ateu do mundo; um ideal que consideram ter alcançado metas diante das quais os cristão temos fracassado estrepitosamente, e que cedo ou tarde acabará por se impor.

Essa sensação de frustração, junto com a valorização da eficácia imediata, é a causa do deslumbramento deles diante do marxismo, que os leva a aceitar uma colaboração estável nas tarefas de transformação da sociedade, especialmente no campo sindical e político.

A conclusão desta análise é que o ateísmo não é, afinal, senão um processo de secularização.

Seu conceito de secularização não se limita a:

reconhecimento da autonomia das leis naturais;

valorização, em justa medida, das realidades temporais, sem referências ou explicações pseudo-sagradas ou pseudo-religiosas;

supressão dos abusos em que o homem e o cristão tenham podido cair em determinadas épocas ou situações; mas entendem a secularização como uma supressão radical, por defasagem, de tudo o que signifique sinal ou presença, no mundo, de outras realidade de ordem superior às puramente humanas, naturais, comuns a todos os homens e aceitáveis por todos(12).

(12) Uma manifestação concreta e expressiva disto é, talvez, junto com o esquecimento ou desprestígio dos mártires cristãos, a exaltação dos “santos laicos”: homens sem fé, mas com uma “mística laica”, que os leva a entregar a vida por uma causa humana. Alceu Amoroso [Lima], membro da Comissão Pontifícia Justiça e Paz, escreve em um artigo intitulado “A propósito das vítimas da violência: Camilo Torres, Che Guevara e Régis Debray (I.C.I., no. 301, p. 21): “Posso louvar sem receio o heroísmo destes três homens pouco comuns: um Sacerdote, um filósofo e um médico... Não posso negar que estas três vítimas da violência representam, em nossa época de pragmatismo tecnológico, não somente um exemplo do que há de mais puro na natureza humana, a saber: a capacidade de sacrifício por uma causa justa, mas também um protesto desesperado da dignidade humana contra o pessimismo, a falsa felicidade e a injustiça da civilização; contra a prosperidade fundada sobre a justiça”.

Neste mundo secularizado, a única possibilidade de aproximação da Igreja ao homem encontrar-se-á na realização de um humanismo coincidente com o que praticam outros grupos de diferente sinal. A consequência da análise deles é, portanto, que a Igreja tem que ser objeto de uma reforma drástica, para estar em condições de adaptar-se ao mundo atual que dela exige:

novos compromissos;

novas estruturas;

um novo conceito de evangelização(13).

(13) J. Grotaers: conf. Cit., pp. 14-16.

2 . Crítica da Igreja

O pressuposto indispensável para a edificação da “nova Igreja” é a crítica, porque:

traz a convicção de que a corrupção atual da Igreja exige uma mudança radical;

evidencia que a reforma tem que partir dos leigos, porque nada há que esperar da Hierarquia.

Esta crítica – acompanhada, em certas ocasiões, por atos clamorosos de “contestação” (protesto global) – desperta com frequência certo receio pelo seu radicalismo(14).

(14) I.C.I., no. 321, pp. 11, 12, 13: “Os jovens irrompem no Katholikentag”. Ibid., no. 321, p. 13: “Ocupação da Catedral de Parma”, Ibid., no. 319, p. 7: “Ocupação da Catedral do Chile”. Ibid., no. 315, pp. 36 e ss.: “Les agitations de l’Eglise “contestatrice” à Lille”. Textos transcritos na Parte III – 4, deste estudo, “Desenvolvimento e manifestações concretas”.

Por isso tratam de justificá-la

enquadrando-a em um clima de profunda inquietação pela sobrevivência da Igreja, à beira – segundo eles – do fracasso “por haver traído sua missão”;

considerando-a sinal inequívoco de vitalidade, em uma Igreja de adultos que superou a fase de “passividade bovina” dos leigos(15).

(15) I.C.I., no. 319, p. 1, editorial: “A autoridade do Magistério pontifício é hoje objeto de veementes debates. Em vários países ouve-se falar de “crise de autoridade”. Nós não somos indiferentes nem alheios a esse debate. Parece-nos inevitável e sadio em uma Igreja viva”.

Por outra parte, como se baseia algumas vezes em fatos certos ou meias-verdades, essa crítica é aceita facilmente, chegando a ser assimilada até em seus aspectos mais corrosivos.

Longe de impelir a quem a escuta à edificação da “nova Igreja”, esta crítica conduz em muitos casos a uma situação de amargura, frustração e ressentimento, que termina na ruptura total com a comunidade eclesial(16).

(16) I.C.I., n0. 313-314, p. 15: “Vêem-se até grupos destes cristãos que abandonam a Igreja, separam-se praticamente dela. Há movimentos de jovens cristãos comprometidos, nos quais já não se fala da Igreja, nos quais não se sente nenhuma angústia ante a situação da Igreja: estes cristãos se mantém fora dela; conservando ainda a fé cristã, não vêem nenhuma razão para permanecer nas comunidades cristãs”.

Os promotores da “corrente profética” dão-se conta desta realidade, porém não se abalam. Segundo eles, os que não são capazes de superar este choque e depurar sua fé, pertencem às “massas alienadas” que cedo ou tarde se irão afastando, ficando assim a Igreja reduzida a uma pequena minoria sem triunfalismos nem manifestações de poder(17).

(17) G. Casallis, em I.C.I., no. 303, p. 8, cita a teoria de Robinson segundo a qual a Igreja deve aceitar a morte como realidade social “para participar do aniquilamento de Cristo”.

Todo o passado da Igreja, analisado com critérios sócio-políticos, é julgado de maneira desapiedada e negativa.

Para eles a Igreja começa a corromper-Se a partir de Constantino, e todo o seu desenvolvimento posterior foi condicionado por esse fato.

Assim, uma Igreja escondida, de catacumbas, se converte em:

uma Igreja enfeudada ao Estado e triunfalista: o Cristianismo ocidental, mantido unicamente por sustentáculos oficiais e externos, conduziu a uma religião mitificada. A cristandade foi um produto, não da fé, mas da alienação política;

uma Igreja dominada: - por um paternalismo providencialista; - por um paternalismo clerical, que foi a causa do infantilismo dos leigos;

uma Igreja regida por um Magistério cheio de abusos e contradições, que não só não respeitou a autonomia da consciência individual, mas também “constrangeu o mundo” obrigando-o a caminhar conforme a “nossa verdade”(18);

(18) G. Casallis, em I.C.I., no. 303, p. 8, cita a teoria de Robinson segundo a qual a Igreja deve aceitar a morte como realidade social “para participar do aniquilamento de Cristo”.

uma Igreja desumanizada. Ao fundamentar o amor aos homens no amor a Deus, traiu o amor ao homem por si mesmo. “Para amar o homem era preciso romper com a Igreja”;

uma Igreja rígida e inflexível, que nos momentos cruciais de sua história antepôs suas estruturas ao “espírito”. “Na Reforma os protestantes levaram consigo o Espírito Santo e a palavra. Nós ficamos com a hierarquia e o rito”;

uma Igreja estabelecida, com toda uma rede de instituições e organizações “confessionais” que impedem hoje o desenvolvimento de um compromisso missionário comprometido;

uma Igreja, enfim, que em toda a sua história não pôde trazer quase nada de positivo à humanidade:

“Há séculos que não fazemos mais do que fracassar, e não pensamos senão em presumir. Fracassamos na virada republicana democrática; fracassamos na questão social; fracassamos na questão bíblica... “. “O fracasso das missões católicas é tragicamente evidente”.

“A questão da ciência moderna, da filosofia moderna, das técnicas modernas, é coisa que temos ignorado ou menoscabado a ponto de parecer que não estamos no mundo”.

“A história deste dois últimos séculos não é antes de tudo, como pensam muitos historiadores católicos, a revolução do homem contra Deus, mas a resistência empedernida que alguns cristãos conservadores, preguiçosos e tirânicos, retardatários em política, em economia, sociologia, ciência, filosofia, e mesmo em teologia, exegese, liturgia e Deus sabe quanta coisa mais, opuseram a todos os que queriam avançar”(19).

(19) L. Evely: obra cit. Pp. 27-29.

As censuras recaem de modo especial sobre os Bispos, já que, segundo os “proféticos”, são os responsáveis pelo emperramento da Igreja, porque “longe de comprometer-se com os problemas de nosso tempo constituem o maior obstáculo para a renovação”.

Formulam suas acusações do seguinte modo:

a maioridade e o dinamismo atual dos leigos dá-lhes uma nova visão do testemunho e do compromisso temporal;

em uma sociedade secularizada é utópico tentar a conquista dos ambientes por dentro, tal como propugnou Cardijn. Hoje o cristão deve aceitar a sociedade secularizada tal como é, mesclar-se com todos os homens, sem distinguir-se deles em nada. Em consequência, é preciso rejeitar inteiramente as ações ou grupos confessionais, isto é, que levem a etiqueta de cristãos;

por conseguinte, o único compromisso temporal válido, o único testemunho, é o engajamento com qualquer grupo que pretenda elevar a condição dos oprimidos. O compromisso tem que ser tão radical, que não vacile em chegar a uma revolução violenta(20);

(20) Revista “Croissance des Jeunes Nations”, no. 67, p. 24. Em um artigo de Georges Hourdin (diretor de I.C.I.) sobre “A justa violência dos oprimidos”, cita-se Arlino Souza (ex-coordenador de juventudes católicas).
Este, na revista “Tiempos Modernos” (abril de 1967), afirma: “Cristianismo e revolução são conciliáveis... Dever-se-ia poder ser comunista e cristão... Cristão e guerrilheiro? .... Por que não, se não há outro remédio?....”
No Uruguai a revista “Víspera” (janeiro de 1968), dos estudantes de “Pax Romana”, dedica quase dois terços de suas páginas a Che Guevara, à revolução e à guerrilha, e não para colocar-se contra isso”. (I.C.I., no. 306, p. 6).
“Carta aberta ao Papa”, da Confederação Latino-Americana de Sindicatos Cristão (CLASC): “Quanto à revolução, o ponto mais importante não é o da violência ou não violência; o que cumpre fazer, simplesmente, é a revolução, até suas últimas conseqüências”. (I.C.I., no. 321, p. 8).
Carta de oitocentos Sacerdotes do continente latino-americano ao Episcopado, pedindo “uma ampla margem de liberdade na eleição dos meios mais aptos para libertar os povos da violência passifa” (I.C.I., no. 321, p. 8).
Ver também Parte III – 3, deste estudo, “Manifestações concretas”: “França: A Igreja e a revolução. A revolução na Igreja”.

a Hierarquia deveria apoiar esta nova concepção do compromisso temporal, e impulsionar as organizações e adotá-lo, para não servir de obstáculo à marcha da História. Mas não o faz: - porque está defasada; - ancorada em posições superadas; - atada por compromissos constantinianos.

Sua atitude apolítica não é, no fundo, senão “uma forma larvada de conservadorismo”. Seu quietismo pode ser interpretado como “a aceitação da desordem estabelecida”. Ao aferrar-se a estruturas arcaicas, como o mandato hierárquico, se opões, de fato, à renovação do apostolado leigo(21).

(21) J. Grotaers: conf. Cit., pp. 8, 11, 13.

O ideal desta situação é libertar as organizações do controle da Hierarquia. Mas amiúde isto não é possível, pelo que se impõe a necessidade de abandoná-las para constituir grupos flexíveis, com plena liberdade de movimento à hora de assumir compromissos temporais(22). Ver anexo 1 sobre “a crise da Ação Católica” francesa e o nascimento da JUC.

(22) Exemplo disso é o caso da JEC/F francesa na crise de 1965. Os dirigentes que se demitiram para manter seus compromissos com a UNEF (União Nacional de Estudantes Franceses, integrada na Internacional marxista UIE) fundaram um movimento – a JUC – que se autodefiniu como “profético”. (Ver anexo no. 1).

Sobre o Concilio opinam que foi uma esperança, mas ficou de tal modo a meio caminho, que já está superado:

a Igreja não chegou a Se comprometer. Insinuaram-se soluções, mas sem aprofundar para chegar a suas últimas consequências. De fato, a Hierarquia não saiu de seu tradicional imobilismo, salvo raras exceções, e não se deu aos leigos a ocasião de se expressarem amplamente;

isso obriga os cristãos adultos a manterem-se em tensão e preparar um novo Concílio, no qual uma ampla e dinâmica representação leiga qualificada faça saltar a barreira que separa a Igreja do mundo(23).

(23) I.C.I., no. 315, pp. 36 e ss. (transcrito na Parte III – 3). O movimento “Bíblia e Revolução” pede que “um próximo Concílio se efetue contando com a base”.

As críticas ao Concílio se dirigem especialmente ao Decreto sobre o Apostolado dos Leigos, que consideram “um documento conciliar de segunda ordem que não terá grande futuro”, e que deve sua existência à cobertura de Episcopados que queriam a todo custo conservar as estruturas existentes (Alemanha, França, Espanha).

Atribuem ao Decreto duas falhas importantes:

a ratificação do mandato hierárquico;

o estabelecimento de uma dualidade temporal-espiritual hoje superada.

Os juízos que eles fazem a respeito do mandato são os seguintes:

prejudica a noção de responsabilidade do leigo na Igreja;

o laicato a ele sujeito está destinado a ser um “interlocutor submisso” de uma Hierarquia que, em lugar de chegar a um diálogo, prossegue seu monólogo;

se há alguns dirigentes que o admitem, é “pelo prestígio e vantagens morais que proporciona a submissão à Hierarquia”. (Ver nota 19)(24) .

(24) J. Grotaers: conf. Cit. Pp. 13 e ss.

A respeito do dualismo temporal-espiritual(25):

(25) J. Grotaers: conf. Cit., p. 9.

negam que a ação temporal tenha que ser inspirado por princípios cristãos;

negam que o apostolado leigo tenha uma missão direta e propriamente evangelizadora . quando muito, esta ação diretamente evangelizadora só terá lugar quando os problemas mais urgentes da humanidade (fome, justiça, desenvolvimento) estiverem solucionados;

identificam história da salvação e história cósmica, reino de Deus e progresso da civilização. Acham que o crescimento da humanidade – segundo seu próprio movimento – é o crescimento do Corpo Místico de Cristo.

3 . Igreja-Nova

O exame da situação e a crítica põem da manifesto um fato evidente: que a Igreja, tal como está, não é válida em um mundo novo. Portanto, se quer servir ao homem de hoje, não tem Ela outro remédio senão “romper suas estruturas e entrar na via da secularização”.

Sentem-se eles chamados, portanto, a uma apaixonante tarefa: reformar a Igreja, dar-lhe “uma nova face”. Esta reforma implica em: - um novo conceito de Igreja; - com certos novos conteúdos; - uma radical revisão de alguns aspectos concretos; - e uma democratização, como único meio de realizar tal reforma.

A ) Novo conceito de Igreja

“As críticas, os apelos, as exigências dos ateus, traçam-nos um autêntico programa ao mostrar os traços que deveriam caracterizar e caracterizam a verdadeira Igreja do verdadeiro Deus”(26).

(26) L. Evely: obra cit., p. 28.

Para responder a estas críticas e seguir este programa, e para poder subsistir em um mundo secularizado – ateisado – a única possibilidade que tem a igreja é a “forma profética”.

Esta forma implica em um conceito revolucionário de Igreja:

* o requisito fundamental para pertencer a ela é amar o homem e comprometer-se na luta sócio-política por sua libertação. “O principal para nós é nosso compromisso militante revolucionário”;

* o conceito que se tenha da religião (valor supremo ou alienação, a relação com Deus (negação indiferente ou ataque direto), a atitude perante o crente (respeito ou proselitismo ateu), são questões secundárias;

* o que uma pessoa pense de Deus não tem importância, desde que ela se preocupe com seus semelhantes. Na realidade, quem ama o homem está amando a Deus, ainda que creia estar lutando contra Ele;

* por isso, um ateu, um comunista que está lutando pelo homem, forma parte da Igreja profética com maior plenitude do que um batizado que não se compromete na luta revolucionária.

B ) Novos conteúdos

Uma Igreja pobre,

uma Igreja dos pobres

1 – A primeira riqueza de que deve ser despojada a Igreja é “a insuportável suficiência de possuir a Verdade”(27).

(27) L. Evely: obra cit., p. 28.

Durante séculos temos fabricado para nós mesmos “um Deus explicação” de tudo quanto existe, “um Deus suporte” da debilidade humana. Temos utilizado a religião como morfina. Temos apresentado a Verdade como um bloco monolítico e granítico.

Temos feito da educação religiosa uma couraça de proteção que nos tem colocado em uma atitude “ofensiva”: evitar de sermos seduzidos, conservando porém a capacidade de seduzir.

Em face desta suficiência superada – que encobre um infantilismo larvado – impõe-se hoje um novo tipo de cristão maduro e adulto:

que aceita a dúvida, a insegurança, a obscuridade, a vacilação;

que caminha desarmado, vulnerável, nu, aberto, estendendo sua mão amiga a todos os homens;

que não provoca os demais com a riqueza de sua fé e sua segurança.

Em uma palavra, um verdadeiro “pobre”. Pobre é aquele com o qual todos se encontram à vontade, porque considera que não tem riqueza alguma para comunicar e está sempre disposto a receber.

2 – Do mesmo modo, a Igreja não será pobre, não estará preparada para entrar pela via da secularização, enquanto não se desprender de “suas catedrais”, de suas instituições, de suas obras; enquanto não abandonar toda manifestação externa, maciça, organizada.

a ) Em consequência, a Igreja deve desprender-se de suas instituições docentes em todos os níveis(28):

(28) I.C.I., no. 321, pp. 31-32. I.C.I., no. 319, p. 18. “La Vie Catholique Illustrée”, no. 1156, pp. 34 e ss.: “Ponho meu filho na escola leiga para que sua fé seja mais verdadeira. A constatação de outras confissões religiosas e do ateísmo em professores e alunos obriga-o constantemente a pensar na sua fé e depurá-la, reduzindo-a ao essencial”.

* “a Universidade católica é um obstáculo para a evangelização”;

* “a escola confessional é um germe de divisão que se opõe à fraternidade universal”;

* “o ensino, em geral, deve ser laico, neutro. As Ordens Religiosas que até agora se têm consagrado a este trabalho limitar-se-ão a exercer uma função puramente cultural, adotando um gênero de vida laico”.

b ) As obras assistenciais da Igreja (beneficentes, culturais, formativas, etc.) devem limitar-se a atuar na linha de um simples humanismo no qual se pratique a ajuda ao homem pelo homem, sem nenhuma referência de tipo religioso (29).

(29) “Fêtes et Saison”, agôsto-setembro de 1967, no. 217 (dedicado integralmente à preparação do III Congresso Mundial do Apostolado Leigo), p. 9.

c ) As organizações apostólicas encontram-se diante de uma alternativa:

- ou substituir uma ação evangelizadora defasada, por um compromisso temporal totalmente desconfessionalizado, isto é, por um compromisso temporal revolucionário,

- ou desaparecer (30).

(30) J. Grotaers: conf. Cit., pp. 14-16.

d ) Os cristãos devem abandonar toda ação política ou social que implique na defesa de uma concepção de sociedade conforme os princípios cristãos.

Por conseguinte, deve ser repelido qualquer tipo de partido político ou sindicato confessional que impeça ou dificulte a união dos cristãos com os demais homens, especialmente com os marxistas(31).

(31) J. Grotaers: conf. Cit., pp. 14-16.

Igreja encarnada, dessacralizada, desmitificada, antropologizada

Reduzida a pequenas comunidades, sem manifestações de poder, sem idealismos nem triunfalismos.

Comprometida na luta pelos pobres, dando seus membros, exclusivamente, uma resposta aos problemas da fome, da justiça, do desenvolvimento.

Afastada da filosofia do passado. Dando testemunho, não pela palavra e pelo culto, mas pela ação e pelo compromisso temporal: “justiça social e amor aos demais, e nada de cultos idolátricos”.

Igreja livre, sem compromissos constantinianos. Isto é, desvinculada totalmente do poder

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