"O EPISCOPADO HOLANDÊS TEVE A CORAGEM DE ASSUMIR A RESPONSABILIDADE DA IGREJA-NOVA"
Gustavo Antonio Solimeo
A sexta sessão do chamado Concílio Pastoral holandês desenrolou-se em Noordwijkerhout no mês de abril, com muito menos alarde que a precedente.
Em artigo anterior ("O Concílio Pastoral holandês", "Catolicismo", n.° 232, de abril de 1970) procuramos mostrar o que há de chocante na estrutura e na própria existência dessa assembleia, salientando o papel primordial desempenhado pelo IDOC em sua criação e na organização e orientação dos seus trabalhos, bem como as analogias existentes entre o seu funcionamento e a atuação dos "grupos proféticos". Procuramos igualmente deixar claro qual a responsabilidade que em tudo isso cabe aos Bispos Holandeses, e de modo especial a surpreendente posição que estes tomaram em face dos pronunciamentos do concílio-pastoral no que se refere à abolição do celibato sacerdotal e à ordenação de mulheres.
No final, apresentamos um documento do Episcopado, editado pelo PINK (Instituto Pastoral da Província Eclesiástica da Holanda, organismo vinculado ao IDOC), que contém certo número de diretrizes pastorais. Esse documento, ao tratar da questão do celibato eclesiástico, fala em dar "contornos mais claros à NOVA FORMA DA IGREJA". Concluímos nosso artigo perguntando qual seria essa nova forma da Igreja cujos contornos os Srs. Bispos Holandeses, juntamente com o concílio-pastoral e seus "peritos", querem tornar mais nítidos, e indagamos se não seria por acaso aquela preconizada pelo IDOC e pelos "grupos proféticos".
Essa é a questão que procuraremos responder no presente artigo, servindo-nos das próprias opiniões e conceitos emitidos pelos principais líderes do chamado Catolicismo holandês.
Muitos desses conceitos acham-se de um modo ou de outro presentes no "Novo Catecismo" elaborado pelos teólogos de Nimega, razão pela qual remetemos os nossos leitores aos lúcidos artigos do Sr. Cunha Alvarenga, estampados por esta folha em seus números 224, 228 e 231 (de agosto e dezembro de 1969 e março de 1970).
"Uma Igreja em devenir, uma Igreja em formação..."
Se o Episcopado assevera através do PINK — Pastoraal Instituut Nederlandse Kerkeprovincie — querer tornar mais claros os contornos da "nova forma da Igreja", o concílio (que é obra do mesmo PINK) segue a velha tática modernista de nunca dizer explicitamente e por inteiro o que se pensa. Um dos esquemas "conciliares" recomenda que se evitem as discussões teóricas em torno de definições precisas da Igreja, relativas a ministério, ordenação, caráter sacramental, sacerdócio eterno, etc. Afirma que esse debate não tem consequências para a pastoral concreta (cf. Pe. H. J. Van Dijk, S. C. J., artigo "L'Eglise Néerlandaise Catholique Reformée: son Credo et son ministère", in "Confrontatie", Tegelen, novembro de 1969, p. 21).
Dentro dessa orientação, o esquema "conciliar" "Por um funcionamento fecundo e renovado do ministério", aprovado pela assembleia plenária de janeiro último, não toma o termo "Igreja" senão em um sentido provisório: "Tomado provisoriamente na sua generalidade, o termo "Igreja" quer significar: interpelados pela vida e pelo evangelho de Jesus de Nazaré, certas pessoas e certos grupos uniram-se no passado e unem-se hoje em dia uns aos outros, buscando manter em si mesmos e reciprocamente a "inspiração cristã", e procurando sem tréguas e conveniente adaptação desta a um mundo em transformação. Falamos aqui de "inspiração cristã" para conservar o seu conteúdo tão aberto quanto possível. Poderíamos falar também de "o melhor do Evangelho", ou da "mensagem cristã", ou da "Boa Nova", ou da "salvação", etc. Como ponto de partida, quereríamos simplesmente tomar a seguinte definição: "Igreja" quer dizer reunião de homens em torno do Evangelho de Jesus Cristo" ("IDOC International", n.° 16, p. 15).
É claro que essa "reunião de homens em torno do Evangelho de Jesus Cristo" não significa de forma alguma a união de todos os homens no sagrado aprisco da Santa Igreja, formando um só rebanho e um só Pastor, como o deseja o Divino Mestre: "Uma vez que a unidade da Igreja não significa mais a volta à Igreja Católica tal qual Ela é hoje, declarou o Prof. Van Melsen, Presidente do Conselho Conciliar durante a primeira sessão pública do concílio-pastoral, mas um crescimento de todas as Igrejas cristãs no sentido daquilo que a Igreja de Cristo deveria ser, não se pode dizer de antemão qual será a forma dessa Igreja" ("Informations Catholiques Internationales", n.° 281, p. 15).
O Bispo de Breda, Mons. Ernst, chega mesmo a perguntar-se se "dentro de dez ou vinte anos "ser de Igreja" não será coisa inteiramente diversa do que é hoje". E acrescenta: "Seria bem insensato quem desejasse fixar a norma para "ser de Igreja" com base em um padrão de outrora" (H. Ernst, "Autorité", in "Les Catholiques Hollandais", Desclée de Brouwer, 1969, pp. 59 e 61). Essa é igualmente a opinião do secretário-geral do IDOC, o Padre holandês Leo Alting von Geusau: "Nem a Igreja medieval, nem a pós-tridentina, nem tampouco a Igreja primitiva podem servir de modelo para hoje" ("La Chiesa, "scandalo" del mondo", in "La fine della Chiesa come società perfetta", "IDOC Documentinuovi", Amoldo Mondadori, Edit., vol. 7, 1968, p. 161).
Por essa razão, o acima citado esquema "conciliar" emprega "o termo aberto e dinâmico de "formação eclesial" (como processo contínuo), de preferência ao termo mais fechado e estático de "Igreja" ou "a Igreja". E chega à seguinte conclusão: "Todos os fatos concretos da vida eclesial o sugerem: a Igreja é uma IGREJA EM MOVIMENTO, uma IGREJA EM DEVENIR [Vir-a-Ser], uma IGREJA EM FORMAÇÃO" ("IDOC International", n.° 16, p. 23 — o destaque em versalete é do original).
A heresia modernista deixou os esconderijos das seitas secretas...
Esse conceito eclesiológico faz-nos recordar a "nova teoria sobre a Igreja" professada pelos modernistas, e condenada no pontificado de São Pio X pelo Decreto "Lamentabili", o qual a formulou nestes termos:
"52 — Cristo não pensou constituir a Igreja como uma sociedade destinada a durar na terra por uma longa série de séculos [...].
53 — A constituição orgânica da Igreja não é imutável; a sociedade cristã, assim como a sociedade humana, está sujeita a perpétua evolução.
54 — Os dogmas, os Sacramentos e a Hierarquia, tanto em sua noção, quanto em sua realidade, não passam de interpretações e evoluções do pensamento cristão, que por meio de incrementos externos, desenvolveram e aperfeiçoaram um pequeno germe que existia em estado latente no Evangelho" (Silabo das proposições dos modernistas condenadas pela Igreja — Decreto da Sagrada Inquisição Romana e Universal, de 3 de julho de 1907 — Editora Vozes Ltda., 1959, pp. 69-70).
Não é sem razão que o Exmo. Sr. D. Antônio de Castro Mayer afirma que hoje a heresia modernista "deixou os esconderijos das seitas secretas e aparece à luz do dia, encarnada na que chamam de Igreja "pós-conciliar" ("Em ascensão triunfal a heresia modernista", in "Catolicismo", n.° 220-221, de abril-maio de 1969, p. 3).
"Pluriformidade da expressão da fé"
Consequência dessa definição vaga e evolucionista de Igreja, de conteúdo "tão aberto quanto possível", é o fato de ter a 4a assembleia plenária do concílio-pastoral admitido o princípio da "pluriformidade da expressão da fé no seio da Igreja Católica". O modo como essa "pluriformidade" é entendida nos Países-Baixos ressalta de uma declaração do porta-voz dos delegados das Dioceses, um jovem leigo, professor secundário conforme a qual se pode ser agnóstico, ou mesmo positivamente não-crente, isto é, ateu, e pertencer à Igreja (cf. Pe. J. P. M. Van der Ploeg, O. P., artigo "Evolution et crise du Catholicisme aux Pays-Bas", in "La Pensée Catholique", n.° 122, p. 70).
"Quando o Cardeal Alfrink declarou recentemente na Itália que os católicos da Holanda não pretendem deixar a Igreja para fazer um cisma, pode-se dizer que isso é verdade. O que ele não disse é que isso é verdade apenas porque já não se exige, como conditio sine qua non para pertencer à Igreja, que se confesse sua fé inteira, nem que se viva segundo todas as suas leis morais" (id., p. 71).
Uma pergunta se impõe. Qual é então o requisito fundamental, a conditio sine qua non para pertencer à Igreja?
Em busca da cidade do homem
Em poucas palavras, o único requisito para pertencer à "Igreja" — não à Igreja Católica Apostólica Romana, mas à Igreja-Nova do IDOC, dos "grupos proféticos" e do concílio-pastoral dos holandeses — é o amor ao homem, o comprometer-se na luta sócio-política pela sua libertação, pouco importando o conceito que se tenha de religião, de Deus, etc. Um comunista, para os "profetas" da Igreja-Nova, pode, nesse sentido, ser perfeitamente "cristão".
Conforme declarações de um, Bispo alemão, Mons. Heinrich Maria Janssen, que assistiu como observador parte da terceira sessão do concílio-pastoral, a Igreja era ali considerada sempre como entidade sociológica. A vida eclesiástica e a vida cristã eram vistas como se desenvolvendo unicamente no plano horizontal das boas relações entre os homens. Na discussão sobre "A vida moral do cristão no mundo" o ideal humanitário era identificado sem reservas com o da vida cristã. Excluídos os três elementos "conservadores" ali presentes, toda a assembleia não fazia da Igreja e do Cristianismo senão uma ideia social (cf. Ploeg, p. 70).
Na revista "Bijeen", das Ordens e Congregações missionárias holandesas, foram publicadas em fevereiro de 1969 estas linhas: "Reino dos países pobres... Por que meio são consolados os pobres? Não pela promessa de um céu, com a recomendação de que sejam virtuosos . . . O Reino de Deus [...] não é alguma coisa de um outro mundo. O mundo não é duplo. A salvação deve intervir neste inundo, ou não há salvação de espécie alguma. Isto não quer dizer que a salvação não possa continuar depois desta vida [...] Toda pretensão, mesmo aquela que o nega, é muito audaciosa para o homem; aqui ele pode somente esperar, fazer poesia e sonhar [. . .]. Deve-se tratar de uma salvação visível" (apud "CICES", 30 de junho de 1969, p. 7). O autor destas linhas é o Pe. Vink, O. P., doutor em Sagrada Escritura!
Numa das sessões do concílio afirmou-se que toda "orientação em direção a Deus, em direção a um além, perde sua força. A vida está aqui. Deus está aqui. Nosso destino é de sermos bons uns para com os outros. Uma moralidade voltada para o homem, em lugar de uma moralidade voltada para Deus. Devemos ser bons para com nosso próximo por causa dele mesmo, e não por causa de uma recompensa a receber mais tarde" ("CICES", ibid.).
"Esse [Cristo] que você encontra nos pobres e nos oprimidos, que você encontra nos caminhos de sua vida, esse Cristo vivo não se reveste dez vezes mais de importância que o só Jesus de Nazaré?" (H. Renckens, S. J., "Bible et cathéchèse", in "Les Catholiques Hollandais", p. 30).
"A Teologia tem por tarefa aprofundar esse mistério de um Deus que, cada vez que nos queremos aproximar dEle, nos devolve a nós mesmos, a Jesus de Nazaré, ao homem de hoje" (H. Hillenaar e J. Peters, no prefácio de "Les Catholiques Hollandais", p. XIV).
E Marx tinha razão...
Nesse mesmo sentido, escreve o teólogo do Episcopado batavo, Pe. Edward Schillebeeckx, O. P.:
"A tônica [hoje] é posta mais no agir, no fazer, muito mais na "orto-praxia" do que na "orto-doxia". E isto me parece a grande mudança de rumo ocorrida no conceito da existência cristã. É óbvio que a ação deve ser também iluminada pela luz do pensamento, mas durante séculos a Igreja preocupou-se essencialmente em formular verdades, ao mesmo tempo que fazia demasiado pouco para melhorar o mundo. Em outros termos, Ela se fechou na ortodoxia, abandonando a ortopraxia aos homens que estão fora da Igreja, e aos não crentes [...]
O que importa essencialmente é juntos transformarmos este mundo em alguma coisa melhor. Juntos, crentes ou não, construirmos uma cidade justa e fraterna. Os crentes se deixarão guiar pela ideia de que Deus será o termo definitivo da tarefa para a qual eles colaboram aqui em baixo. Os não crentes trabalharão nesta obra com a ideia de que o progresso e a melhoria deste mundo acabarão pouco a pouco por eliminar a Deus
Continua na pág. 6
A perfeita alegria
Plinio Corrêa de Oliveira
Do Sr. Jeroboão Cândido Guerreiro recebi a seguinte carta, valentemente escrita e “assinada” à máquina:
“Ao ler as notícias recentes sobre a manifestação antiprogressista em Roma, e seu triste desfecho, pensei no Sr.
“Assim, mil e quinhentos católicos de vários países desfilam em Roma para exprimir a Paulo VI seu desagrado ante a reforma que ele está fazendo na Igreja. Entre outras coisas, querem eles que o Bispo de Roma em nossos dias tenha o mesmo poder absoluto dos seus antecessores. Chegados à Praça de São Pedro, eles ali permanecem em submissa vigília de orações, a pedir que Deus ilumine o Papa Montini. Este, de seu lado, se mantém desdenhosamente de portas e janelas fechadas, durante todo o tempo em que ali permanecem essas ovelhas... às quais, entretanto, ele não tem outra inculpação a fazer, senão a de que são mais papalinas do que ele. A pobre grei da superfidelidade supercatólica e super papalina se dispersa melancolicamente, sem ter ouvido do Pastor supremo, ao qual teimam em estar unidos, uma só palavra de afeto paterno. Mais. Pouco depois, Paulo VI, em uma alocução, os arrasou.
“Já dias antes, um ‘herege’ (adoto aqui a terminologia dos teólogos católicos), como o Patriarca armênio, Vasken, fora recebido com pompas como se fosse um papa, por Paulo VI, na Capela Sixtina. Agora, Paulo VI vai receber... certamente para algum ‘diálogo’ seguido de concessões, o líder contestatário (aliás, bem mais simpático do que o senhor e sua TFP), que é o Cardeal Alfrink, de Utrecht. Também poucos dias depois de dar com a porta na cara de seus infelizes superfiéis, Paulo VI recebeu, com distinção especial, os três guerrilheiros afro-lusos. Para agosto, está programada a visita de Tito ao Vaticano, onde será recebido com honras de chefe de Estado. E assim por diante.
“O Sr., Dr. Plinio, não percebe que as portas do Vaticano e o coração do Papa estão abertos para todos os ventos e todas as vozes, exceto para os ventos ideológicos que sopram do quadrante onde o Sr. se situa, e para as vozes que dizem coisas semelhantes às que o Sr. diz?
“Francamente, acho fantástica a sem-cerimônia com que o senhor afeta, em seus artigos, nada ver disto tudo, e se professa católico tão fervoroso e intransigente quanto se fosse Papa, hoje em dia, não Montini, mas Sarto (‘São’ Pio X), o truculento quebra-hereges do início do século.
“A intenção desta carta não é de mortificá-lo, Dr. Plinio. Mas, enfim, a verdade é a verdade: abra os olhos para ela. Não há no mundo quem seja mais rejeitado pelo Papado modernizado e pela Nova Igreja, do que o Sr. e seus congêneres.
“Meça bem o contraste. Durante o último Sínodo de Bispos, reuniram-se em uma igreja protestante de Roma alguns padres católicos supercontestatários, que levaram a Paulo VI uma mensagem sulfúrica. As portas do Vaticano se abriram para eles. Chegaram até a antecâmara papal. Entregaram sua mensagem. Paulo VI não os recebeu em audiência. Mas prometeu muito afavelmente que iria estudar os pedidos dos contestatários.
“E para a mensagem da TFP, implorando providências de Paulo VI contra o que o Sr. chama ‘a infiltração comunista na Igreja’, assinada entretanto por 1.600.368 católicos? Nem uma resposta sequer teve Paulo VI! Pergunto: pode haver mais clara prova de rejeição?
“Entretanto, apesar de tomar assim com a porta na cara, o Sr. se apresenta em público como um papista fanático, tão fanático como o Sr. era quando, jovem ainda, se fazia notar nas fileiras dos congregados marianos, a vociferar o hino: ‘Viva o Papa, Deus o proteja, o Pastor da Santa Igreja!’
“O Sr. não percebe, Dr. Plinio, que tudo mudou, e que agora quem está na berlinda é o Sr.?
“Tenha coragem de explicar ao público sua posição contraditória de hoje...”
* * *
Sr. Jeroboão Cândido Guerreiro (Jeroboão é nome de protestante: confere. Este Jeroboão me parece pouco cândido e muito guerreiro), começo pela aliás fácil coragem de publicar a sua carta na íntegra.
Se bem que eu me sinta tentado a entrar em matéria apontando alguns erros de estilo, de pensamento e de História (presente e passada) do meu missivista, prefiro ir ao cerne do assunto, no pouco espaço que seu longo texto me deixa. E este cerne consiste — em se tratando de um interlocutor de formação protestante — em mostrar como se deveria portar um católico que estivesse, não precisamente nas condições em que me encontro, mas nas condições em que ele imagina que estou.
O Sr. Jeroboão se engana. Não é com meu entusiasmo dos tempos de jovem, que eu me coloco hoje ante a Santa Sé. É com um entusiasmo ainda maior, e muito maior. Pois à medida que vou vivendo, pensando e ganhando experiência, vou compreendendo e amando mais o Papa e o Papado. E isto seria precisamente assim ainda que eu me encontrasse — repito — exatamente nas circunstâncias que o Sr. Cândido Guerreiro pinta.
Lembro-me ainda das aulas de catecismo em que me explicaram o Papado, sua instituição divina, seus poderes, sua missão. Meu coração de menino (eu tinha então 9 anos) se encheu de admiração, de enlevo, de entusiasmo: eu encontrara o ideal a que me dedicaria por toda a vida. De lá para cá, o amor a esse ideal não tem senão crescido. E peço aqui a Nossa Senhora que o faça crescer mais e mais em mim, até o meu último alento. Quero que o derradeiro ato de meu intelecto seja um ato de Fé no Papado. Que meu último ato de amor seja um ato de amor ao Papado. Pois assim morrerei na paz dos eleitos, bem unido a Maria minha Mãe, e por Ela a Jesus, meu Deus, meu Rei e meu Redentor boníssimo.
E este amor ao Papado, Sr. Jeroboão, não é em mim um amor abstrato. Ele inclui um amor especial à Pessoa sacrossanta do Papa, seja ele o de ontem, como o de hoje ou o de amanhã. Amor de veneração. Amor de obediência.
Sim, insisto: de obediência. Quero dar a cada ensinamento deste Papa, como de seus Antecessores e Sucessores, toda aquela medida de adesão que a doutrina da Igreja me prescreve, tendo por infalível o que ela manda ter por infalível, e por falível o que ela ensina que é falível. Quero obedecer às ordens deste ou de qualquer outro Papa em toda a medida em que a Igreja manda que sejam obedecidas. Isto é, não lhes sobrepondo jamais minha vontade pessoal, nem a força de qualquer poder terreno, e só, absolutamente só recusando obediência à ordem do Papa que importasse eventualmente em pecado. Pois neste caso extremo, como ensinam — repetindo o Apóstolo São Paulo — todos os moralistas católicos, é preciso colocar acima de tudo a vontade de Deus.
Foi o que me ensinaram nas aulas de catecismo. Foi o que li nos tratados que estudei. Assim penso, assim sinto, assim sou. E de coração inteiro.
* * *
Como já disse, haveria de cá e de lá algumas precisões ou retificações a fazer aos fatos que o Sr. narra. Imagino entretanto — para argumentar — que fossem tais quais o senhor os pinta. E que as portas do Vaticano me tenham sido batidas, ou venham a ser-me batidas no rosto. Eu em nada alteraria minha atitude de fé, entusiasmo e obediência. E, além disto, me sentiria em perfeita felicidade.
Sabe o Sr. o que nos ensina São Francisco sobre a perfeita felicidade? Para refrigério e gáudio de sua alma, eu o transcrevo dos “Fioretti”, embora resumidamente:
“Vindo uma vez São Francisco de Perusa para Santa Maria dos Anjos com Frei Leão, em tempo de inverno, e como o grandíssimo frio fortemente o atormentasse, [...] Frei Leão perguntou-lhe: Pai, peço-te, da parte de Deus, que me digas onde está a perfeita alegria. E São Francisco assim lhe respondeu: Quando chegarmos a Santa Maria dos Anjos, inteiramente molhados pela chuva e transidos de frio, cheios de lama e aflitos de fome, e batermos à porta do convento, e o porteiro chegar irritado e disser: Quem são vocês? E nós dissermos: Somos dois dos vossos irmãos, e ele disser: Não dizem a verdade; são dois vagabundos que andam enganando o mundo e roubando as esmolas dos pobres; fora daqui; e não nos abrir e deixar-nos estar ao tempo, à neve e à chuva, com frio e fome até à noite: então, se suportarmos tal injúria e tal crueldade, tantos maus tratos, prazenteiramente, sem nos perturbarmos e sem murmurarmos contra ele [...] escreve que nisso está a perfeita alegria. E se ainda, constrangidos pela fome e pelo frio e pela noite batermos mais e chamarmos e pedirmos pelo amor de Deus com muitas lágrimas que nos abra a porta e nos deixe entrar, e se ele mais escandalizado disser: Vagabundos importunos, pagar-lhes-ei como merecem; e sair com um bastão nodoso e nos agarrar pelo capuz e nos atirar ao chão e nos arrastar pela neve e nos bater com o pau de nó em nó: se nós suportarmos todas estas coisas pacientemente e com alegria, pensando nos sofrimentos de Cristo bendito, as quais devemos suportar por seu amor; ó irmão Leão, escreve que aí e nisso está a perfeita alegria, e ouve, pois, a conclusão, irmão Leão. Acima de todas as graças e de todos os dons do Espírito Santo, os quais Cristo concede aos seus amigos, está o de vencer-se a si mesmo, e voluntariamente pelo amor suportar trabalhos, injúrias, opróbrios e desprezos [...]”.
Transcrito da “Folha de S. Paulo”, 12 de julho de 1970