RESISTÊNCIA PÚBLICA A DECISÕES DA AUTORIDADE ECLESIÁSTICA
Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira
Vários leitores de "Catolicismo" manifestaram o desejo de que expuséssemos mais pormenorizadamente um ponto de doutrina que, de passagem, abordamos no último número deste jornal. Trata-se da tese de que, em face de uma decisão desacertada da autoridade eclesiástica, pode-se dar que ao católico esclarecido seja lícito não apenas negar o seu assentimento a essa decisão, mas também, em certos casos extremos, opor-se-lhe mesmo de público. Mais ainda, tal oposição pode constituir verdadeiro dever (cf. nosso artigo "Pode haver erro...", p. 8, 1a col.).
É com certa relutância que aprofundaremos essa matéria. No pensamento e na vida do católico, é tão essencial o princípio de autoridade, que preferiríamos não realizar novas investigações sobre a melindrosa questão da resistência a decisões da Hierarquia.
A isso, entretanto, nos obrigam hoje em dia alguns dentre os próprios membros da Sagrada Hierarquia, que a todo momento escandalizam o povo de Deus com seus pronunciamentos e atitudes inconciliáveis com a sã doutrina (cf., por exemplo, os documentos episcopais sobre a "Humanae Vitae" indicados em nosso artigo citado, "Pode haver erro...", p. 7, 2a e 3a cols.).
Tais pronunciamentos e atitudes põem em risco a fé de muitas almas simples. Não nos é dado cruzar os braços ante tão grave mal.
Nosso objetivo, portanto, não é senão contribuir, embora modestamente, para esclarecer essas almas perplexas. Com tal fim, analisaremos o que a doutrina católica ensina sobre a possibilidade de resistência do fiel contra decisões disciplinares iníquas e contra ensinamentos errôneos de autoridades eclesiásticas.
Desejamos apenas a exaltação da Santa Igreja - sociedade visível (cf. Denz.- Umb. 86, 223, 247, 347, 430 ss., 464, 468, 999, 1686, 1793 ss., 1821 ss., 1955 ss.), perfeita (cf. Denz.-Umb. 330 ss., 498, 1698, 1719 ss., .1841 ss., 1847, 1867, 1869, 2203), hierárquica (cf. Denz.-Umb. 41 ss., 44 ss., 150 ss., 272, 361, 424, 426, 434, 498, 675, 687, 853, 960, 966 ss., 2145), monárquica (cf. Denz.-Umb. 44, 498, 633, 658 ss., 1325, 1500, 1503, 1698 ss., 1821, 2091, 2147a), fora da qual não há salvação nem remissão dos pecados (cf. Denz.-Umb. 2 ss., 14, 39 ss., 246 ss., 423, 430, 468 ss., 570b, 714, 999 ss., 1473, 1613 ss., 1646 ss., 1677, 1716 ss., 1954 ss., 2199), e que, por direito divino, tem a missão de guardar e expor infalivelmente a doutrina revelada (cf. Denz.-Umb. 160, 767, 1444, 1512, 1617, 1675, 1839, 1957 ss., 1969, 2147).
Como todo católico que busca ser fiel à Santa Igreja, preferimos perder a vida a praticar qualquer ação que traga detrimento para a salvação das almas. Mas preferimos também perder a vida a faltar ao dever - que incumbe mesmo os leigos - de combater, na medida das próprias possibilidades, pela defesa da Fé e dos bons costumes: "o membro [da Igreja] - diz o II CONCÍLIO VATICANO ao tratar do apostolado leigo - que não trabalha para o aumento do Corpo segundo sua medida, deve considerar-se inútil para a Igreja e para si mesmo" ("Apost. Actuosit.", n.° 2).
Bispos e autoridades eclesiásticas inferiores
Na matéria que ora nos ocupa, preferimos não mesclar nossa voz com a dos grandes Santos e a dos teólogos aprovados na Santa Igreja. Assim sendo, no presente item e no seguinte limitar-nos-emos a reproduzir o que alguns deles disseram. A eles deixamos o encargo de nos ensinar não só qual o alcance da tese que defendem, como também quais os argumentos em que a fundamentam.
Não nos ocuparemos, senão de passagem, do princípio segundo o qual é lícito resistir, mesmo publicamente, aos Bispos e às autoridades eclesiásticas inferiores que, por sua má doutrina; por sua vida escandalosa ou por seus decretos iníquos, ponham em perigo a fé e a salvação das almas. Tantos são os exemplos, na História da Igreja, de Santos que ergueram a voz contra maus pastores, que a dificuldade antes consistiria em escolher as provas da legitimidade de tal procedimento. Entre os teólogos não há dúvida a respeito.
Ademais, demonstrando a liceidade - em certos casos extremos e raríssimos, mas em princípio possíveis - da resistência pública (e sempre respeitosa) ao próprio Sumo Pontífice, estaremos demonstrando implicitamente a liceidade de semelhante resistência a qualquer outra autoridade eclesiástica que se tenha transformado em corruptora da Fé ou dos bons costumes. Com efeito, se essa norma, em sã doutrina, vale em relação ao Papa, a fortiori valerá em relação a qualquer prelado.
Aplica-se ao caso, mutatis mutandis, uma consideração feita pelo Padre Nicola Spedalieri, ilustre teólogo italiano do século XVIII, a propósito do direito de resistir ao tirano temporal. Encontramo-la indicada na seguinte página de BALMES:
"Sabido é que o Papa, reconhecido como infalível quando fala ex cathedra, não o é, contudo, como pessoa particular, e neste conceito poderia cair em heresia. Em tal caso, dizem os teólogos que o Papa perderia a sua dignidade, sustentando uns que se deveria destituir, e afirmando outros que a destituição se realizaria pelo mero fato de se haver apartado da fé. Escolha-se uma qualquer destas opiniões, sempre se dará o caso de ser lícita a resistência: e isto por que? Porque o Papa se teria desviado escandalosamente do objeto de sua instituição, destruiria a base das leis da Igreja, que é o dogma, e por conseguinte caducariam as promessas e juramentos de obediência que se lhe haviam prestado. Spedalieri, ao propor este argumento, observa que não são certamente de melhor condição os Reis que os Papas, que a uns e outros foi concedida a potestade in aedificationem, non in destructionem [para edificar, não para destruir]; acrescentando que se os Sumos Pontífices permitem esta doutrina com respeito a eles, não devem ofender-se da mesma os Soberanos temporais" (vol. IV, cap. 56, pp. 78-79).
Também não devem ofender-se da mesma - acrescentaríamos nós - os Bispos e demais prelados.
Vejamos pois, apenas de passagem, alguns textos referentes à legitimidade de resistência pública à autoridade episcopal:
• D. GUÉRANGER. - Escrevendo sobre São Cirilo de Alexandria, insigne adversário do nestorianismo, Dom Prosper GUÉRANGER, Abade de Solesmes, ensina: "Quando o pastor se transforma em lobo, é ao rebanho que, em primeiro lugar, cabe defender-se. Normalmente, sem dúvida, a doutrina desce dos Bispos para o povo fiel, e os súditos, no domínio da Fé, não devem julgar seus chefes. Mas há, no tesouro da Revelação, pontos essenciais, que todo cristão, em vista de seu próprio título de cristão, necessàriamente conhece e obrigatoriamente há de defender" (pp. 340-341).
• HERVÉ. - Analisando os diversos fatores que contribuem para uma explicitação sempre maior dos dogmas ao longo dos séculos, HERVÉ elogia a oposição movida pelos fiéis contra Nestório, Patriarca herético de Constantinopla: "Sob o instinto do Espírito Santo, os fiéis podem ser conduzidos a uma melhor intelecção e crença em relação ao que incrementa a piedade e o culto, favorecendo desse modo o progresso do dogma. Com efeito, o murmurar dos fiéis contra Nestório foi de grande auxílio para a definição da Maternidade divina da Santíssima Virgem [...]" (vol. III, p. 305).
• D. ANTONIO DE CASTRO MAYER. - O ilustre Bispo de Campos publicou recentemente um documento em que relembra a doutrina tradicional sobre o direito de resistência à autoridade eclesiástica iníqua. Trata-se da carta de aprovação ao magnífico "Vade-Mécum do Católico Fiel", no qual quatrocentos Sacerdotes de diversos países, combatendo o progressismo, expõem os princípios da verdadeira Fé católica e convidam os fiéis a se oporem à nova heresia que hoje invade todo o orbe. Na sua carta de aprovação desse Vade-Mécum, o Sr. Bispo de Campos o declara sumamente oportuno e acrescenta:
"[...] não nos venham dizer que não pertence aos fiéis - como proclama o Vade-Mécum - ajuizar do que se passa na Igreja; que lhes compete apenas seguir docilmente a orientação dada pelos Ministros do Senhor.
Não é verdade. A História da Igreja elogia a atitude dos fiéis de Constantinopla que se opuseram à heresia do seu Patriarca Nestório".
A seguir, D. Antonio de Castro MAYER cita o texto de Dom GUÉRANGER que reproduzimos acima.
"Resisti-lhe em face, porque merecia repreensão"
Será legítimo, em casos extremos, resistir até mesmo contra decisões do Soberano Pontífice?
Respondendo a essa pergunta, transcreveremos apenas documentos relativos à resistência pública porque, se em certas circunstâncias esta é legítima, com mais razão o será opor-se privadamente a uma decisão papal. Autor algum, de que tenhamos notícia, jamais levantou dúvidas quanto ao direito de semelhante oposição privada. Esta poderá fazer-se de duas maneiras: expondo à Santa Sé as razões que haja contra o documento; ou através da chamada "correção fraterna", isto é, de uma advertência feita em particular, com o objetivo de obter a emenda da falta cometida.
Sobre a resistência privada a decisões papais ou das Congregações Romanas, pode-se ver: SÃO TOMÁS DE AQUINO, in IV Sent., dist. 19, q. 2, a. 2; "Summa Theol.", II-II, 33, 4; SUAREZ, "Def. Fidei Cath.", lib. IV, cap. VI, nn. 14-18; PESCH, tomus I, pp. 314-315; Bouix, tomus II, pp. 635 SS.; HURTER, tomus 1, pp. 491-492; PEINADOR, tomus II, vol. I, pp. 286-287; SALAVERRI, pp. 725726.
Passemos aos textos que admitem a resistência pública em casos especialíssimos:
• SÃO TOMÁS DE AQUINO. - Ensina o Doutor Angélico, em diversas de suas obras, que em casos extremos é lícito resistir publicamente a uma decisão papal, como São Paulo resistiu em face a São Pedro: "[...] havendo perigo próximo para a fé, os prelados devem ser argüidos, até mesmo publicamente, pelos súditos. Assim, São Paulo, que era súdito de São Pedro, argüiu-o publicamente, em razão de um perigo iminente de escândalo em matéria de Fé. E, como diz a Glosa de Santo Agostinho, "o próprio São Pedro deu o exemplo aos que governam, a fim de que estes, afastando-se alguma vez do bom caminho, não recusassem como indigna uma correção vinda mesmo de seus súditos" (ad Gal. 2, 14)" (SÃO TOMÁS, "Summ. Theol.", II-II, 33, 4, 2).
No comentário à Epístola aos Gálatas, ao estudar o episódio em que São Paulo resistiu em face a São Pedro, assim escreve SÃO TOMÁS:
"A repreensão foi justa e útil, e o seu motivo não foi leve: tratava-se de um perigo para a preservação da verdade evangélica [...].
O modo como se deu a repreensão foi conveniente, pois foi público e manifesto. Por isso, São Paulo escreve: "Falei a Cefas", isto é, a Pedro, "diante de todos", pois a simulação praticada por São Pedro acarretava perigo para todos. — Em 1 Tim. 5, 20, lemos: "aos que pecarem, repreende-os diante de todos". Isso se há de entender dos pecados manifestos, e não dos ocultos, pois nestes últimos deve-se proceder segundo a ordem própria à correção fraterna" (SÃO TOMÁS, ad. Gal. 2, 11-14, lect. III, nn. 83-84).
SÃO TOMÁS observa ainda que a referida passagem da Escritura contém ensinamentos tanto para os prelados quanto para os súditos: "aos prelados [foi dado exemplo] de humildade, para que não se recusem a aceitar repreensões da parte de seus inferiores e súditos; e aos súditos [foi dado] exemplo de zelo e liberdade, para que não receiem corrigir seus prelados, sobretudo quando o crime for público e redundar em perigo para muitos" (idem, ibidem, n. 77).
• VITORIA. — Escreve o eminente teólogo dominicano do século XVI:
"Caietano, na mesma obra em que defende a superioridade do Papa sobre o Concílio, diz no cap. 27: "Logo, deve-se resistir em face ao Papa que publicamente destrói a Igreja, por exemplo não querendo dar benefícios eclesiásticos senão por dinheiro ou em troca de serviços; e se há de negar, com toda a obediência e respeito, a posse de tais benefícios àqueles que os compraram".
E Silvestre [Prierias], na palavra Papa, § 4, pergunta: "Que se há de fazer quando o Papa, por seus maus costumes, destrói a Igreja?" E no § 15: "Que fazer se o Papa quisesse, sem razão, ab-rogar o Direito positivo?" A isso, responde: "Pecaria certamente; não se deveria permitir-lhe agir assim, nem se deveria obedecer-lhe no que fosse mau; mas dever-se-ia resistir-lhe por uma repreensão cortês".
Em conseqüência, se desejasse entregar todo o tesouro da Igreja ou o patrimônio de São Pedro a seus parentes, se desejasse destruir a Igreja, ou outras coisas semelhantes, não se lhe deveria permitir que agisse de tal forma, mas ter-se-ia a obrigação de opor-lhe resistência. A razão disso está em que ele não tem poder para destruir; logo, constando que o faz, é lícito resistir-lhe.
De tudo isto resulta que, se o Papa, com suas ordens e seus atos, destrói a Igreja, pode-se resistir-lhe e impedir a execução de seus mandados [...].
Segunda prova da tese. Por direito natural é lícito repelir a violência pela violência. Ora, com tais ordens e dispensas, o Papa exerce violência, porque age contra o Direito, conforme ficou acima provado. Logo, é lícito resistir-lhe. Como observa Caietano, não afirmamos tudo isto no sentido de que a alguém caiba ser juiz do Papa ou ter autoridade sobre ele, mas no sentido de que é lícito defender-se. A qualquer um, com efeito, assiste o direito de resistir a um ato injusto, de procurar impedi-lo e de defender-se" (VITORIA, pp. 486-487).
• SUAREZ. “Se [o Papa] baixar uma ordem contrária aos bons costumes, não se há de obedecer-lhe; se tentar fazer algo manifestamente oposto à justiça e ao bem comum, será lícito resistir-lhe; se atacar pela força, pela força poderá ser repelido, com a moderação própria à defesa justa [cum moderamine inculpatae tutelae]” ("De Fide", disp. X, sect. VI, n. 16).
• SÃO ROBERTO BELLARMINO. — "[...] assim como é lícito resistir ao Pontífice que agride o corpo, assim também é lícito resistir ao que agride as almas, ou que perturba a ordem civil, ou, sobretudo, àquele que tentasse destruir a Igreja. Digo que é lícito resistir-lhe não fazendo o que ordena e impedindo a execução de sua vontade; não é lícito, contudo, julgá-lo, puni-lo ou depô-lo, pois estes atos são próprios a um superior" ("De Rom. Pont.", lib. II, c. 29).
• CORNÉLIO A LAPIDE. — Mostra o ilustre exegeta que, segundo Santo Agostinho, Santo Ambrósio, São Beda, Santo Anselmo e muitos outros Padres, a resistência de São Paulo a São Pedro foi pública "para que desse modo o escândalo público dado por São Pedro fosse remediado por uma repreensão também pública" (ad Gal. 2, 11).
Depois de analisar as diversas questões teológicas e exegéticas suscitadas pela atitude assumida por São Paulo, Cornélio a LAPIDE escreve: “que os superiores podem ser repreendidos, com humildade e caridade, pelos inferiores, a fim de que a verdade seja defendida, é o que declaram, com base nesta passagem [Gal. 2, 11], Santo Agostinho (Epist. 19), São Cipriano, São Gregório, São Tomás e outros acima citados. Eles claramente ensinam que São Pedro, sendo superior, foi repreendido por São Paulo [...]. Com razão, pois, disse São Gregório (Homil. 18 in Ezech.): "Pedro calou-se a fim de que, sendo o primeiro na hierarquia apostólica, fosse também o primeiro em humildade". E Santo Agostinho escreveu (Epist. 19 ad Hieronymum): "Ensinando que os superiores não recusem deixar-se repreender pelos inferiores, São Pedro deu à posteridade um exemplo mais incomum e mais santo do que deu São Paulo ao ensinar que, na defesa da verdade, e com caridade, aos menores é dado ter a audácia de resistir sem temor aos maiores" (ad Gal. 2, 11).
• WERNZ E VIDAL. — Citando Suarez, a obra "Ius Canonicum", de WERNZ-VIDAL, admite que, em casos extremos, é lícito resistir a um mau Papa: "Os meios justos a serem empregados contra um mau Papa são, segundo Suarez ("Defensio Fidei Catholicae", lib. IV, cap. 6, nn. 17-18), o auxílio mais abundante da graça de Deus, a especial proteção do Anjo da Guarda, a oração da Igreja Universal, a advertência ou correção fraterna em segredo ou mesmo de público, bem como a legítima defesa contra uma agressão quer física quer moral" (vol. II, p. 520).
• PEINADOR. — Os autores de nossos dias fazem suas as asserções dos antigos sobre a matéria que estamos analisando. Assim é que PEINADOR, citando largos trechos de São Tomás, escreve: "[...] "também o súdito pode estar obrigado à correção fraterna de seu superior" [S. Teol., II-II, 33, 4]. Pois também o superior pode ser espiritualmente indigente, e nada impede que de tal indigência seja libertado pelo súdito. Todavia, "na correção pela qual os súditos repreendem a seus prelados, cumpre agir de modo conveniente, isto é, não com insolência e aspereza, mas com mansidão e reverência" [S. Teol., ibidem]. Por isso, em geral o superior deve ser sempre advertido privadamente. "Tenha-se entretanto presente que, havendo perigo próximo para a fé, os prelados devem ser argüidos, até mesmo publicamente, pelos súditos" [S. Teol., II-II, 33, 4, 2]" (PEINADOR, tomus II, V01. I, p. 287).
• OUTROS AUTORES. — Para maior aprofundamento dessa matéria, pode-se ainda ver: SÃO TOMÁS DE AQUINO, in IV Sent., d. 19, q. 2, a. 2, ql. 3, sol. et ad 1; SUAREZ, "De Legibus", lib. IX, cap. XX, nn. 19-29; "Def. Fidei Cath.", lib. IV, cap. VI, nn. 14-18; REIFFENSTUEL, tract. IV, dist. VI, q. 5, nn. 51-54, pp. 162-163; MAYOL, q. III, a. 4, col. 918; GURY-BALLERINI, tomus I, pp. 222-227; Card. C. MAZZELLA, pp. 747-748; URDANOZ, coment. a Vitoria, pp. 426-429.
Uma divergência, que reputamos apenas aparente
Como vemos, são numerosos e de grande peso os autores que declaram lícito, em casos extraordinários, opor-se mesmo de público a alguma decisão errônea da autoridade eclesiástica, e até da Sé Romana. Se a isso acrescentarmos os exemplos históricos de Santos que procederam dessa forma, concluiremos que se trata de tese pacífica na Santa Igreja.
Um fato existe, contudo, que a alguns parecerá tirar a essa tese o seu caráter pacífico: em obras tanto de Dogma quanto de Moral, é freqüente — e mesmo comum — a sentença de que nunca é lícito ao fiel romper o silêncio obsequioso em relação a um documento papal, mesmo em face da evidência de que nele existe algum erro.
Em artigo anterior já abordamos a delicada questão da quebra do silêncio obsequioso (cf. "Pode haver erro..."). Apenas para fixar os dados fundamentais do problema, resumiremos ràpidamente o que escrevemos então:
• 1 — um documento do Magistério só é por si próprio infalível quando preenche as quatro condições explicitadas pelo Concílio do Vaticano;
• 2 — os documentos que não preenchem essas condições não são de si infalíveis, e podem, portanto, em princípio e em casos embora raríssimos, conter algum erro;
• 3 — não é, pois, de se excluir, em princípio, a hipótese de que pessoa douta, depois de acurado exame de determinado documento do Magistério não infalível, chegue à evidência de que nele há algum erro.
• 4 — nessa hipótese, será necessário agir com circunspecção e humildade, empregando todos os meios razoáveis para esclarecer a questão, entre os quais avulta a representação ao órgão do Magistério de onde emanou o documento;
• 5 — se, empregados todos os recursos aconselháveis, persistir a evidência do erro, será lícito suspender, nesse ponto, o assentimento interno que de si o documento postula.
Aqui se põe a questão que ora nos ocupa: será lícito também, pelo menos em casos extremos, recusar à declaração pontifícia o acatamento externo, isto é, o chamado silêncio obsequioso? Em outras palavras: em alguma hipótese será lícito, opor-se externamente, quiçá mesmo de público, a um documento do Magistério romano?
É na resposta a essa pergunta que os autores aparentemente divergem.
De uma parte, com efeito, grandes teólogos, como os citados acima, admitem em princípio que, em certas circunstâncias, o fiel tem o direito e mesmo o dever de "resistir em face" a Pedro. De outra parte, teólogos eminentes parecem sustentar que em hipótese absolutamente nenhuma será lícito romper o chamado silêncio obsequioso.
Antes, porém, de propor a solução que julgamos conciliar as opiniões de uns e outros, desejamos colocar sob os olhos do leitor alguns textos característicos em que parece estar fechada qualquer porta para uma quebra do silêncio obsequioso.
O silêncio obsequioso parece impor-se sempre
• STRAUB. — Assim expõe STRAUB a questão: "pode acontecer, per accidens, que [...] a alguém o decreto se apresente como certamente falso, ou como oposto a um argumento tão sólido, [...] que a força desse argumento não seja de forma alguma anulada pelo peso da autoridade sagrada; [...] na primeira hipótese, será lícito dissentir; na segunda, será lícito duvidar, ou ainda ter como provável a sentença discrepante do decreto sagrado; contudo, em vista da reverência devida à autoridade sagrada, NÃO SERÁ LÍCITO CONTRADIZÉ-LA PUBLICAMENTE [...], MAS DEVERÁ SER MANTIDO O SILÊNCIO, denominado obsequioso" (STRAUB, vol. II, § 968; cf. SALAVERRI, p. 725 — o destaque em versalete é nosso).
• MERKELBACH. — Na "Summa Theologiae Moralis", MERKELBACH encerra com as seguintes palavras o exame da matéria: "se per accidens, numa hipótese, entretanto raríssima, depois de exame muito cuidadoso, a alguém parecer que existem razões gravíssimas contra a doutrina assim proposta, será lícito, sem temeridade, suspender o assentimento interno; externamente, entretanto, SERÁ OBRIGATÓRIO O SILÊNCIO OBSEQUIOSO, em razão da reverência devida à Igreja" (vol. I, p. 601 — o destaque em versalete é nosso).
• MORS. — Conceitua o Pe. José MORS silêncio obsequioso da seguinte forma: "é a sujeição externa e reverencial à autoridade eclesiástica; consiste em que nada seja dito (de público) contra seus decretos. Tal silêncio é exigido pelo apreço devido à autoridade eclesiástica e pelo bem da Igreja, MESMO NO CASO EM QUE O CONTRÁRIO FÔSSE VERDADEIRAMENTE EVIDENTE" (TOMUS II, p. 187 — o destaque em versalete é nosso).
E o Pe. MORS, depois de expor a doutrina tradicional sobre o assentimento devido aos documentos do Magistério, conclui: "Entretanto, se houver contra o decreto razões verdadeiramente evidentes, cessará a obrigação do assentimento interno; MAS MESMO ENTÃO PERMANECERÁ A OBRIGAÇÃO DO SILÊNCIO. Tal caso, contudo, não ocorrerá facilmente" (idem, ibidem — o destaque em versalete é nosso).
• ZALBA. — "Per accidens, o assentimento interno poderá ser negado, caso conste com certeza a falsidade [do ensinamento de uma Congregação Romana]; do mesmo modo, será lícito duvidar, quando houver para isso razões verdadeiramente sólidas. Mas tanto num caso como no outro, CUMPRE MANTER O SILÊNCIO OBSEQUIOSO EXTERNO" (vol. II, p. 30, nota 21).
• OUTROS AUTORES. — No mesmo sentido, pronunciam-se ainda: TANQUEREY, "Syn. Theol. Dogm.", tomus I, p. 640; CHOUPIN, p. 91; CARTECHINI, p. 154.
Dois exemplos esclarecedores
Haverá verdadeira contradição entre a sentença dos teólogos que defendem a liceidade, em casos muito raros, de resistir publicamente a decisões papais, e a dos que declaram sempre ilícita a quebra do silêncio obsequioso? Serão, essas, duas orientações diversas que têm real e efetivamente dividido os autores?
Não o cremos. Uma análise detida da questão mostrará ser fácil harmonizar as duas sentenças — que, portanto, a nosso ver, são entre si contraditórias apenas na aparência.
Com efeito, é freqüente em Teologia, sobretudo em Moral — e o nosso caso é antes de ordem moral do que dogmática — encontrar afirmações genéricas, taxativas, absolutas, que, todavia, não têm o valor universal que aparentam. O autor resolve uma questão em princípio, não considerando
BIBLIOGRAFIA
BALMES, Jayme — "O Protestantismo Comparado com o Catolicismo em suas Relações com a Civilisação Europeia" — Livraria Internacional, Pôrto-Braga, vol. IV, 1877.
BOUIX, D. — "Tractatus de Papa" — Lecoffre, Parisiis-Lugduni, tomus II, 1869.
CARTECHINI, S. J., Sisto — "Dall'Opinione al Domma" La Civiltà Cattolica, Roma, 1953.
CATHREIN, S. J., Victor — "Philosophia Moralis" — Herder, Barcelona, 1945.
CHOUPIN, S. J., Lucien — "Valeur des Décisions Doctrinales et Disciplinaires du Saint-Siège" Beauchesne, Paris, 1928.
CONCÍLIO VATICANO II — "Decreto Apostolicam Actuositatem", sobre o apostolado dos leigos — in "Documentos do Vaticano II", Vozes, Petrópolis, 1966, pp. 519-557.
CONCILIO VATICANO II — "Decreto Christus Dominus", sobre o múnus pastoral dos Bispos na Igreja — in "Documentos do Vaticano II", Vozes, Petrópolis, 1966, pp. 395-429.
DENZINGER, Henricus — UMBERG, Iohannes Bapt. "Enchiridion Symbolorum" — Herder, Barcelona, 1946.
DU PASSAGE, Henri — Verbete "Usure" — in "Dictionnaire de Théologie Catholique", tome XV, 1948.
GUÉRANGER, O. S. B., Dom Prosper — "L'Année Liturgique" — festa de São Cirilo de Alexandria, 9 de fevereiro — Mame, Tours, 1922.
GURY, S. J., Joanes Petrus — BALLERINI, S. J., Antonius — "Compendium Theologiae Moralis" — Civiltà Catt., Romae; Marietti, Taurini; tomus I, 1866.
HERVÉ, J. M. — "Manuale Theologiae Dogmaticae" — Berche et Pagis, Parisiis, vol. I, 1952; vol. III, 1953.
HURTER, S. L, H. — "Theologiae Dogmaticae Compendium" — Wagneriana, Oeniponte; Bloud et Barral, Parisiis; 1883.
LAPIDE, S. J., Cornelius a — "Commentaria in Scripturam Sacram" — Vivès, Parisiis, tomus XVIII, 1876.
MAYOL, O. P., Joseph — "Praeambula ad Decalogum" — in "Theologiae Cursus Completus", Migne, Parisiis, tomus- XIII, 1858, cols. 730-1106.
MAYER, D. Antonio de Castro — Aprovação do "Vade-Mécum do Católico Fiel" — São Paulo, 1969.
MAZZELLA, Card. Camillus — "De Religione et Ecclesia" — Typ. Polygl., Romae, 1880.
MERKELBACH, O. P., Benedictus Henricus — "Summa Theologiae Moralis" — Desclée, Parisiis, tomus I, 1931.
MORS, S. J., Iosephus — "Institutiones Theologiae Fundamentalis" — Vozes, Petrópolis, tomus II, 1943.
PEINADOR, C. M. F., Antonius — "Cursus Brevior Theologiae Moralis" — Coculsa, Madrid, tomus II, vol. I, 1950; tomus II, vol. II, 1954.
PESCH, S. J., Christianus "Praelectiones Dogmaticae" — Herder, Friburgi Brisgoviae, tomus I, 1898.
PIO XI — "Encíclica Ubi Arcano", sobre a paz de Cristo no Reino de Cristo — Vozes, Petrópolis, 1946.
REIFFENSTUEL, O. F. M., Anacletus "Theologia Moralis" — Bortoli, Venetiis, 1704.
SALAVERRI, S. J., Ioachim — "De Ecclesia Christi" — in "Sacrae Theologiae Summa", B. A. C., Matriti, vol. I, 1958.
SANTO AGOSTINHO — Ad Gaiatas 2, 14 — apud São Tomás de Aquino, "Summ. Theol.", II-II, 33, 4, 2.
SÃO ROBERTO BELLARMINO — "De Romano Pontifice" — "Opera Omnia", N. Battezzati, Mediolani, vol. I, 1857.
SÃO TOMÁS DE AQUINO — "Super Epistolam ad Gaiatas Lectura" in "Super Epistolas S. Pauli Lectura", Marietti, Taurini-Romae, vol. I, 1953.
SÃO TOMÁS DE AQUINO "Summa Theologiae" — Marietti, Taurini-Romae, Pars II-II, 1948.
SÃO TOMÁS DE AQUINO — "Commentum in IV Librum Sententiarum Magistri Petri Lombardi" — "Opera Omnia", Vivès, Parisiis, vol. X, 1889.
SCHWALM, M.-B. Verbete "Communisme" in "Dictionnaire de Théologie Catholique", tome III, 1923.
STRAUB, S. J., Antonius — "De Ecclesia Christi" — Pustet, Oeniponte, vol. II, 1912.
SUAREZ, S. J., Franciscus — "De Legibus" — "Opera Omnia", Vivès, Parisiis, tomus V, 1856.
SUAREZ, S. J., Franciscus — "De Fide" — "Opera Omnia", Vivès, Parisiis, tomus XII, 1858.
SUAREZ, S. L, Franciscus — "Defensio Fidei Catholicae" — "Opera Omnia", Vivès, Parisiis, tomus XXIV, 1859.
TANQUEREY, Ad. — "Synopsis Theologiae Moralis et Pastoralis" — Desclée, Parisiis-Tornaci-Romae, tomus III, 1948.
TANQUEREY, Ad. — "Synopsis Theologiae Dogmaticae" — Desclée, Parisiis-Tornaci-Romae, tomus I, 1959.
URDANOZ, O. P., Teofilo — Comentário à "Suma Teológica" de São Tomás de Aquino — in "Suma Teológica", B. A. C., Madrid, tomo VIII, 1956.
URDANOZ, O. P., Teofilo — Comentário às "Relectiones Teologicas" de Francisco de Vitoria — in "Obras de Francisco de Vitoria", B. A. C., Madrid, 1960.
VITORIA, O. P., Franciscus de — "Obras de Francisco de Vitoria" — B. A. C., Madrid, 1960.
WERNZ, S. J., Franciscus Xav. — VIDAL, S. J., Petrus — "Ius Canonicum" — Gregoriana, Romae, tomus II, 1943.
XAVIER DA SILVEIRA, Arnaldo Vidigal — "Pode haver erro em documentos do Magistério?" — in "Catolicismo", n.° 223, de julho de 1969.
ZALBA, S. J., Marcellino — "Theologiae Moralis Compendium" — B. A. C., Matriti, 1958.