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O CORPORATIVISMO BRASILEIRO
("Documentos Históricos" cit., p. 243). Certos ofícios eram presididos por dois juízes.
Normalmente, em dia de eleição, compareciam oficiais e mestres perante a Câmara e, depois de prestarem juramento sobre os Santos Evangelhos, "de bem e verdadeiramente elegerem as pessoas maes benemeritas", votavam individualmente, sendo eleito o que tivesse obtido mais vozes.
O Juiz ordinário, então, dava posse ao eleito, fazendo-o jurar sobre os Evangelhos que exerceria o cargo com probidade, zelando pela respectiva irmandade e guardando o serviço de Deus e de Sua Majestade e o direito das partes. Com a posse em seu cargo, o juiz do ofício era investido no direito de examinar, ou fazer examinar, os candidatos a membros de sua corporação, e de passar-lhes a necessária licença.
Eis aí, em palavras simples e rústicas, um belíssimo programa de desempenho de um cargo de responsabilidade, em inteira consonância com a doutrina da Igreja. Ficavam implícitos nessa pequena cerimônia os seguintes princípios da mais alta sabedoria:
■ o caráter sacral da sociedade, não só pela união da Igreja com o Estado, mas ainda com a inserção de uma entidade semipública, como a corporação de ofício, no serviço divino;
■ a sacralidade da cerimônia, com juramento sobre os Evangelhos, único penhor seguro de compromisso sério;
■ no desempenho do cargo, o oficial teria compromisso, em primeiro lugar, com o serviço de Deus, colocando, logo após, sua fidelidade para com o Soberano terreno;
■ no exercício da pequena parcela de poder que lhe cabia, o juiz do ofício prometia observar o princípio fundamental de justiça — "suum cuique tribuere", isto é, dar a cada um o que lhe é devido.
É sabido que, já nessa época, o princípio de subsidiariedade era em parte lesado — no caso, com a intromissão, muitas vezes indevida, da Câmara na vida corporativa — mas, em larga medida, ele ainda era observado e, ao menos em teoria, religiosamente proclamado. Pois a singela cerimônia não era uma legítima proclamação desse sagrado princípio de organização social?
Os mesteres na Câmara
Havia em Lisboa uma instituição representativa dos artesãos da cidade que, por ter 24 representantes dos ofícios organizados, ficou sendo chamada a Casa dos Vinte e Quatro do Povo, ou, simplesmente, a Casa dos Vinte e Quatro. Seus membros elegiam um presidente e um escrivão. O presidente era chamado Juiz do Povo, que tinha privilégios, honras e regalias, concedidas sucessivamente por diversos Reis, ao longo dos séculos. O Juiz do Povo de Lisboa era considerado o magistrado supremo do Terceiro Estado.
A ação da Casa dos Vinte e Quatro desenvolvia-se junto ao Senado da Câmara. Ela elegia quatro procuradores seus para, em bancada à parte, reunirem-se com os oficiais da Câmara e com eles discutirem assuntos de interesse do povo, tendo, inclusive, direito de voto em várias matérias. Esses procuradores eram chamados comumente de mesteres. Na linguagem do Reino e na do Estado do Brasil, a palavra mester teve diversos significados. Assim, mester era, originariamente, o ofício; do mesmo modo se designavam os representantes dos ofícios na Casa dos Vinte e Quatro. Finalmente, os procuradores desta junto à Câmara municipal ficaram também sendo conhecidos como mesteres.
Assim como em Lisboa, os grêmios de outras cidades do Reino, e também os de Goa, elegiam seus mesteres, Juízes do Povo e procuradores perante as Câmaras, que variavam em número, honras e atribuições, conforme o caso.
Em 1593, o Ouvidor Cosme Rangel de Macedo, exercendo interinamente as funções de Governador Geral do Brasil, convocou os oficiais mecânicos para elegerem quatro mesteres junto à Câmara do Salvador. Mas, chegado o Governador efetivo, a representação corporativa foi extinta (DASP — "História Administrativa do Brasil", vol. III, p. 45).
Mais tarde, soprando já o vento de renovação movido pela aclamação de D. João IV, a própria Câmara resolveu chamar ao seu seio os procuradores dos grêmios. Foi assim que, na memorável sessão de 21 de maio de 1641, convocou ela a eleição de 24 representantes dos ofícios, os quais, por sua vez, escolheriam doze mesteres.
Segundo a tradição do Reino, deveriam estes formar um corpo permanente, mas nada conhecemos que confirme terem eles constituído uma câmara, nos moldes da Casa dos Vinte e Quatro. É verdade que, na sessão de 25 de maio, a Câmara municipal lhes destinou o edifício antigo da vereação "pera coanto fose nesesario juntar o pouo tiuesse a donde o fazer", o que dá a idéia de que se reuniam de quando em vez. Juntar o povo provavelmente não tem o sentido de promover uma assembleia popular. A convocação de todo o povo era da alçada do Governador, ou da Câmara, e o ajuntamento se fazia nos respectivos paços, ou ao ar livre.
Talvez a expressão signifique uma reunião dos representantes do povo, não em geral, mas enquanto Terceiro Estado e, neste caso, seria dos doze representantes dos ofícios. Mas os documentos de que dispomos calam-se de tal maneira com relação aos doze, que não podemos afirmar terem eles constituído um corpo permanente e com reuniões regulares.
O certo é que, aos 23 de maio, os 24 foram eleitos. A eleição não parece ter sido realizada por ofício, como em Portugal, mas por pessoa, pois, dos eleitos, dois eram barbeiros e dois, alfaiates. Logo no dia 25, os 24 representantes compareceram à Câmara e elegeram o primeiro Juiz do Povo, que foi Gonçalo de Oliveira, os mesteres, que eram apenas dois, Jorge Barreiros, correeiro, e Antonio Vieira, barbeiro, e o escrivão do Juiz do Povo, que foi Antonio da Fonseca, alfaiate.
A competência para criar mesteres nas Câmaras municipais era exclusivamente do Rei, mas, na Bahia, foi a própria Câmara que os criou... Precisava-se, portanto, da confirmação real.
Em 1643, o mester Jorge Barreiros afirmava na Câmara que ali estava por provimento do Governador Antonio Telles da Silva, visto não ter ainda chegado a provisão de Sua Majestade. Afinal, aos 28 de maio de 1644, D. João IV, depois de ouvir o seu procurador, Doutor Thomé Pinheiro da Veiga, houve por bem confirmar a eleição dos mesteres e Juiz do Povo e determinar que, daí por diante, os houvesse em Salvador, como havia nas mais cidades do Reino (cf. Affonso Ruy, "Historia da Câmara Municipal da Cidade do Salvador" — Salvador, 1953).
Oficiais mecânicos investidos em funções políticas
Com a criação dos mesteres e do Juiz do Povo, a organização corporativa se integrava na vida política brasileira. Assim marchavam as coisas em nosso Ancien Régime.
A organização corporativa de então era exclusivamente municipal. Os grêmios, que reuniam mestres e oficiais e velavam pelos aprendizes, se confinavam ao âmbito municipal. Não havia federações profissionais nem, muito menos, confederações de empregados em luta com confederações patronais. Disso nem se cogitava no regime artesanal. E, no entanto, um simples tanoeiro, ou um caldeireiro, podia vir a desempenhar funções políticas e representativas de relativa importância.
Igualmente o corpo de mesteres e o Juiz do Povo integravam-se na política municipal. Eram adidos à Câmara e nela tinham sua bancada própria.
A representação corporativa nas Câmaras era criada por ato especial do Rei para cada município em particular. Nem todos a tinham, e as que havia diferiam, uma das outras, conforme as circunstâncias. Suas funções políticas eram importantes:
■ representavam o Braço do Povo ante a Câmara, que era formada pelo Braço da Nobreza. Em particular, o Juiz do Povo encarnava as aspirações populares;
■ eram ouvidos nas questões relativas a impostos, regulamentação de profissões, fixação de preços e em tudo o mais que lhes dissesse respeito, votando, nesses casos, junto com os representantes da nobreza;
■ quando convocados os Três Braços da Nação, para uma reunião em Cortes, elegiam, junto com a Câmara, os representantes da cidade;
■ auxiliavam os vereadores na lotação dos contribuintes, e os almotacés na fiscalização de preços, pesos e medidas, e no mais que fosse da alçada do juízo da almotaçaria, sem, naturalmente, direito de julgar, que era exclusivo dos almotacés.
Assim funcionou o nosso corporativismo, até 1713, quando foi extinto o cargo de Juiz do Povo na capital do Estado do Brasil, por causa de incidentes políticos. A própria Câmara se encarregou depois de pedir a D. João V o restabelecimento da representação corporativa, mas nada mais se conseguiu. Os grêmios, porém, e irmandades, continuaram funcionando e alguns florescendo. Até que a Constituição liberal de 1824 extinguiu, de uma penada, as "corporações de ofício, seus juízes, escrivães e mestres" (art. 179, inciso XXV).
ASSUNTOS DE ATUALIDADE EM CIRCULAR DA CÚRIA
Sob o título de "Circular ao Revmo. Clero sobre os novos "Motu Proprio" do Santo Padre, e outros assuntos", publicou a Cúria Diocesana, em 31 de maio último, o seguinte documento:
"1. Modificações no "Ordo Missae" e no Calendário Litúrgico. — Deseja o Sr. Bispo Diocesano que os Revmos. Párocos, Vigários e Reitores de Igreja com cura de almas preparem bem os fiéis, com oportunas explanações, a fim de que possam eles tirar o melhor e o maior proveito espiritual possível das inovações introduzidas pelo Santo Padre, no Missal e no Calendário Litúrgico, quando tais inovações entrarem em vigor, isto é, respectivamente, em 30 de novembro, primeiro Domingo do Advento, e 1.° de janeiro de 1970.
Sirvam-se os Revmos. Sacerdotes, para suas explanações, tanto do próprio texto dos dois "Motu Proprio" do Santo Padre relativos aos assuntos, como das publicações oficialmente encaminhadas pela Santa Sé que foram objeto de exame e comentários na última reunião dos Vigários.
Cuidem os Sacerdotes, especialmente, de elucidar as consciências dos fiéis no que respeita ao novo Calendário Litúrgico. Como é sabido, surgiram na imprensa, noticiários tendenciosos, querendo induzir o povo a crer que a atitude do Papa era infensa ao culto dos Santos. É necessário que se desfaça semelhante equívoco, sobremodo nocivo à piedade dos fiéis.
2. Catecismo de adultos. — Como meio de incrementar a catequese dos adultos na Diocese, além das experiências realizadas, com pleno êxito, na zona rural, mediante os Centros de Catecismo, presididos por catequistas leigos, orientados pelo Sacerdote, através de folhas mimeografadas, recomenda o Sr. Bispo a utilização, sobretudo nos centros urbanos, da tradução do Catecismo Romano, o Catecismo do Concílio de Trento mandado publicar por São Pio V, feita pelo Revmo. Pe. Valdomiro Pires Martins, e editada pelas "Vozes". Tal tradução vem enriquecida de vários apêndices que muito auxiliam o manuseio do Catecismo de São Pio V, e servem mesmo para uma feliz harmonização entre a homilia dominical e a catequese de adultos.
3. Missionários do Sagrado Coração de Jesus. — Inteiramente encerrado o incidente surgido na Diocese com os Missionários do Sagrado Coração de Jesus, o Sr. Bispo e o Bispado guardam, com o devido reconhecimento e apreço, a lembrança dos importantes serviços prestados às almas no decorrer destes quase vinte anos, por muitos membros da benemérita Congregação dos Missionários do Sagrado Coração de Jesus que aqui exerceram seu apostolado.
A mesma grata lembrança permanece no coração do Bispo e dos fiéis com relação aos zelosos Padres Franciscanos que após mais de vinte anos nos deixaram por absoluta falta de pessoal na Província dos Frades Menores a que pertencem. Que a Virgem Imaculada, sob cuja proteção está essa Província Franciscana, os guarde sempre sob seu manto materno.
4. Novos Sacerdotes. — Rejubila-se a Diocese com os novos Sacerdotes que aqui vieram trabalhar na vinha do Senhor, cooperando fraternalmente com os operários já há tempo ligados ao ministério neste abençoado rincão do Norte Fluminense. São eles: o Revmo. Padre Pedro Javie Casas, Vigário ecônomo de Santo Antônio de Guarus, cedido à Diocese de Campos pelo Exmo. Revmo. Sr. Arcebispo Metropolitano, D. Antonio de Almeida Moraes; os Revmos. Padres Carmelitas Descalços, Frei Tomás de Jesus e Frei Carmelo Carboni, que se dedicam ao apostolado na Freguesia de São João da Barra, onde aguardam o terceiro companheiro de jornadas apostólicas, Frei Alexandre da Toscana.
A esses Sacerdotes se juntarão no final deste ano mais dois novos que serão ordenados pelo Sr. Bispo Diocesano, e constituem outros tantos frutos do Seminário Diocesano de Maria Imaculada. O Sr. Bispo recomenda a todo o Clero, e por meio dele aos fiéis, que elevem súplicas ardentes ao Céu pela santificação do Clero, pela perseverança dos seminaristas e pelo surgimento de novas vocações.
Campos, 31 de maio de 1969. / "De ordem de Sua Excelência Reverendíssima, / Padre Henrique Conrado Fischer, Secretário do Bispado".
Uma biografia edificante e oportuna
D. A. C.
Monsenhor José de Castro Nery, em brilhante panegírico da Padroeira da América Latina, pronunciado há anos atrás, dizia com muita propriedade que Santa Rosa culmina a santidade americana. A Virgem da Ordem Dominicana, natural de Lima, no Peru, elevada às honras dos altares, reunia muita santidade anônima, que, obscura aos olhos dos homens, só é conhecida de Deus Nosso Senhor.
As palavras do hoje ilustre Arcediago do Cabido Metropolitano de São Paulo envolviam um convite e um estímulo, no sentido de que se tornassem conhecidas as vidas edificantes daqueles que, em plagas americanas, ordenaram sua existência total e retamente ao serviço de Deus e das almas. A aspiração de Mons. Castro Nery, de um a propósito óbvio, tornava-se ainda mais explicável a quem considerasse a heroicidade extraordinária da penitência e mortificação de Santa Rosa de Lima, que a coloca entre os mais heróicos Santos penitentes, e a distancia, por isso mesmo, muito do teor de vida dos simples fiéis. Uma existência mais perto de nós, e, no entanto, toda consagrada a Deus e ao próximo, mais facilmente determinaria as almas a trilhar a senda da perfeição.
Eis porque acolhemos com alegria a Vida da Madre Maria José de Jesus, Carmelita Descalça do Mosteiro de Santa Teresa do Rio de Janeiro ("Memorial da Vida de Madre Maria José de Jesus", ed. Convento de Santa Teresa, Rio, 1968).
Com efeito, a primogênita de Capistrano de Abreu praticou, já no século, as virtudes ao alcance de toda alma de boa vontade que deseje sinceramente santificar-se. E no claustro, sua exímia caridade não se entrelaçou de lances singularmente extraordinários, desses que se admiram e louvam, abençoando a Providência que bondosamente os prodigalizou aos simples mortais, mas que, fossem condição indispensável da santidade, desanimariam a maior parte dos homens.
No Memorial de sua vida, entreve-se a simplicidade da alma da Madre Maria José de Jesus, que lhe dava olhos benévolos para todas as pessoas com quem veio a tratar. Neste número está sem dúvida Thomas Merton, com quem manteve correspondência. Não sabemos que diria Madre Maria José de Jesus, se viesse a ter notícia da morte trágica do Trapista norte-americano, num acampamento na estranha companhia de monges budistas.
A candura de alma, no entanto, não impediu que Madre Maria José de Jesus se adornasse de prudência e suave firmeza no governo do Mosteiro, de que foi Priora por nove vezes, e, como tal, consolidou o espírito que Santa Teresa desejou fosse a vida dos Carmelos e das Carmelitas.
Possa o Memorial da vida da Madre Maria José de Jesus incutir nas almas, atribuladas pela imensa crise em que se debatem os fiéis de hoje, sitiados por toda parte pelo demônio do progressismo, uma confiança inabalável no amor e proteção da Virgem Santíssima. Pois, com Maria, dissiparão também elas as heresias que infestam a Casa de Deus.
"Revolução e Contra-Revolução" faz dez anos
PROGRESSISMO E REVOLUÇÃO
Cunha Alvarenga
Há dez anos atrás, para assinalar seu número 100, publicava esta folha em edição especial o admirável ensaio "REVOLUÇÃO E CONTRA-REVOLUÇÃO", de autoria do Prof. PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA, destinado a conquistar ampla repercussão nos meios intelectuais católicos não somente do Brasil mas de todo o mundo, como o provam as suas várias edições em português, francês, espanhol e italiano e as transcrições dessa obra em vários órgãos de cultura, bem como uma abundante messe de recensões e comentários a que ela deu lugar.
Na passagem destes dois lustros de tão fundamental e oportuno estudo, em um momento histórico em que a Revolução parece "bruler les étapes", através das mais incríveis audácias, para atingir abismos nunca dantes suspeitados, julgamos proveitoso convidar os leitores a nos acompanharem em uma aplicação prática dos princípios enunciados pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a um tema de palpitante e triste atualidade, qual seja, o do progressismo que invade ponderáveis setores do mundo católico, neles causando calamitosas devastações.
Por isso mesmo que assunto tão vasto dificilmente caberia nos estreitos limites de um artigo de jornal, seremos forçados a esboçar nossos comentários em torno, apenas, de certos aspectos do fenômeno do progressismo, como uma das variadas faces desse Proteu a que se dá o nome de Revolução.
A crise do homem ocidental e cristão
Em primeiro lugar, cabe-nos acentuar que, embora a crise do homem ocidental e cristão, que constitui a Revolução, atinja todos os setores da vida cultural dos povos, ela é fundamentalmente de natureza religiosa e não se explica, em primeira linha, por um ataque de fora para dentro dos indivíduos e das instituições.
Diz o Salmista que "os que confiam no Senhor estão firmes como o Monte Sião; nunca será abalado o que habita em Jerusalém" (Sl. 124, 1-2). Do mesmo modo, enquanto fiel à Santa Igreja de Deus, seria inexpugnável ante os ataques de seus inimigos essa magnífica e solidíssima fortaleza que era a Cristandade medieval. Disse-o com justeza um adversário da Igreja, professor universitário, ao sustentar em estudo publicado pela imprensa diária de São Paulo, que o movimento iniciado pela Renascença devia ter eclodido muito antes, em pleno século XII, não fosse o modo radical e duro como foram extirpados os focos da heresia gnóstica que então apareceram por vários pontos da Europa cristã (dos quais um dos mais poderosos foi o que devastou a França meridional sob a denominação genérica de catarismo).
Se foi possível a eclosão dessa crise no século XVI através do neopaganismo renascentista e de seu mais nefasto fruto, que foi a Pseudo-Reforma protestante, devemo-lo à decadência da Idade Média por um surto de orgulho e sensualidade em largos setores da Igreja e da Cristandade.
Como aconteceu aos israelitas que deixaram de habitar Jerusalém e de procurar a firmeza do Monte Sião, que vem da confiança no Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, assim também os cristãos, a partir do início dessa crise, foram gradualmente se enfraquecendo por se distanciarem desse baluarte que é a verdadeira Igreja de Deus. Durante o cativeiro, diziam os israelitas: "Junto dos rios de Babilônia, ali nos assentamos a chorar, lembrando-nos de Sião" (Sl. 136, 1). Assim também a Cristandade, que se deixou arrastar pelo surto de orgulho e de sensualidade até cair sob o domínio da Revolução, se senta a chorar, lembrando-se desse Monte Sião de que por culpa própria se vê afastada, representado pela doutrina e pelas graças de que é guardiã e dispensadora a Esposa Mística de Cristo.
O progressismo em face da crise universal
Segundo a lição de "Revolução e Contra-Revolução", a crise do homem ocidental e cristão é universal, una, total, dominante e prossessiva. Ora, é fácil demonstrar que o progressismo participa, de algum modo, de todas essas notas.
O fenômeno progressista não se dá desarticuladamente, mas seu caráter é uno. A linguagem e os atos de um progressista de Londres, de Paris, de Roma, de Buenos Aires, do Rio de Janeiro ou de Recife, bem como os focos de progressismo que existam em alguma aldeia do interior da Índia, da Austrália, da Patagônia ou do Canadá, são sempre os mesmos, em sua essência revolucionária, e transcendem os vários matizes locais que possam assumir. É o mesmo mal que ataca todo o mundo cristão, e esse caráter unitário lhe vem das fontes de onde ele emana.
É total a crise progressista, pois, considerada em um dado país, "se desenvolve numa zona de problemas tão profunda, que ela se prolonga ou se desdobra, pela própria ordem das coisas, em todas as potências da alma, em todos os campos da cultura, em todos os domínios, enfim, da ação do homem" (op. cit., Parte I, cap. III, 3).
Tendo uma origem nitidamente religiosa, espraia-se o progressismo por todos os recantos da vida cultural. Não lhe é estranho nem o campo filosófico, nem o artístico e, por isso mesmo que arraigadamente gnóstico, teria ele inexoravelmente que esposar o socialismo e o comunismo com todas as consequências trágicas desses erros, invadindo portanto o próprio campo da vida material, da vida política e social do homem moderno, em toda a sua complexidade.
A crise progressista é dominante. Os acontecimentos que marcam o progressismo em nossos dias "parecem um emaranhado caótico e inextricável, e de fato o são de muitos pontos de vista", para usar uma expressão que "Revolução e Contra-Revolução" aplica à crise contemporânea genericamente considerada. Mas essas mil forças progressistas em delírio se conjugam numa resultante sob cujo impulso os povos católicos que lhes sofrem a influência vão sendo gradualmente tangidos para um estado de coisas que se delineia igual em todos eles, sendo gradativamente quebradas as barreiras, impondo-se por toda parte os mesmos moldes e os mesmos clichês, tudo convergindo para dar ao progressismo um caráter dominante nos ambientes em que atua.
O progressismo no processo revolucionário
A crise progressista é também processiva. Do ponto de vista que aqui nos interessa, a Revolução em sua frente progressista é o resultado de um processo que deita suas raízes no humanismo renascentista e no primeiro brado de revolta de Lutero, passando pelos desvarios a que deram lugar as seitas do protestantismo, e depois pela Revolução Francesa e pela Revolução Comunista.
A admiração que o humanismo renascentista manifestava pelos autores pagãos está não somente na origem do erro progressista, mas é equipolente à admiração que os neomodernistas votam a Marx, Lenine, Mao Tsé-tung ou Marcuse, produzindo no campo católico estragos semelhantes aos que os humanistas neopagãos do século XVI causaram nas fileiras da Santa Igreja de Deus.
O orgulho, que deu origem ao espírito hipercrítico e ao livre-exame, produziu a insurreição iniciada por Lutero e Calvino contra a autoridade eclesiástica. Tal insurreição — expressa em todas as seitas protestantes pela revolta contra o Papado, e mesmo, em algumas das mais radicais, pela negação do que se poderia chamar a aristocracia da Igreja, que são os Bispos — faz parte do processo histórico do progressismo e, ao mesmo tempo, se repete, quase linha por linha, nas mais variadas e audaciosas revoltas progressistas que presenciamos em nossos dias, não somente de Padres contra a autoridade episcopal (e enorme cópia de documentação podemos apresentar nesse sentido) , mas também de setores do Clero e do Episcopado contra a própria autoridade da Santa Sé, não se detendo esses abusos nem mesmo ante as barreiras dogmáticas, como está sendo o doloroso caso da Encíclica "Humanae Vitae".
Passamos aqui ao plano moral, em que, segundo o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, "o triunfo do sensualismo no protestantismo se afirmou pela supressão do celibato eclesiástica e pela introdução do divórcio" (op. cit., Parte I, cap. III, 5). Continuadores desse processo revolucionário iniciado com a Pseudo-Reforma, os progressistas de nossos dias se mostram prática e doutrinariamente contra o celibato eclesiástico. No que diz respeito ao divórcio, basta que citemos um exemplo: chegaram ao cúmulo, no caso particular do Brasil, de se destacarem como adversários da vitoriosa campanha empreendida pela TFP quando da tentativa de aprovação do projeto de Código Civil que importaria na supressão da indissolubilidade do casamento.
O progressismo, herdeiro da Revolução Francesa
Abismo atraído por outro abismo, insere-se o progressismo nesse mesmo processo revolucionário que teve na Revolução Francesa uma de suas importantes etapas. Mais do que qualquer Robespierre ou do que qualquer Danton, os grandes responsáveis pela Revolução Francesa foram o jansenismo, herdeiro disfarçado do protestantismo, e o galicanismo, herdeiro ostensivo dos legistas renascentistas (os primeiros a se rebelarem contra a autoridade do Papa), por isso mesmo que um e outro abalaram a única força capaz de manter a França fiel a si mesma, que era a adesão à Santa Igreja Católica Apostólica Romana.
Da Revolução Francesa veio o liberalismo, novo aspecto assumido pela explosão de orgulho que se achava na base da revolta de Lutero; veio também o igualitarismo político e social, com a rejeição por princípio, da monarquia e da aristocracia, simétrica à negação do Papado e da aristocracia eclesiástica — representada pelo Episcopado — operada pelas variadas seitas do protestantismo.
O progressismo aceita todas essas consequências igualitárias da Revolução Francesa, mas vai mais além e exige em altos brados outra igualdade que apenas começara a se esboçar em 1789: a igualdade econômica.
O progressismo ante a fase comunista da Revolução
Caímos assim na identificação do progressismo com o processo revolucionário em sua fase atual, que é a comunista em suas mais variadas formas. Como amostra típica da atuação comunista dos progressistas, podemos tomar o documento de autoria do Pe. Comblin, objeto da carta que a 21 de junho de 1968 o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, como Presidente do Conselho Nacional da TFP, endereçou ao Sr. Arcebispo de Olinda e Recife ("Catolicismo", n.° 211, de julho de 1968). O de então para cá tristemente famoso Sacerdote belga se mostra, nesse documento, contra arrendadores de terras e acionistas de empresas econômicas, faz o elogio do comunismo cubano, afirma ser necessário garrotear a maioria que não se deixa persuadir da utilidade das reformas de espírito marcadamente comunista que ele deseja para o Brasil. Prega ainda a derrubada do governo por grupos de pressão fanatizados que manobrem a opinião pública, e a revolução na Igreja, através da virtual anulação da autoridade dos Bispos, sujeitando-os à ditadura de um órgão que se entrevê ser um verdadeiro politburo eclesiástico, camarilha de Bispos extremistas a dominar a Igreja no Brasil. Como se tudo isso não fosse suficiente, propõe o P.e. Comblin, se necessário for, a liquidação das Forças Armadas, a censura da imprensa, do rádio e da televisão, e a instituição de tribunais de exceção para sumariamente julgar quantos se oponham a essa ditadura comuno-reformista.
E não foi por um prurido obsessivo de subversão comunista que um Pe. Camilo Torres se transformou em guerrilheiro, e que levas de Sacerdotes progressistas no mundo inteiro fomentam nas fábricas, nos campos e nos meios estudantis a luta pelas reformas de base em suas mais extremadas colorações?
Seria difícil não classificar na mesma linha o recente pronunciamento do Sr. D. Helder Câmara em Nova York ("Catolicismo", n.° 218, de fevereiro de 1969), no encerramento da sexta Conferência Anual do Programa Católico de Cooperação Interamericana, quando colocou a grande heresia do mundo moderno, que é o comunismo totalitário e opressor da Igreja, em segunda plana em relação ao problema do desenvolvimento, e do subdesenvolvimento, pregou a neutralização dos EUA como potência anticomunista, fazendo completa abstração do armamentismo e das tendências imperialistas da Rússia e da China, ao mesmo tempo que advogava a admissão da China comunista nas Nações Unidas, bem como a "reintegração de Cuba na comunidade latino-americana [...] com o devido respeito às suas opiniões políticas". Que "opiniões políticas" serão essas? Todo o mundo livre conhece de sobra quais sejam: o regime comunista que escraviza o que resta da infeliz população cubana.
O progressismo e as metamorfoses da Revolução
Intimamente integrada no processo revolucionário, a facção progressista sabe, como ele, usar oportunas metamorfoses. Assim, embora herdeira da revolta de Lutero, não lhe segue os passos na decisão de se destacar nitidamente da Igreja. Prefere a política adotada pelo jansenismo, que foi uma espécie de protestantismo que se recusava obstinadamente a sair do seio da Igreja, para melhor prosseguir em seu desígnio de corrupção do organismo católico. Foi o que o jansenista Saint-Cyran insinuou a São Vicente de Paulo, ao dizer-lhe que Calvino pensara bem mas agira mal, isto é, não se devia ter separado da Igreja. Essa tática passou a orientar certa ala revolucionária, e assim ponderáveis contingentes dos antecessores imediatos do progressismo, que foram os chamados católicos liberais, e mais perto de nós os chefes de fila do modernismo, porfiaram em não abdicar de sua qualidade de membros da Igreja.
Essa tática foi aprimorada durante o pontificado de São Pio X, que assim denuncia e condena o embuste: "Aludimos, Veneráveis irmãos, a muitas membros do laicato católico e também, coisa ainda mais para lastimar, a não poucos do Clero, que, fingindo amor à Igreja e sem nenhum sólido conhecimento de filosofia ou teologia, mas embebidos antes das teorias envenenadas dos inimigos da Igreja, blasonam, postergando todo