Rei, guerreiro e santo

SÃO LUÍS REI, GLÓRIA DA CRISTANDADE

Luiz Sérgio Solimeo

Oração a São Luís, do Condestável Du Gesclin

Gardez-moi pur come le lys de votre blason – vous que teniez votre parole même donée à un infidèle, faites que mensonge ne passe pas ma gorge, dût franchise me coûter la vie. Preux inhabile aux reculades, coupez les ponts à mes feintises, et que je marche toujours au plus dru

Uma das acusações mais frequentemente feitas à Igreja, nos arraiais progressistas, é a de que, por Se preocupar excessivamente com o sobrenatural, Ela se teria desinteressado da sorte material de seus filhos.

Nada contradiz mais a realidade dos fatos históricos, do que esta afirmação gratuita. A formação da Europa cristã, após a queda do Império Romano do Ocidente, é um exemplo que por si só demonstra, à evidência, o poder civilizador da Igreja.

As tropas bárbaras de Alarico, penetrando na capital dos Césares, voltaram-se com furor contra tudo o que era civilizado. A estrutura político-social romana, já em extremo decadente, ruiu sobre si mesma.

No meio do caos, por entre a desordem universal, uma única Instituição restou, capaz de construir uma nova e autêntica civilização: a Igreja.

Fecundada pelo sangue dos Mártires, iluminada pela sabedoria dos Doutores e Pontífices, a Igreja, que saíra das catacumbas graças a Constantino, soube enfrentar o novo perigo que se lhe deparava. Ela foi aos poucos influenciando e convertendo esses povos que eram verdadeiramente "flagelos de Deus", suavizando-lhes os costumes, elevando-lhes as vistas, incutindo-lhes a noção do belo, do harmônico, do sublime.

Foram séculos de esforços e de lutas, em que se destacam as figuras épicas de um São Leão I, de um Carlos Magno, de um São Gregório VII, até chegarmos a esse século XIII, apogeu da Idade Média, do qual um historiador como Ernest Lavisse pôde dizer que "nunca a França foi maior do que no décimo terceiro século" (apud Jacques Levron, "Saint Louis ou l'apogée du Moyen Age", Le Livre Contemporain, Paris, 1957 — frontispício).

Foi a época das grandes Catedrais, "livros de pedra, onde a unidade e a vitalidade do mundo medieval se exprimem ao mesmo tempo no infinito do detalhe e na harmoniosa conjunção de todas as almas! Foi o povo que as construiu, muitas vezes guiado por simples mestres de obras que tinham ao mesmo tempo a genialidade dos cálculos matemáticos e das linhas sublimes. Um tal povo não estava confinado na ignorância e no embrutecimento, esse povo que com paciência e ternura elevou aos céus de nossas cidades essas imensas girândolas de pedra, esses mundos de observações e de pensamentos, esses imortais testemunhos de sua fé, de sua cultura e de sua inteligência", como observa o Duque de Lévis Mirepoix ("Saint Louis / Il domina son siècle. Il illumine le nôtre", in "Miroir de l'Histoire", março de 1970, p. 28).

Foi o século que viu São Tomás de Aquino com seu monumento da filosofia escolástica; o século no qual o Papa Gregório IX com a Bula "Parens Scientiarum" deu forma definitiva à Universidade de Paris; em que São Raimundo de Penaforte organizou o direito canônico com suas "Decretales", redigidas a pedido do mesmo Soberano Pontífice; em que as corporações de ofício, os hospitais, a Cavalaria e a Inquisição chegaram a seu pleno desenvolvimento. Foi o século das grandes Ordens mendicantes de São Francisco e de São Domingos. Foi sobretudo, como nota ainda o Duque de Lévis Mirepoix, "O século de São Luís" (loc. cit.) .

Hábil administrador e vingador implacável do justiça

São Luís nasceu em 1215, filho de Luís VIII, Rei da França, e de sua esposa, Branca de Castela, tia de São Fernando III de Castela. Uma oração composta no século XIV diz dele que "sua santidade é atestada pela liberalidade de suas esmolas, pelo seu amor à verdade, pela equidade de seus julgamentos" (Jacques Levron, p. 213).

Seu espírito de fé e sua veneração pela Paixão do Salvador levaram-no a construir, para abrigar a Coroa de Espinhos, um fragmento do Santo Lenho e um dos Cravos da Crucifixão, que recebera do Imperador latino do Oriente, uma das mais magníficas jóias da arquitetura religiosa de todos os tempos: a "Sainte Chapelle". Verdadeiro escrínio de pedra lavrada e vitrais refulgentes, a "Sainte Chapelle" é uma sinfonia de formas e cores, de leveza alada e esplendor sacral.

Sem se contentar com tanta magnificência, quis São Luís testemunhar sua devoção aos sofrimentos do Divino Mestre, não só dando do seu, mas dando também de si. Por duas vezes atravessou o mar para tentar libertar o Sepulcro de Nosso Senhor Jesus Cristo. Foram essas duas expedições que encerraram o glorioso ciclo das Cruzadas, o qual definiu a fisionomia moral da Idade Média.

Ao mesmo tempo hábil administrador, com o concurso de Branca de Castela, Regente em sua menoridade (Luís VIII morreu quando o Santo tinha doze anos), alcançou a paz interna do reino, enfrentando, muitas vezes à testa de suas tropas, sucessivas revoltas de grandes senhores feudais. Venceu, na famosa batalha de Taillebourg, o Rei da Inglaterra, Henrique III, que se havia aliado com o poderoso Duque da Bretanha e com o Conde da Marca.

Entretanto, São Luís não pretendia de modo algum ser um Rei absolutista. Seu respeito pelos verdadeiros princípios feudais é atestado por inúmeros fatos, muito conhecidos, e nas instruções dadas a seu filho Filipe (depois Filipe III, conhecido como "o Corajoso") sublinha que êste deve "manter os bons costumes de seu reino e abater os que forem maus" (Joinville, "Histoire de Saint Louis", Librairie Hachette, 1942, p. 80).

O conhecido historiador francês Jacques Levron, em seu livro "Saint Louis ou l'apogée du Moyen Age", mostra como o Santo concebia a ordem monárquica: "A monarquia feudal, no tempo de São Luís, não é uma monarquia absoluta. Ela se apoia sobre o costume e é efetivamente o costume que regula todas as relações humanas. Se se levanta uma dúvida, se surge uma contestação, interrogam-se as pessoas idosas, as pessoas que têm experiência. Elas dizem o que é que se faz desde tempos "cujus memoria non exstat", ou seja, desde tempos imemoriais. Então se decide segundo o que elas dizem. Pois, a "novelleté" é coisa má e repreensível. O que não significa que os costumes e a jurisprudência mantenham-se imutáveis. Mas estas transformações são lentas, imperceptíveis. Nem por isso são menos profundas" (p. 215).

Para ilustrar o escrúpulo com que o santo Rei se empenhava em observar os direitos feudais, cita-se um caso pitoresco. São Luís fora a Vitry para ouvir o sermão de um célebre pregador, mas não podia fixar a atenção devido à enorme algazarra que se fazia numa taverna vizinha. Antes de intervir, o Rei mandou chamar seus conselheiros, para "saber se tinha o direito de justiça" na taverna de Vitry (Jacques Levron, p. 167).

Seu amor à justiça, que se revestia freqüentemente da simplicidade poética dos julgamentos sob o carvalho do bosque de Vincennes, levava-o a praticar o rigor salutar, sempre que o exigiam as circunstâncias.

Um episódio famoso, neste sentido, é o da castelã de Pierrelée. Esta dama, não contente em trair seu infeliz marido, levou a infâmia ao ponto de matá-lo, com o auxílio de seu cúmplice, e de jogar o corpo num lugar escuso. Descoberto o crime, a miserável foi presa e condenada à morte pelo fogo.

Apesar dos pedidos de clemência chegados de diversas procedências, inclusive dos Frades dominicanos e franciscanos, e da própria Rainha, pois entrementes a castelã dera mostras do maior arrependimento, Luís IX manteve-se inflexível. Tão horrível crime, dizia, deve ser castigado proporcionadamente.

Não podendo evitar a execução, os parentes pediram que pelo menos esta não se desse em Pontoise, onde residia toda a família, posto que isso agravaria para eles a vergonha de tão enorme castigo. A isto pensou o Rei em aceder, mas antes pediu a opinião de seu conselheiro Simon de Nesle, grande jurista e conhecido por sua integridade. Respondeu este que "justiça feita às escâncaras é boa justiça". E a execução teve lugar na praça principal de Pontoise (Jacques Levron, p. 169).

Em uma Sexta-feira da Paixão, pediram ao Santo o perdão para um criminoso de condição nobre. Luís estava a ponto de concedê-lo, quando lhe ocorreu ao espírito a frase da Escritura: "Bem-aventurados os que guardam a justiça e a exercitam todos os dias". Dado que a falta do gentilhomem era realmente nefanda, o Rei em vez de mostrar misericórdia, usou soberanamente da justiça. O criminoso foi executado no mesmo dia (J. B. Weiss, "História Universal", Tipografia La Educación, Barcelona, 1927, vol. VI, p. 439).

A medida de sua equidade pode-se ter por um dos conselhos dados a seu filho, dos quais já fizemos uma citação: "Se alguém sustentar algum processo contra ti —recomenda o Santo — estejas sempre a seu favor contra ti, até que saibas a verdade; assim teus conselheiros se sentirão encorajados a julgar segundo o direito e a verdade" (Joinville, p. 80).

Aspectos de alma encantadores, no testemunho de Joinville

Encantado com a franqueza e a sinceridade de um pequeno senhor feudal, Jean de Joinville, Senescal da Champagne, São Luís IX estabeleceu com ele uma das mais belas amizades que a História registra. Tornou-o seu confidente, dava-lhe conselhos e era indulgente para com a rudeza com que o Senescal por vezes exprimia sua opinião. Graças a essa amizade é que temos a felicidade de conhecer os traços mais tocantes da alma do Santo, pois Joinville escreveu uma História de São Luís, na qual narra "as santas palavras e os bons feitos de nosso Santo Rei Luís". É este o livro básico para todos os estudiosos da vida do ilustre Monarca.

Certa vez indagou Luís se Joinville lavava os pés dos pobres na Quinta-feira Santa. O Senescal respondeu admirado: "Claro que não, Senhor. Os pés destes vilões, jamais os lavarei eu". "Verdadeiramente — observou o Santo — está mal falado; pois não devíeis desprezar a prática daquilo que Deus fez para nos ensinar. Peço-vos, pois, por amor de Deus, primeiro, depois por amor de mim, que vos acostumeis a lavá-los" (Joinville, p, 11).

Em outra ocasião disse o santo Rei a Joinville: "Eu vos pergunto o que preferiríeis: ser leproso, ou ter cometido um pecado mortal". "E eu, que jamais lhe mentia — conta Joinville — respondi que preferiria ter cometido trinta pecados do que ser leproso". São Luís retrucou-lhe que essas eram palavras de um "étourdi sans cervelle", e mostrou que nenhuma lepra ou outra doença podia ser pior do que o pecado mortal, "porque a alma que está em pecado mortal é semelhante ao demônio" e se arrisca à condenação eterna, ao passo que a lepra do corpo cessa com a morte (Joinville, p. 10).

Após as refeições, São Luís IX reunia seus cortesãos mais íntimos e recomendava: "Cada qual diga livremente o que quiser, pois após o jantar não há livro melhor do que os "quodlibeta" (ditos variados e amenos). Nosso bom Joinville, que era dotado de espírito alegre (o que muito agradava a São Luís), não deixava então em paz o confessor do Rei, o douto Robert de Sorbon, que emprestou o nome à Universidade de Paris (Sorbonne).

Certa vez em que o nosso Santo se estava entretendo com seu antigo adversário, Pierre Mauclerc, anteriormente Duque da Bretanha, Robert de Sorbon julgou ter afinal encontrado um bom pretexto para vingar-se de seu espirituoso amigo. Tomando este pela manga, conduziu-o até a presença de Luís IX, seguido pelos outros cavaleiros, curiosos de ver o que aconteceria.

"Deveis ser criticado, disse o capelão a Joinville, pois estais mais bem vestido do que o Rei".

"Mestre Roberto — retrucou o Senescal — salva a reverência, não devo ser repreendido, pois esta vestimenta foram meus pais que ma legaram. Pelo contrário, vós é que deveis ser criticado, pois vós, que sois filho de camponês e camponesa, deixastes o traje de vosso pai e de vossa mãe e estais vestido mais ricamente do que o Rei". E, para completar seu triunfo sobre o pobre capelão, tomou na mão o pano da veste deste e comparou-a com a de São Luís, exclamando alegremente: "Vede se não digo a verdade".

Diante de uma tal constatação, o infeliz teólogo ficou tão desarvorado, que o Santo procurou caridosamente defendê-lo. Depois que Mestre Roberto saiu, entretanto, chamou Joinville com dois outros senhores que assistiam a cena e explicou-lhes que não deviam ater-se ao que havia dito contra Joinville, pois quisera apenas auxiliar o capelão. Acrescentou que eles deviam vestir-se como diz o sábio, isto é, "de tal maneira que os homens provectos de nosso tempo não possam dizer que é demais, nem os jovens que é de menos" (Joinville, p. 13).

A sétima Cruzada e seu valoroso comandante

Em 1244, após uma longa doença, São Luís IX resolveu pôr em prática seu grande desejo: ir libertar o Santo Sepulcro.

Convocados os barões, e convidados a livremente tomarem a cruz, escolhida para a regência do reino a enérgica Branca de Castela, começaram os preparativos para o grande empreendimento, os quais duraram quatro anos.

Afinal, em 25 de agosto de 1248, em companhia da Rainha sua esposa, de seus três irmãos e dos maiores senhores feudais, partiu São Luís de Aigues-Mortes com direção à ilha de Chipre. Seu plano — que os historiadores reconhecem ser muito hábil — era ir atacar os detentores dos Santos Lugares em sua própria terra: o Egito.

Os primeiros contratempos começaram na travessia, que representava não pequeno perigo para os cruzados. Vários incidentes dividiram a frota e obrigaram o santo Rei a permanecer em Chipre à espera das naus desgarradas. Esta demora acarretou outra maior com a chegada do inverno, que tornava muito difícil a navegação. Isso comprometeu seriamente a empresa, pois o péssimo Imperador Frederico II, que havia várias vezes se aliado aos muçulmanos para hostilizar o Papa, mandou seu próprio filho, Manfredo, avisar o sultão do Egito das intenções do Monarca francês.

Foi somente em maio de 1249 que São Luís encontrou condições favoráveis para continuar a travessia.

Chegando às costas do Egito, os cruzados depararam com a poderosa cidade fortificada de Damieta, que protegia a embocadura e o delta do Nilo. O Rei ordenou logo o desembarque e fez questão de comandá-lo pessoalmente, descendo de seu barco com água até o peito, tal era seu ardor de lutar.

Após um dia inteiro de combate com as forças sarracenas, os cruzados puseram-nas em fuga tão desordenada, que passando elas por Damieta encheram de temor os habitantes, os quais se precipitaram em pós delas Ficou assim a importante praça forte nas mãos dos cristãos.

Decidiu então São Luís marchar diretamente sobre o Cairo, onde as notícias da queda de Damieta, tida por inexpugnável, havia semeado o terror. Tudo leva a crer que teria o Monarca conseguido seu intento, não fosse a imperdoável imprudência de seu irmão, Roberto de Artois, que pôs a perder a expedição.

Partindo de Damieta, onde deixou a Rainha e uma guarnição de mercenários genoveses, o Santo foi costeando o Nilo a caminho de Mansurah, outra cidade fortificada, e na direção do Cairo.

Os muçulmanos, usando a tática de não oferecer combate direto, maltrataram muito os impulsivos francos. Caindo de surpresa sobre sua retaguarda, retiravam-se antes que eles pudessem reagir. Muitos dos cruzados saíam em perseguição do inimigo, desgarrando-se da tropa. Eram então cercados e massacrados.

Por outro lado, protegidos pelo Nilo, os infiéis utilizavam sua mais terrível arma: o fogo-grego. Sem ter contra quem lutar, os cristãos viam-se dizimar por bolas de um, fogo inextinguível que parecia saído do inferno.

São Luís, capitão experimentado, proibiu formalmente que os francos se afastassem de sua formação para corresponder às provocações dos cavaleiros inimigos. Com isto as perdas dos cruzados passaram a ser menores, e a passagem do rápido e caudaloso afluente do Nilo, logo iria livrá-los do terror do fogo-grego.

Instaladas sobre o rio pontes móveis, o Rei ordenou que primeiro passasse a vanguarda, comandada pelo impetuoso Conde de Artois e composta dos melhores cavaleiros da expedição, entre os quais os experientes e indomáveis adversários dos maometanos, os Monges-Cavaleiros templários. O grosso da tropa era comandado pelo próprio São Luís, e a retaguarda por seu irmão Afonso de Poitiers.

Apenas passada a vanguarda, Artois avistou uma tropa egípcia que fugia em debandada para seu acampamento. Sedento de glória pessoal, quis arremeter contra eles. Gilles de Tyr, Comendador do Templo, lembrou-lhe que as ordens formais do Rei eram de que ninguém se afastasse das colunas cristãs. Sem dar ouvidos, entretanto, o Conde disparou atrás dos infiéis, penetrando em seu acampamento e massacrando grande parte dos que ali estavam. Os outros fugiram para Mansurah, que ficou com as portas abertas.

Excitado por tal vitória, Roberto de Artois quis perseguir o inimigo até dentro da cidade, pensando em tomá-la de surpresa. Era não conhecer o modo de combater dos egípcios.

São Luís, que soubera da primeira desobediência de seu irmão, mandou-lhe alguns cavaleiros com a ordem de não se mover do lugar em que estava. Cego pelo amor próprio, Artois recusou-se a obedecer, e ao Comendador do Templo que lhe mostrava os riscos de sua atitude, respondeu chamando de covardes os Monges-soldados. Gilles de Tyr respondeu dignamente: "Senhor, nem nossos Irmãos nem eu temos medo. Não ficaremos para trás, mas sabei que nem vós nem nós voltaremos".

Arrastados pelo seu comandante, os cruzados penetraram em Mansurah. A situação mudou então inteiramente. A pequena tropa viu-se cercada dentro de uma cidade desconhecida, acuada em ruelas estreitas. Começou então a carnificina. Do alto das casas, arqueiros maometanos flechavam meticulosamente os cavaleiros impotentes para defender-se. Conseguindo escapar à morte e chegar até o acampamento cristão, Gilles de Tyr narrou o acontecido. Estava perdida a sétima Cruzada.

Ao passar o rio com o grosso do exército, São Luís encontrou, em vez de seu irmão, as tropas egípcias prontas para o combate; a vitória lhes dera novo élan. Apanhados de surpresa, os cruzados sofreram um duro impacto, e não fosse (como atestaram muitos dos sobreviventes) a presença de São Luís, com seu sangue-frio, sua energia, sua habilidade tática, a derrota teria sido total.

Joinville, ao recordar a presença do Rei na cena, não pode deixar de exclamar: "Jamais homem armado me pareceu tão belo; ele ultrapassava em altura todos os soldados, que mal lhe chegavam aos ombros. Um elmo dourado refulgia em sua cabeça e uma espada alemã em suas mãos".

Cercado por seis muçulmanos, que o iam levando prisioneiro, o Santo libertou-se sozinho com vigorosos golpes de espada, que segurava com as duas mãos (Joinville, p. 32).

Afinal os infiéis foram postos em fuga, mas a situação permanecia crítica para os cruzados. Para agravá-la, irrompeu uma epidemia que atingiu quase toda a tropa. São Luís foi um dos mais afetados. Mal podia manter-se ereto em seu cavalo.

Prisioneiro, o Rei impõe-se, pela altaneria

Não havia outra solução senão atravessar novamente o Bahr-el-Seghir e voltar para Damieta, onde o que restava do exército cruzado estaria em segurança. A retirada foi uma das mais árduas e gloriosas de toda a história da cristandade. Magnífico de coragem, Luís IX cavalgava na extrema retaguarda, tal como o comandante é o último a abandonar o navio que se afunda (Jacques Levron, p. 118). Tão debilitado estava ele pela doença, que certa noite os cruzados obrigados a entrar numa aldeia para que São Luís fosse tratado. Deu-se então um dos muitos episódios admiráveis da cruzada.

Gauthier de Châtillon recebera o perigoso comando da retaguarda. Perdendo de vista seus homens, postou-se na entrada da aldeia e "quando via os turcos que procuravam penetrar, arremetia sobre eles e os expulsava para fora da aldeia". Voltava-se então contra os que vinham por outro lado e os empurrava para trás. Isto o valente cavaleiro fez por diversas vezes, lançando seu grito de guerra para reunir seus homens: "Châtillon, cavaleiros! Onde estão meus bravos?" Afinal pereceu esmagado pelo número (Joinville, pp. 36 e 46).

Resolveu a essa altura São Luís negociar com o sultão, enquanto ainda tinha nas mãos um grande trunfo, como era a posse de Damieta (já antes havia o chefe muçulmano oferecido em troca daquela cidade a própria Jerusalém; na ocasião, entretanto, não havia razão para aceitar a proposta).

As tratativas com o sultão Al-Salih-Ayoub, encetadas por intermédio de Philippe de Montfort, descendente do vencedor dos albigenses, prometiam êxito, quando um traidor pôs tudo a perder.

Um simples criado do Santo, chamado Marcel, entrou correndo no acampamento dos cruzados, aos gritos de que o Rei pedia que todos se rendessem, senão ele seria morto. Tomados de surpresa, e temendo pela vida de seu Soberano, os senhores entregaram imediatamente suas espadas, o que significava a rendição. O sultão, ao ver isto, suspendeu as negociações com Montfort, dizendo que não havia necessidade de tratar com prisioneiros.

Estaria Marcel a soldo do próprio sultão ou de Frederico II, o Imperador apóstata? É o que se perguntam os historiadores.

Prisioneiro de guerra, Luís IX foi logo levado para Mansurah. Durante seu cativeiro — de 7 de abril a 13 de maio de 1250 — deu mostras de tanta serenidade de alma, e era tal a majestade de sua figura, que os próprios egípcios ficavam impressionados. Certo emir chegou a querer forçar o Rei a armá-lo cavaleiro. "Faze-te cristão", retrucou o Santo.

Ameaçaram-no os infiéis com terrível tortura, para obter dele que entregasse as fortalezas das Ordens militares na Síria, sobre as quais, aliás não tinha jurisdição. Luís respondeu-lhes que era prisioneiro e que poderiam fazer com ele o que quisessem, mas que nunca acederia ao que pretendiam. Impressionado com tal altaneria e firmeza, o sultão desistiu de seu intento e resolveu obter uma grande soma pelo resgate de seus preciosos reféns, além da rendição de Damieta.

A Rainha, que ficara em Damieta (onde dera à luz um filho a que chamou João, e ficou conhecido como Tristão devido às circunstâncias em que nascera) encarregou-se de juntar a quantia exigida pelos egípcios. Como ficasse faltando uma parte, mandou o Rei que Joinville fosse consegui-la com os Templários, grandes banqueiros do Oriente cristão.

Tendo estes se recusado, Joinville tomou de uma pesada acha e disse ao tesoureiro da Ordem: "Eis aqui a chave do Rei", ao mesmo tempo que se preparava para arrebentar o fecho do cofre. Diante disso o Irmão abriu-o e entregou a quantia necessária.

Pago o resgate e entregue Damieta, São Luís foi libertado. Dirigiu-se então para São João d'Acre, capital do império franco da Síria, onde passou quatro anos, fortificando a cidade e os castelos que defendiam a região e tentando libertar os cruzados que permaneciam em poder dos muçulmanos. Graças à sua habilidade diplomática, explorando a rivalidade existente entre sírios e egípcios, conseguiu a liberdade de todos os seus companheiros de expedição.

Ao mesmo tempo, estabeleceu uma proveitosa política de alianças com diversos príncipes muçulmanos.

Árbitro dos Príncipes e dos povos cristãos

Com a morte de sua mãe que ele deixara como Regente, em 1253 São Luís teve que retornar à França, depois de seis anos de ausência, sendo recebido triunfalmente pela população.

Apesar da derrota da expedição, o prestígio de Luís IX, mercê do heroísmo, da abnegação e do tino militar, diplomático e político, de que dera provas, não apenas cresceu em toda a Europa, como ficou solidamente estabelecido no Oriente tanto cristão quanto muçulmano. Jacques Levron mostra que ele se tornou o árbitro dos Príncipes e dos povos de toda a cristandade (p. 183). O Papa Urbano IV ofereceu a coroa da Sicília a um dos seus filhos, a qual São Luís rejeitou; a contragosto do Santo, seu irmão Carlos de Anjou aceitou-a. Quanto aos muçulmanos, comenta o mesmo Jacques Levron: "É surpreendente ver a autoridade de que gozava, junto a esses povos guerreiros que só se inclinavam diante da força, aquele que sofrera em Mansurah uma tão completa derrota. É que Luís IX tinha, por seu modo de agir, adquirido perante eles um prestígio excepcional" (p. 134).

Logrando estabelecer sobre bases definitivas a paz com a Inglaterra e pôr fim a velhas querelas entre grandes senhores feudais, era sobre um país tranquilo e próspero que São Luis reinava agora.

Conforme atestam os historiadores, a vida intelectual na França dessa época não

(continua)