(continuação)

"Um tal desprezo da morte excede as forças da natureza; todos esperam o dia do sacrifício como um dia de festa"

diversos corpos do Exército pontifico. Pio IX, revestido de murça vermelha guarnecida de arminho, e de estola, rodeado de toda a sua Corte, Cardeais, Prelados, Guardas-Nobres, Gentis-homens, benzia as bandeiras apresentadas pelos Capelães das unidades e as entregava aos Comandantes. A voz do Pontífice-Rei soava grave e forte: "Accipe vexillum caelisti benedictione sanctificatum, sitque inimicis populi christiani terribile, et det tibi Dominus gratiam ut ad Ipsius nomen et honorem cum illo hostium cuneos potenter penetres incolumis et securus..." (id., p. 81).

Em julho receberam os zuavos ordem de partir para Ceprano, no extremo sul dos Estados do Papa. Um certo Chiavone, à testa de um formidável bando de guerrilheiros napolitanos, vivia hostilizando as tropas piemontesas que ocupavam o Reino de Nápoles e temia-se que estas últimas, a pretexto de o perseguir, violassem o território pontifício.

No dia 30 os "chiavonistas" se batem com os piemonteses e os obrigam a passar a fronteira do Lácio. O Coronel Allet envia para o local uma secção de reconhecimento; esta defronta-se com duzentos bersaglieri, e põe por terra 32 deles na primeira salva; os demais, desnorteados, recuam, mas do outro lado da fronteira os napolitanos os aguardam e abatem como caça.

O General francês Goyon, ao ter conhecimento do incidente, envia às pressas duas companhias imperiais para substituir os zuavos, que retornam a Marina, onde se achavam acantonados. No fim desse ano o Batalhão é transferido para Frascati, e ali entra novamente na monotonia da vida de guarnição.

Viria tirá-los dessa monotonia dois anos depois, em 1864, a famosa "Convenção de Setembro", celebrada entre Napoleão III e Vitório Emanuel, à inteira revelia do Papa. Em 1861 o Rei da Sardenha e do Piemonte havia assumido o título de "Rei da Itália", o que não deixava margem a dúvidas quanto às suas pretensões sobre os territórios remanescentes do Papa e sobre o Veneto austríaco. Para facilitar a realização dessas pretensões, as tropas francesas deveriam deixar os Estados pontifícios no prazo de dois anos; desde logo evacuaram elas a província de Veletri, e foram substituídas pelos zuavos, distribuídos por várias guarnições.

Uma nova fase na vida do Batalhão de Zuavos começa aqui: a da repressão ao banditismo.

A luta contra o banditismo, valioso adestramento

O banditismo no Sul da Itália era um fenômeno sui generis. Não se limitava, como em outros países, a ações de indivíduos isolados ou de pequenos grupos, mas comportava operações de larga envergadura, empreendidas por bandos de dezenas e até centenas de homens, fortemente armados, com uma organização quase militar. Durante séculos esse foi um grave problema para os Soberanos de Nápoles e para os Papas. As épocas de agitação revolucionária favoreciam enormemente a atuação dos bandoleiros, pela desagregação das instituições e o abalo da autoridade. Foi o que se deu por ocasião da invasão napoleônica, e agora com a dupla agressão do Piemonte e das tropas irregulares de Garibaldi.

A repressão ao banditismo era dificultada pela carência de apoio por parte da população, a qual, por simpatia ou por temor, dava aos fora-da-lei ampla cobertura. Todos sabiam onde eram seus esconderijos, quem lhes fornecia mantimentos, munições, etc., mas recusavam-se peremptoriamente a dar qualquer informação às autoridades. E, por vezes, estas mesmas eram cúmplices... Em San Stefano, por exemplo, onde aparecia com frequência um dos mais terríveis chefes de bandoleiros, Andreozi, realizou-se certa feita uma grande festa à qual compareceram, além do bandido e grande número de seus sequazes, o prefeito da cidade e dois Cônegos...

Tão logo os zuavos substituíram em Veletri as tropas chamadas de volta à França por Napoleão III, começaram os choques entre eles e os bandoleiros. Alguns desses choques constituíram verdadeiras batalhas, nas quais as forças dos malfeitores chegavam a contar com até duzentos homens!

Essas operações foram de grande proveito para os zuavos, servindo-lhes de excelente preparação para a dura campanha de 1867.

"Fuzil sob o braço, terço na mão direita"

Em setembro de 1865 uma notícia veio encher de tristeza todos os soldados do Papa: morrera seu valoroso Comandante, o General Christophe de La Moricière.

Para o substituir foi nomeado o General alemão Hermann Kanzler que durante o cerco de Ancona conseguira romper as linhas inimigas e entrar na cidade; Kanzler substituía igualmente Monsenhor de Mérode no Ministério das Armas. Quando o Prelado belga deixou a importante pasta, muitos espíritos se inquietaram, já que ele representava a ideia da resistência armada às usurpações da Casa de Saboia; a escolha de um eclesiástico para o seu lugar poderia fazer crer numa mudança de política da Santa Sé: com a designação de um General, Pio IX deixava bem claro quais eram as suas intenções.

Enquanto isso acelerava-se a retirada dos territórios pontifícios da Divisão francesa de ocupação. Napoleão III, porém, para acalmar a opinião católica, consentira em enviar a Roma um outro corpo de tropa para substituir a Divisão Goyon. Essa nova unidade, que ficou conhecida como Legião Romana ou Legião de Antibes — do nome da cidade em que foi formada — viria prestar valiosos serviços ao Papa nas campanhas futuras. Ela não era, entretanto, suficiente para manter a ordem na Cidade Eterna, onde fermentava a agitação revolucionária das sociedades secretas e dos "clubs"; foi necessário chamar a Roma os zuavos pontifícios.

As sociedades secretas, que pensavam aproveitar-se da partida da Divisão Goyon para sublevar a cidade, ao saberem da chegada da tropa comandada por Allet — a qual temiam como o demônio à Cruz — desencadearam uma onda de terror contra ela. No dia 16 de janeiro um dos zuavos foi assassinado; dias depois, uma bomba foi lançada à janela do próprio Capelão-Chefe; ameaçados por cartas anônimas, os estalajadeiros recusavam-se a receber em seus estabelecimentos os oficiais e capelães do Batalhão. Como medida de precaução, Allet proibiu que seus homens saíssem desacompanhados à noite e recomendou-lhes calma e prudência.

Os zuavos mantém-se em constante alerta. Mas eles não são apenas soldados: são soldados católicos, que rezam enquanto vigiam. Um deles, o jovem Théodore Wibaux, de 17 anos, conta-nos como eram seus turnos de guarda: "Fuzil sob o braço, terço na mão direita: é assim que conto fazer todos os meus turnos. Recitei o maior número de dezenas que me foi possível" (C. du Coetlosquet, "Théodore Wibaux, Zouave Pontifical et Jésuite", A. Taffin-Lafort, Lille, 1885, p. 65).

Entrementes, a 1.° de janeiro o Batalhão do Tenente-Coronel Allet era elevado a Regimento, em virtude do grande afluxo de recrutas, sobretudo holandeses; estes viriam a constituir o elemento mais numeroso dentre esses soldados do Papa, e é doloroso constatar que descendentes seus são hoje os vanguardeiros do movimento contestatário. Houve numerosas promoções nos quadros; Allet foi promovido a Coronel e o Barão de Charette a Tenente-Coronel.

Luta abnegada contra a peste

Em meados do ano de 1866 uma epidemia de cólera, depois de ter feito terríveis estragos no Oriente e nas costas do Adriático, na Sicília e no Reino de Nápoles, surge no Lácio e em Roma.

Sua ação devastadora foi favorecida por um calor que atingia 35 graus à sombra. Albano, pequena e risonha cidade de seis mil habitantes, foi uma das localidades mais atingidas. Para lá foi deslocado um destacamento de zuavos, a fim de prestar socorros à população. Um espetáculo dantesco aguardava-os à chegada: vinte cadáveres nus, já em putrefação, jaziam abandonados na praça principal, não havendo quem se dispusesse a dar-lhes sepultura. O terror e a morte pairavam sobre a cidade; os pestiferados eram abandonados antes de morrer; todos se afastavam temendo o contágio; o farmacêutico só atendia à distância e as autoridades municipais haviam desaparecido.

Os próprios zuavos, de início, não ousavam tocar nos cadáveres. "Nosso bravo Tenente de Résimond dá o primeiro exemplo", conta o jovem soldado Wibaux. "Ele toma em seus ombros um cadáver e o transporta ao cemitério; todos o imitam. Nossos camaradas da 6.0 Companhia lutaram com abnegação. No campo de batalha o cheiro da pólvora e o entusiasmo vos escondem o perigo; mas em presença de um cadáver, ou de um moribundo que se debate, como é necessário ter força e verdadeira coragem!" (Coetlosquet, p. 111).

Depois de sepultar os corpos abandonados na via pública, saíram os zuavos em busca dos que estavam nas casas. Mas não bastava enterrar os mortos, era necessário evitar novas vítimas, e os abnegados soldados do Papa veem-se transformados em enfermeiros, cozinheiros etc. Vários deles, tanto em Albano como depois em Roma mesmo e em outras localidades, pagaram com a vida a sua dedicação.

* * *

Os zuavos pontifícios, contudo, não perdiam de vista o fim para o qual se haviam alistado: a defesa do Papa. “Não, nós não somos um exército comum", escreve de Albano à família, Théodore Wibaux, no aniversário da batalha de Castelfidardo. "Sem dúvida, a juventude e a fortuna fazem talvez alguns esquecerem que são os defensores da mais pura e da mais santa das causas. Mas se um acontecimento os coloca subitamente em presença do dever, eles transformam-se em cruzados, e então não há senão um único coração, um único pensamento, uma única paixão. Esse amor por Pio IX e pela Santa Igreja faz desculpar muitas fraquezas; ele inspira um ardente desejo de combater e de morrer. Tal desprezo da morte não é natural; todos esperam o dia do sacrifício como um dia de festa" (ob. cit., p. 124).

Logo chegaria o momento tão desejado da batalha. Os zuavos receberam ordem de deixar os aventais brancos de enfermeiros e tomar as carabinas para fazer frente à invasão garibaldina que já se prenunciava. — É o que veremos no próximo artigo.


ESCREVEM OS LEITORES

Revmo. Frei Gabriel Pausback, O. Carm., Casa Beato Nuno, Fátima (Portugal): "Lendo a página "Escrevem os leitores" do n.° 231, março de 1970, queria e quero ajuntar, finalmente, o meu nome aos que são assinados em louvor e estima de seu jornal. Que Deus abençoe todos os cooperadores em tão louvável trabalho! (São já anos que leio o CATOLICISMO aqui em Fátima, sendo eu um americano dos Estados Unidos). Rezo por vocês".

Sr. Ernesto Sfoggia, Porto Alegre (RS): "Gostaria que [CATOLICISMO] fosse menos polêmico".

Sr. Walmor R. Córdova, Lages (SC): "uma assinatura desse vibrante jornal [...] deixo aqui minha solidariedade à linha que o jornal segue".

Da. Guilhermina de Azeredo, Porto (Portugal): "CATOLICISMO é uma luz que se ergue no meio da escuridão em que vivemos. Mesmo aqui no Porto a Igreja atravessa tempestade".

Sr. Jorge Eduardo Gabriel Koury, Rio de Janeiro (GB): "Creio que a Redação e os leitores de nosso CATOLICISMO gostarão de conhecer o oportuno editorial que o "Diário de Notícias" estampou em sua edição de 7 de junho p.p., sob o título de "Esquerdismo", e que passo a resumir.

O conceituado matutino carioca comenta largamente recentes declarações do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, o qual, falando à imprensa, afirmou que os prosélitos mais radicais e dinâmicos da subversão social encontram-se em certas sacristias, universidades, redações de jornais e boates de granfinos e que a fermentação ideológica proveniente desses focos não atinge profundamente as massas, nem mesmo a maioria das próprias elites. Depois de mencionar dois dos fatos que o Presidente do Conselho Nacional da TFP aduz como provas dessa asserção, o "Diário de Notícias" conclui seu editorial comentando que "essas observações devem ser lidas por todos os brasileiros, especialmente pelos pais dos nossos estudantes, a fim de que não permitam que seus filhos estudantes se deixem levar por maus conselheiros e pseudo-orientadores da juventude".

Sr. Paul Poitevin, Montrouge (França): "Je viens de recevoir la livraison de février de CATOLICISMO et j'y lis un article du professeur Plinio Corrêa de Oliveira intitulé "O direito de saber". Cet article qui est consacré à la réforme de l'Ordinaire de la messe promulguée en 1969 commence par louer la presse brésilienne de posséder "le sens de l'universel".

Cette qualité, comme celle plus élémentaire d'une stricte objectivité, ne caractérise pas pourtant cet article qui traite pour un public qui est décrit comme peu ou mal informé sur ce sujet, de l'intervention des cardinaux Bacci et Ottaviani demandant en octobre l'abrogation de la réforme promulguée en avril, sans indiquer ou souligner qu'en novembre, par deux discours très fermes et parfaitement clairs, le pape lui-même a démontré que les difficultés relevées par la lettre des deux cardinaux n'existaient pas. Que les allocutions du 19 et du 26 novembre constituent la réponse à la lettre que signale en février le professeur de Oliveira, a été reconnu par tout le monde, y compris l'abbé Luc J. Lefèvre, l'un des fauteurs de la déplorable campagne contre une réforme promulguée par la plus haute autorité de l'Eglise (voir la "Pensée Catholique", n.° 123, décembre 1969, "A propos de l'Ordo Missae"). Il y a mieux, le cardinal Ottaviani lui-même s'est déclaré satisfait de la réponse du pape, voir dans la "Documentation Catholique" du 5 avril la reproduction de la lettre que ce cardinal a adressée le 17 février 1970 à Dom Marie-Gérard Lafond, moine de Saint-Wandrille.

Il est évident qu'en février, votre éminent collaborateur ne pouvait connaitre la position définitive du cardinal Ottaviani sur cette réforme, cependant, comme tout bon catholique, il devait tenir le plus grand compte des paroles prononcées sur le même sujet par le Souverain Pontife et que votre publication qui s'intitule "CATOLICISMO" aurait pu signaler à ses lecteurs qui ont d'abord "le droit de savoir" ce que pense le Pape, pour reprendre le titre de l'article.

A lire les références indiquées par l'article, l'auteur ne parait informé de ce qui se passe à Rome et en Europe que par "Le Courrier de Rome" et "Que Pasa?". Avec de telles lectures, l'on conçoit qu'il se fasse une idée tout à fait inexacte et de la réforme liturgique et de son application en Europe. Ces publications se sont fait comme une spécialité de dénigrer une réforme qui malgré certains défauts, n'a nullement le caractère que les traditionalistes lui prétent, affectant de plus de confondre avec cette réforme les fantaisies ou les aberrations liturgiques qui sont le fait de novateurs non mandatés. Cet article est donc fort regrettable et je souhaite que CATOLICISMO rectifie sa position sur un sujet aussi important que la réforme de la messe".

caso não saiba, nem suspeite, queira o Sr. Poitevin entender que CATOLICISMO não publica o que todo o mundo já sabe, a não ser que tenha algum comentário a fazer. Não deve, pois, o ex-secretário de "Una Voce" cair no erro que ele nos imputa, a saber, pensar que pode tomar conhecimento de tudo que se publica no Brasil pela leitura de um só órgão de imprensa, no caso CATOLICISMO. Porquanto ele dá a impressão de ignorar na Europa, o que não aparece na "Documentation Catholique". Aliás não pediria a divulgação da carta do Sr. Cardeal Ottaviani a D. Lafond, pois saberia dos antecedentes que neutralizam completamente a consequência que ele pretende tirar dessa carta.


PARA ONDE VAI O INSTITUTO DOS IRMÃOS LASSALLISTAS? -1

A Igreja pós-cristã e seu contra-evangelho

João Batista da Rocha

O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, em seu ensaio "Revolução e Contra-Revolução", mostra que as numerosas crises que abalam o mundo hodierno não constituem senão múltiplos aspectos de uma só crise fundamental, a Revolução (op. cit., Parte I, cap. I).

Dentro desta perspectiva, seria infantil encarar os numerosíssimos sintomas dessa crise e de seu agravamento, que a cada dia se patenteiam aos nossos olhos, como se fossem fatos de interesse meramente local ou regional, que não mereceriam atenção senão daqueles que lhes estejam diretamente ligados pelas circunstâncias.

"Quando ocorre um incêndio numa floresta — afirma o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira — não é possível considerar o fenômeno como se fosse mil incêndios autônomos e paralelos, de mil árvores vizinhas umas das outras. A unidade do fenômeno "combustão", exercendo-se sobre a unidade viva que é a floresta, e a circunstância de que a grande força de expansão das chamas resulta de um calor no qual se fundem e se multiplicam as incontáveis chamas das diversas árvores, tudo, enfim, contribui para que o incêndio da floresta seja um fato único, englobando numa realidade total os mil incêndios parciais, por mais diferente, aliás, que cada um destes seja em seus acidentes" (op. cit., Parte I, cap. III, 2).

A imagem usada pelo insigne colaborador de "Catolicismo" para ilustrar a unidade da Revolução, retrata bem o que se passa atualmente na Santa Igreja: um incêndio de proporções imensas.

Pode-se afirmar que a Esposa de Jesus Cristo, em sua longa história, não conheceu trégua na luta contra seus adversários. E não é temerário sustentar que, em todos os tempos, seus piores inimigos têm sido aqueles que, encobertos sob mil disfarces, serpeiam dentro de suas próprias muralhas, provocando a morte e a destruição.

O grande Pontífice São Pio X foi protagonista de um dos lances mais impressionantes dessa guerra ao conter, com suma energia, uma verdadeira legião desses inimigos disfarçados, que trabalhavam para arrasar a Cidade Santa. Sua luta contra o modernismo causou terríveis danos nas fileiras do mal. Mas, iludindo talvez a ingenuidade de muitos contemporâneos do Santo que julgaram não lhe dever imitar a severidade, numerosos modernistas continuaram a agir sorrateiramente, espalhando por toda parte, se já não o fogo da destruição, pelo menos o material combustível que, no futuro, pudesse alimentar o incêndio.

Hoje não se pode mais negar o que é óbvio: as labaredas sobem, e se a Igreja fosse perecível, Ela não resistiria a esta prova.

"Catolicismo" tem publicado, nos últimos anos, numerosos documentos que ilustram a triste situação em que se encontra atualmente a Esposa de Cristo. Pela importância singular da matéria e enorme receptividade que encontrou no público brasileiro, destaca-se o número especial de abril-maio de 1969, no qual esta folha denunciava dois organismos que se alinham entre os principais responsáveis pela crise que lavra nas fileiras católicas: o IDOC e os "grupos proféticos". Também mostram aspectos impressionantes do avanço da Revolução dentro da Igreja, os recentes artigos sobre o "Novo Catecismo" holandês, o concílio-pastoral de Noordwijkerout, etc.

Crise dolorosa no Instituto lassallista

Neste mesmo sentido, chegou-nos há pouco às mãos um dossier verdadeiramente espantoso.

Trata-se do número 141 da revista francesa "Documents-Paternité", acompanhado de quatro suplementos. A revista e seus suplementos trazem, sob o título de "Para onde vai o Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs?", uma coleção de documentos a respeito da orientação que se pretende impor dora em diante ao Instituto fundado por São João Batista de La Salle para a educação da juventude. A divulgação desses documentos é iniciativa de "um grupo de Irmãos das Escolas Cristãs", que, por motivos óbvios, se mantêm no anonimato.

No dossier a que nos referimos, as peças mais importantes são, sem dúvida, as duas conferências pronunciadas em Roma pelo Superior Geral do Instituto das Escolas Cristãs, Irmão CHARLES HENRY BUTTIMER, em novembro de 1968. Queremos analisá-las neste artigo, deixando para próxima ocasião a consideração de outras peças do dossier.

O tema das conferências do Irmão Charles Henry se enuncia como "O INSTITUTO NA IGREJA E NO MUNDO DE HOJE". A gravidade das aberrações que nelas se contêm é acentuada pelo fato de tratar-se do Superior Geral de uma grande Congregação Religiosa, uma das mais antigas e importantes entre as que se dedicam ao ensino, contando com 16.187 membros, e 1.523 casas espalhadas por todo o mundo (segundo o Anuário Pontifício de 1970).

A linha de pensamento do Superior Geral

Para não nos perdermos no emaranhado da "nova teologia" professada pelo estranho sucessor de São João Batista de La Salle, retenhamos desde já as linhas gerais do roteiro de suas conferências.

O ponto de partida de toda a sua teoria é que a Igreja deve adaptar-Se ao mundo de hoje. E ele não se preocupa em fazer qualquer crítica a este último; pelo contrário, aceita-o tal qual é.

Descrevendo o mundo de hoje, o Irmão Charles Henry chega à conclusão de que ele tem uma cultura própria, radicalmente diversa da cultura do passado. É a cultura pós-cristã, em oposição à cultura greco-latina que vigorou até há pouco, na era cristã.

A cultura pós-cristã é uma realidade que se exprime através de algumas escolas filosóficas, ou psico-filosóficas, entre as quais estão o evolucionismo e o existencialismo.

A adaptação da Igreja ao mundo de hoje não se fará se Ela não proceder à revisão de toda a sua teologia e eclesiologia, tomando como base essas filosofias.

A partir destes pressupostos, o Irmão Charles Henry apresenta os pontos fundamentais da nova teologia e da nova eclesiologia.

Quanto à primeira, os temas essenciais são:

a) a Encarnação, a salvação e a escatologia centradas na evolução;

b) teologia antropocêntrica: o homem é o objeto primeiro da teologia e ponto de partida de toda reflexão teológica;

c) secularização: eliminar da teologia tudo o que não seja compatível com a visão do mundo contemporâneo, a mentalidade científica do homem hodierno, sua orientação filosófico-psicológica.

Quanto à nova eclesiologia, eis os pontos mais importantes:

a) renovação interior e conversão intima: por causa do "renouveau" espiritual que hoje se dá na Igreja, fundado sobre a renovação interior e a conversão íntima, devem desaparecer numerosas práticas religiosas;

b) conceito igualitário de autoridade: esta será exercida por líderes carismáticos cuja escolha e atuação estarão sempre sujeitas à ratificação da comunidade;

c) apostolado "profético": a Igreja não manterá instituições de apostolado, nem fará proselitismo nas instituições leigas ou em qualquer outro lugar; seu apostolado será o da "presença visível e vital no mundo".

A repercussão dessas ideias na organização das comunidades religiosas é óbvia. Por amor à brevidade, limitar-nos-emos a dizer que o Irmão Charles Henry preconiza o advento de comunidades religiosas inteiramente igualitárias e dedicadas a uma forma de apostolado "profética" e não institucional.

Passemos agora ao pormenor das teses defendidas em suas conferências, pelo Superior Geral dos Irmãos das Escolas Cristãs.

Mudança de identidade da Igreja

A introdução da primeira conferência é feita para assinalar isto que o orador considera fundamental: seu desejo de situar o Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs na sociologia do mundo atual e na eclesiologia da Igreja de hoje. Num primeiro momento, quem lê as palavras do Revdo. Irmão não se dá inteira conta do significado delas. Pode pensar que se trate de sociologia e eclesiologia adaptadas às circunstâncias do mundo atual.

Não é isto, porém. O Superior Geral afirma, mais adiante, que houve na sociedade "um corte radical entre o passado e o presente" e que o Concílio estudou "a natureza da Igreja e sua identidade na sociedade moderna" ("Documents-Paternité", n.° 141, p. 69). Aqui já surge uma forte suspeita de que ele acredite que a ruptura entre o passado e o presente tenha provocado .na Igreja uma mudança de identidade. Com efeito, falar em estudo da identidade da Igreja na sociedade moderna equivale a admitir implicitamente que uma era a identidade da Igreja antes da sociedade moderna, outra será sua identidade nesta sociedade. Dentro de toda lógica, pode-se afirmar que, para o Superior dos Lassallistas, a Igreja de hoje não é a Igreja de antes do Concílio. A esse respeito, ele será inteiramente explícito ao longo das duas conferências.

A nova eclesiologia

Não é sem razão, pois, que o Irmão Charles Henry fala repetidas vezes em uma "nova eclesiologia". Uma vez que seu tema é "O Instituto na Igreja e no mundo de hoje", o centro da questão consiste em saber o que se entende por Igreja de hoje.

Mas não há eclesiologia sem teologia. Assim, o orador se reportará frequentemente à "nova teologia" para tornar mais clara a idéia que faz da "nova eclesiologia".

"Não podemos ir nem, mais longe nem mais depressa do que a nova teologia em vias de formulação", são suas palavras (p. 70).

"A dimensão visível da comunidade cristã — diz ele mais adiante — será modelada pela teologia, e o atual período cultural de nossa história, no qual a comunidade deita raízes, determinará esta forma" (pp. 70-71).

Dessas considerações o Revdo. Irmão tira uma como que definição da nova eclesiologia: "A eclesiologia é então a expressão da compreensão que a Igreja capta de si mesma em dada situação. — Em consequência, a compreensão que a Igreja tem da permanente revelação de Deus está sujeita a um desenvolvimento constante, e a eclesiologia será muito particularmente tributária deste movimento de transformações perpétuas" (p. 71).

Note o leitor, desde já, o caráter escancaradamente evolucionista desta eclesiologia. Conforme a situação em que Se encontre, a Igreja tem compreensões diferentes de sua própria essência. E como há uma permanente revelação de Deus e um misterioso movimento de transformações perpétuas, a Igreja está também envolvida num ciclo de perpétuas transformações. Quando falar da nova teologia, o Irmão Charles Henry será ainda mais claro.

A nova cultura e a era pós-cristã

Continuemos a seguir os passos do atual sucessor de São João Batista de La Salle.

A esta altura, ele revela os nomes dos mestres da "nova teologia": Rahner, Hans Küng e Schillebeeckx (p. 71).

"Eles baseiam sua eclesiologia — prossegue S. Revcia. — sobre o princípio-chave que guia os homens de ciência contemporâneos, isto é, que entramos em uma época histórico-cultural radicalmente diferente, que eles chamam de era pós-cristã, não que isto signifique o fim do Cristianismo, mas porque esta era se segue a um período de cultura greco-latina de mais de dois mil anos que os historiadores chamaram, por muito tempo, de era cristã" (p. 71).

O orador não será sempre inteiramente explícito, ao longo de sua exposição. Mas o contexto autoriza a interpretação de que ele e os Schillebeeckxs de todo o mundo chamam de era cristã todo o período histórico que vai desde a fundação da Igreja até nossos dias (seria disparatado falar em era cristã, antes de Cristo), e designam por cultura greco-latina a cultura engendrada pela Igreja ao longo destes vinte séculos. Como sabemos, tal cultura foi orientada, naquilo que de melhor produziu, pela filosofia aristotélico-tomista. Esta é a filosofia que os "teólogos" da “era pós-cristã” decretaram perempta, sem se dar ao trabalho de lhe refutar uma vírgula...

Entendamos, então, os termos: "era cristã" é a época iluminada pela filosofia aristotélico-tomista; "era pós-cristã" é o período histórico que nega a veracidade desta filosofia. Ver-se-á mais adiante a afirmação clara de que a filosofia da "era pós-cristã" é o evolucionismo.

O conferencista, depois de defender ideias tão destoantes de tudo quanto a Igreja tem ensinado, julga necessário tranquilizar seus ouvintes, afirmando que "a Revelação em sua essência permanecerá intacta", na nova teologia, e “os acréscimos sucessivos da Tradição cristã serão preservados e incorporados nas novas formulações” p. 71). À luz dos princípios enunciados acima, seria muito ingênuo quem acreditasse nessas afirmações...

A evolução, centro da nova teologia

Tocamos, enfim, no ponto nevrálgico da conferência do Geral lassallista. Ainda que sumariamente, ele desenvolve os fundamentos doutrinários da "nova eclesiologia", a qual servirá de base para a "renovação" da vida religiosa.

"A eclesiologia — afirma — compreendida como a expressão visível e externa da vida da Comunidade cristã, sofre uma mudança radical, baseada em uma reformulação da teologia em geral, que deverá, por sua vez, precisar o conteúdo dos três temas essenciais [...]" (p. 72).

Os três temas essenciais são: A Encarnação, a Salvação e a Escatologia na Evolução; a teologia antropocêntrica; e a Secularização.

É evidente que esses temas tocam no que há de mais essencial da doutrina católica. E é aqui que se tornam completamente claros os fundamentos evolucionistas da "nova teologia".

"O primeiro tema — são palavras do Revdo. Irmão — está centrado na Evolução [...] (p. 72).

Vale a pena transcrever os principais trechos desta parte da conferência.

"Como explicam os filósofos — diz o orador — a Evolução é uma força vital inesgotável que aperfeiçoa gradualmente o universo criado e que acentua sempre mais o dinamismo e a relatividade da criação" (p. 72).

Isto é dito com extrema desenvoltura. A "era pós-cristã", para o conferencista, é uma realidade tão evidente, que ele se dispensa até mesmo de mencionar os nomes de seus "filósofos". Teilhard de Chardin?... Marx e Engels?... Não se sabe.

E continua: "Que é a Encarnação, senão Deus entrando neste dinamismo para tomar

(continua)