É enorme a semelhança entre a doutrina do Superior Geral e a dos "grupos proféticos"
(continuação)
parte ativa nesta evolução, fazendo do mundo e da atividade do mundo seu ambiente de vida? [...] Tal inserção de Deus em nosso mundo requer uma nova tomada de consciência, talvez uma nova concepção de nossa relação com Ele. Isto requer que o Deus encarnado e o homem se reencontrem no que é comum aos dois — nosso mútuo engajamento no mundo e nas realidades do mundo — o que obriga os teólogos a reexaminar a natureza do Deus transcendente que é inteiramente diferente [qui est tout autre]" (p. 72).
A nova escatologia
Dessa "teologia" evolucionista decorre, como o próprio orador o confessa, uma nova concepção da relação entre Deus e o homem.
Segundo a teologia católica, o homem foi criado por Deus para conhecê-Lo, amá-Lo, servi-Lo e, por este meio, alcançar a vida eterna. Dentro desta ordem de ideias, tudo na vida do homem converge para os novíssimos: morte, juízo, Paraíso e inferno. Na "teologia" evolucionista, não.
A “nova teologia” encara a escatologia "em termos de realização [accomplissement], de perfeição mais do que segundo a antiga concepção quadripartida de morte, juízo, céu e inferno; trata-se, antes, do dilatar-se e da perfeição de um universo em Evolução" (pp. 72-73).
Desses conceitos nasce a nova noção de salvação, que "é vista como um processo de vir-a-ser [devenir], uma libertação gradual das limitações, um élan para o estado perfeito" (p. 73).
E continua: "A liberdade é aqui o ponto central, a libertação dos limites que embaraçam as forças do progresso em ação na criação" (p. 73).
A moral nova; pecados contra o progresso
A consequência inelutável é o surgimento de uma moral nova, baseada em uma nova noção de pecado.
O Superior dos Lassallistas afirma que aquilo que até agora era rotulado de pecado, passa a ser considerado sob dois aspectos diferentes:
- "o primeiro focaliza uma limitação amoral do estado de Evolução no qual um homem não é atualmente responsável por sua incapacidade de praticar a melhor coisa;
- "o segundo ponto de vista é verdadeiramente moral: ele descreve o homem que deliberadamente resiste às forças de progresso em ação na Criação" (p. 73).
O Irmão Charles Henry não quer deixar margem para dúvidas. Por isso, faz acompanhar de exemplos suas divagações teóricas. Ele acredita que fazem eco a essa "teologia da Salvação" os novos estudos de moralistas a respeito do vício solitário e as recentes reações de teólogos e Conferências Episcopais a propósito da Encíclica "Humanae Vitae".
Para quem conheça um pouco o que sejam os "novos estudos" de moralistas a respeito do vício solitário (e da moral sexual em geral), e as reações dos teólogos progressistas e de certas Conferências Episcopais em relação à "Humanae Vitae", não é difícil adivinhar aonde o orador deseja chegar. A condenação dos vícios sexuais e do controle artificial da natalidade, feita pela Igreja ao longo de seus vinte séculos de existência, deve ser revista. Doravante só é pecado o que resiste às forças da evolução. O vício solitário, segundo os novos estudos, não se opõe à evolução e, portanto, não é pecado. O controle da natalidade por meios artificiais, desde que se inclua dentro do que os progressistas chamam de "paternidade responsável", é elemento integrante das forças do progresso e, portanto, lícito. Pecado seria, talvez, lutar contra as "reformas" de todo gênero, dentro e fora da Igreja... E pecado imperdoável.
A "teologia antropocêntrica"
De acordo com a concepção contida no pensamento anteriormente expresso pelo Revdo. Irmão está o conceito de “teologia antropocêntrica”. Vejamos como a explica ele.
Hoje tudo é novo. "Há uma nova metafísica e uma nova epistemologia — uma nova escola de psico-filosofia: o existencialismo". Os teólogos — o orador não diz quais, mas nós já sabemos — estão descobrindo, a todo momento, coisas novas, "especialmente no campo do personalismo". "Tudo isto - explica - tende a concentrar nossa atenção sobre O HOMEM, COMO OBJETO PRIMEIRO DA TEOLOGIA E PONTO DE PARTIDA DE TODA REFLEXÃO TEOLÓGICA, porque o teólogo sabe que os únicos objetos que ele pode compreender para conhecer e atingir a Deus, são o homem e as experiências humanas - especialmente o homem e suas experiências vividas enquanto lugar onde se situa a Encarnação" (pp. 73-74 — o destaque em versalete é nosso).
Como para o Irmão Charles Henry a Encarnação se confunde com a evolução, não vemos bem como essa "teologia antropocêntrica" chegará à transcendência de Deus.
Secularização e desmitificação
O terceiro — e importantíssimo — tema da "nova teologia", sobre o qual se apóia a "nova eclesiologia", é o da "secularização". Trata-se de aplicar os princípios da "nova teologia" à situação atual da Igreja e do cristão na ordem temporal e no mundo da atividade secular.
Depois de descrever, à sua maneira, o mundo de hoje, o Irmão Charles Henry afirma: "Para mim, isto é claro como o cristal, um tal mundo é incapaz de compreender o evangelho da era cristã. Consequentemente a Secularização implica num esforço para eliminar da mensagem evangélica tudo o que é mito, e é isto o que quis realizar o novo Catecismo holandês. [...] O que está realmente em causa não é só a reformulação das crenças tradicionais, mas trata-se de despojar a teologia destas fórmulas devidas a uma visão do mundo e a sistemas filosóficos que correspondem à época greco-romana e à era pré-científica. Trata-se de substituí-las por uma linguagem compatível com a visão do mundo contemporâneo, nossa mentalidade científica, nossa orientação filosófico-psicológica. [...] a Secularização e a desmitologização do Evangelho não são um mal [...]. Foi o Vaticano II, poder-se-ia dizer, que inaugurou a teologia da Secularização [...]" (p. 74).
Quem tenha tomado conhecimento do número de abril-maio de 1969 de "Catolicismo", não pode deixar de notar a enorme semelhança que há entre a doutrina dos "grupos proféticos" e as palavras do Irmão Charles Henry. Essa semelhança fica mais nítida à luz do excelente estudo publicado naquele número, sob o título de "Insubordinação, "desalienação", fio de meada dos mistérios "proféticos". É de ressaltar o empenho de um e outros em promover a "desmitificação" na Igreja, considerando como mito tudo o que se opõe à filosofia existencialista que adotam.
É interessante destacar, também, o apoio que o Geral lassallista presta ao pernicioso "Novo Catecismo" holandês.
Consequências para a vida da Igreja e das almas
Na sua segunda conferência, o Irmão Charles Henry trata das consequências que desse edifício doutrinário resultam para a vida da Igreja e para a vida religiosa em nossos dias.
Três são as consequências mais importantes.
CONTRA AS PRÁTICAS RELIGIOSAS TRADICIONAIS
Em primeiro lugar, deve-se considerar que a "nova eclesiologia" leva a uma nova maneira de encarar a renovação espiritual. Toda renovação deve, segundo o Concílio Vaticano II, basear-se sobre a conversão íntima. As práticas religiosas fluirão dessa conversão, mas serão as "propostas por Jesus no Evangelho e vividas pelos primeiros cristãos, e não o programa variado de práticas elaboradas pelas escolas de espiritualidade francesa, espanhola, italiana ou anglo-saxônica" (p. 75).
Assim, o orador considera inapelavelmente condenadas a desaparecer, ou pelo menos a minguar muito, uma série de práticas tradicionais de devoção, entre as quais as dirigidas à Santíssima Virgem e aos Santos, a confissão frequente, o jejum e a abstinência, a assistência quotidiana à Missa, as novenas, indulgências, primeiras Sextas-feiras, Horas-santas, Bênçãos do Santíssimo, etc.
É incrível que um homem que se vangloria de seguir a evolução dos tempos não perceba a contradição em que se põe, prognosticando o desaparecimento das devoções que a Igreja engendrou através dos séculos, não para substituí-las por outras mais recentes, mas pelas práticas da Igreja primitiva. E dentro desta contradição há ainda uma outra, que é a de incluir entre as práticas peremptas — ele que deseja a manutenção das "práticas propostas por Jesus no Evangelho" até mesmo o jejum. Nessas suas contradições não está o Irmão Charles Henry em boa companhia. É vezo próprio dos heresiarcas incidir em contradição.
IGUALITARISMO COMUNISTA, SOB PALAVREADO PSEUDOCATÓLICO
Talvez não haja, nestas tristes conferências, um trecho em que o desvio doutrinário seja tão explícito, quanto o que se refere à autoridade.
A nova concepção da autoridade é a segunda consequência importante da eclesiologia secularizada.
Deixemos falar o próprio Irmão.
"A Igreja — diz ele — cresceu numa sociedade de tipo monárquico, uma sociedade hierárquica e patriarcal, na qual, a designação para uma função revestia um homem da autoridade, sem levar em consideração seu talento. Esta noção pragmática da autoridade cedeu lugar a uma noção carismática.
Em nossa época, a autoridade deriva do talento, não da nomeação; o homem que tem as ideias, a resposta, as intuições, a capacidade, a competência, esse é o homem que exerce a autoridade.
Na Igreja pós-cristã, [...] o homem que tem o carisma é que exerce a autoridade. Karl Rahner, Bernard Miring, Schillebeeckx são ouvidos mais atentamente que os Bispos das Dioceses onde eles escrevem e falam, e temos visto depois da publicação da Encíclica "Humanae Vitae" que eles são ouvidos até mais que o próprio Santo Padre. Mas é preciso não esquecer que, no mais das vezes, o carisma, a voz profética não é própria a um indivíduo, mas à comunidade.
A comunidade possui os carismas necessários à sua vida e à sua direção. Os carismas individuais vão certamente aparecer, mas no interior da comunidade, e será a comunidade que os julgará e os deverá ratificar.
Quando a comunidade se reúne para acertar decisões práticas, o homem no qual se reconhece um carisma terá temporariamente a autoridade, mas, a partir do momento que comunica suas opiniões à comunidade, êle entrega a esta sua autoridade e se encontra, por sua vez, sujeito às decisões dela.
Se tal é o novo conceito da autoridade, nós nos devemos preparar para ver mudanças nas estruturas da Igreja, assim como nas estruturas da vida religiosa".(p. 77).
É claro demais. O Irmão Charles Henry prognostica o advento de uma Igreja sem Papa e sem Hierarquia, inteiramente igualitária. Em suma, uma outra igreja que não a fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo. Aliás, é a transposição para o campo religioso do programa comunista. É a utopia de um mundo igualitário e anárquico.
IRMÃOS DAS ESCOLAS NÃO CRISTÃS
O apostolado é o terceiro aspecto importante da "nova eclesiologia".
"No período histórico-cultural conhecido sob o nome de era cristã — é o orador quem o afirma — o apostolado significava as obras de caridade, e os esforços dos missionários visando obter conversões.
Em geral o apostolado revestia-se de uma forma institucional: hospitais, escolas, orfanatos, por exemplo.
Na nova era em que entramos, [...] os cristãos — e estes cristãos particulares chamados Religiosos — vão de preferência penetrar o trabalho institucional da sociedade civil e participar dos trabalhos da sociedade civil [...]. No âmbito ecumênico os Religiosos colaboram com outras igrejas cristãs ou com “igrejas” não cristãs a serviço das nações em via de desenvolvimento, mas não esqueçamos que as boas obras constituem somente um dos setores do apostolado.
A Igreja é principalmente uma comunidade profética que proclama o Evangelho e a presença do Espírito Santo por sua vida em comunhão, sua liturgia, suas palavras e seus atos; em outras palavras, a Igreja por sua natureza é apostólica e missionária, ela é proclamação profética pelo simples fato de sua presença visível e vital no mundo" (p. 78).
O Superior Geral dos Irmãos das Escolas Cristãs tem ainda outras afirmações igualmente destoantes da doutrina católica. Detenhamo-nos porém aqui, para não alongar ainda mais esta resenha que já se torna demasiado extensa.
Não é difícil adivinhar as consequências que ele tira, dessa estranha "teologia", para a vida dos Religiosos no mundo de hoje, e de modo particular para a Congregação que está sob seu governo.
Esta Congregação, fundada por São João Batista de La Salle para a educação da juventude, tinha o nome de Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs. Mas como falar agora em escolas cristãs, se nos encontramos numa era pós-cristã? Como falar em Irmãos das Escolas Cristãs, se estes não mais deverão ter escolas e não devem também, nas escolas leigas em que trabalharão, fazer esforços para obter conversões ao Cristianismo? E por que, mesmo, falar em Instituto, se caminhamos para uma Igreja "profética" que tende a se desembaraçar de todas as formas institucionais?
À Congregação dos Lassallistas, como a idealiza seu atual Superior Geral, melhor conviria o nome de "Comunidade profética dos Irmãos das Escolas não cristãs", ou então declarar-se extinta, pura e simplesmente.
* * *
Precisaríamos ter chegado a este momento insondavelmente dramático da história da Igreja, para ouvir do Superior Geral de uma Congregação Religiosa da importância do Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs, um elenco de teses tão rombudamente anticatólicas.
Lembremos que ele negou ou adulterou gravemente, em apenas duas conferências, os seguintes pontos fundamentais do Cristianismo: a natureza transcendente de Deus; a imutabilidade do dogma; a Encarnação e a Redenção; os Novíssimos; o pecado e os fundamentos da Moral católica; a estrutura hierárquica dada à Igreja por seu Divino Fundador, etc.
Tal é a gravidade da situação em que nos encontramos, que o Irmão Charles Henry continua a dirigir a Congregação dos Lassallistas e, certamente, não perde oportunidade para apregoar aos quatro ventos o que ele considera uma conquista irreversível dos novos tempos: o advento de uma Igreja secularizada, evolucionista e igualitária.
Na opinião de um Bispo — que "Documents-Paternité" cita sem lhe declinar o nome — as conferências do Irmão Charles Henry constituem "uma prova irrefutável do que um espírito imbuído do sentido da História, das novidades, pode tirar do último Concílio. É um exemplo típico do que se faz em quase todas as Congregações Religiosas. Mas o que nossos reformadores não têm a coragem, ou a inteligência, ou a ingenuidade de afirmar claramente, vosso Superior Geral tem o mérito de o fazer de maneira magistral. É um contra evangelho e não uma literatura “pós-cristã" (p. 35).
No momento em que maus católicos, que se intitulam a si mesmos de moderados, timbram em manifestar um otimismo tolo, afirmando que não há crise na Igreja e que tudo vai muito bem, e contribuem, por este modo, para o alastramento das chamas que envolvem o edifício sagrado da Igreja, tomemos nós as palavras inspiradas de São Luís Maria Grignion de Montfort: "Fogo! fogo! fogo! Socorro! socorro! socorro! Fogo na casa de Deus! fogo nas almas! fogo até no santuário! Socorro, que assassinam nosso irmão! socorro, que degolam nossos filhos! socorro, que apunhalam nosso bom Pai!" (Oração Abrasada).
Acautelar os católicos de hoje contra os arautos desta seita que recebe ora o nome de "Igreja-Nova", ora o de "Igreja conciliar", ora o de "Igreja subterrânea" e, enfim, o de "Igreja pós-cristã", é a melhor forma de serviço que se pode prestar, nesta hora, à verdadeira Esposa de Cristo.
Calicem Domini Biberunt.
ACONTECIMENTOS ENTRAVAM O PROGRESSO DA AMICIZIA
Fernando Furquim de Almeida
Além da mensagem do Padre Diessbach a Leopoldo II, existe outro documento da Amicizia sobre o processo revolucionário: “Papel, da AC durante a Revolução”, escrito por um Amigo de Turim. Certamente seu autor não é o Padre Lanteri nem o Padre Diessbach, mas o estudo de seu texto tem interesse por revelar como circulavam essas ideias entre os membros da sociedade.
Como é muito mais fraco do que a mensagem, e contém alguns exageros que revelam um autor entusiasta do apostolado da Amicizia, vamos procurar resumir o mais possível o seu conteúdo. Ao que parece, foi escrito numa época em que tinham aumentado as esperanças de uma breve derrota da Revolução Francesa. A presença do Conde de Artois e do Príncipe de Condé em Turim provocara entusiasmo e também um conhecimento mais amplo dos fatos que se passavam na França. Daí um maior discernimento do autor com relação ao perigo que esses fatos representavam para os outros países, perigo sobre o qual ele chama a atenção dos leitores.
* * *
Também em "Papel da AC", o desconhecimento da revolução nas tendências conduz a perspectivas falsas com referência ao processo revolucionário, e, por conseguinte, a conclusões superficiais e um pouco ingênuas. Depois de descrever bem a penetração das ideias revolucionárias em todos os povos e mostrar que ela era fruto de manobras de políticos e literatos hábeis e perversos, conclui o autor que nem uma coligação de todos os soberanos poderia agora extirpar da sociedade esses erros, e previne os católicos contra a "presunção" de alguns que supõem necessária uma intervenção extraordinária de Deus para sustar a propagação de tantos erros. Passando ao estudo das medidas que devem ser tomadas contra tão grande mal, considera "inadequados alguns meios usados pela Igreja, como a majestade do culto, os sacramentos, a pregação e, em parte, as Ordens religiosas, em virtude dos preconceitos que contra elas estão largamente difundidos". Ora — perguntamos nós — se esses meios sempre empregados pela Igreja para santificar os homens não eram reputados suficientes, como não pôr a esperança nos meios extraordinários?
O meio que o nosso autor propõe revela o seu desconhecimento da Revolução nas tendências. É a simples exposição da verdade, por uma difusão maciça de bons livros, porque a verdade "é bastante bela para atrair todos os espíritos bem formados, sem precisar do socorro de belezas estranhas". Seguese daí que só o apostolado da Amicizia poderia conter a Revolução, desde que os seus membros se compenetrassem da importância do trabalho que realizavam. O fato de considerar a Revolução nas ideias a alavanca de todo o processo revolucionário leva o autor a essa superestimação do apostolado que a Amicizia realizava.
Esse não era o pensamento do Padre Lanteri nem do Padre Diessbach, ambos empenhados em difundir a vida sacramental, os exercícios espirituais, as missões, o culto católico, etc. Na mensagem a Leopoldo II, uma das medidas propostas ao Imperador é a pregação de missões em toda a extensão do Império, para dispor as almas a receberam bem o apostolado da difusão de bons livros. Em todo caso, fica patente que, não tendo a Amicizia uma noção explícita do papel das tendências na Revolução, essa lacuna no conhecimento desta última enfraquecia os meios contra ela usados pelo sodalício.
Não queremos de modo algum desmerecer o trabalho apostólico da Amicizia, que foi um dos mais importantes do século XIX. Estamos apenas pesquisando os conceitos correntes entre os "Amigos", para mostrar que estes não tinham um conhecimento nítido da essência da Revolução, o que impediu que fossem ainda maiores os aliás notáveis resultados que obtiveram, com tanto zelo e destemor, em seu apostolado.
Já vimos que os acontecimentos políticos entravaram o progresso da Amicizia em Turim, na última década do século XVIII. O Piemonte, com fronteira com a França, encontrava-se exposto a graves riscos. Ora invadido pelas tropas revolucionárias, ora posto sob a proteção da Áustria, era em seu território que se davam os choques políticos e militares mais diretos entre as forças contra-revolucionárias e revolucionárias. Compreendese a agitação dos espíritos ante essa ameaça permanente, esse perigo imediato. Com isso a dedicação à Amicizia diminuiu, e os frutos não foram os que se podium esperar.
Não era só em Turim que o sodalício passava por uma crise. Também na Áustria a deterioração gradual de toda a sociedade recebera da Revolução Francesa uma aceleração bem grande, e disso se ressentia a obra do Padre Diessbach. É sabido que ali vários futuros contra-revolucionários acolheram, de início, os acontecimentos franceses com simpatia, a só pouco a pouco foram abrindo os olhos. Mesmo entre os que não chegaram a se converter à Contra-Revolução, muitos perderam os antigos preconceitos contra a Igreja e passaram a olhála com relativa desprevenção.
Essa mudança de mentalidade abriu caminho para a restauração da Companhia de Jesus, o que constituía um dos maiores desejos do Padre Diessbach. Ele não deixou de aproveitar essa oportunidade, empenhandose a fundo no desbravamento do terreno para a ressurreição de sua antiga Ordem. Como era homem de extraordinária atividade, a sua atuação nesse sentido não prejudicou a Amicizia, que ele continuava a dirigir com a eficiência de sempre. O mesmo não se deu com os seus dirigidos, que viam abrirem-se novos rumos para as suas vidas, com a perspectiva do ressurgimento da Companhia.
* * *
Entre as várias associações religiosas criadas pelos antigos jesuítas, a Sociedade dos Padres do Sagrado Coração de Jesus, fundada pelos padres Léonor François de Tournély e Charles de Broglie, era a que mais relações mantinha com a Amicizia; esta era ajudada por ela, e por sua vez auxiliava a Sociedade do Coração de Jesus. O Padre Giuseppe Sineo de la Torre, que estava à testa da Amicizia de Viena, aproximouse mais dos padres do Coração de Jesus, acabando por ingressar em seu grêmio, e desde então o seu interesse pela Amicizia foi diminuindo, o que provocou sérias divergências entre os dirigentes dos dois sodalícios. Foi mais um empecilho para o pleno desenvolvimento da obra do Padre Diessbach.
A ausência do Padre Virginio, que se encontrava isolado em Paris, e os acontecimentos políticos tornaram esses dez anos de vida da Amicizia muito difíceis. Parecia que o apostolado iniciado com perspectivas tão promissoras ia fracassar, arrastado pelo torvelinho revolucionário. Eram, no entanto, cruzes como as que Deus envia a todos os bons empreendimentos, e o Padre Lanteri e seus companheiros sabiam que elas são verdadeiras propulsoras das boas obras. Faziam o que era possível e confiavam na Providência, esperando dias melhores para um trabalho mais eficaz.
NOVA ET VETERA
DESVIRTUAM COM IMPUNIDADE A MENSAGEM DO EVANGELHO
J. de Azeredo Santos
Um dos mais lamentáveis e dolorosos aspectos do avanço da subversão esquerdista nos dias que correm, é o concurso que lhe emprestam ponderáveis setores do Clero e do laicato católicos, via de regra sem sofrer por isso sanções da parte da Hierarquia Eclesiástica.
Ainda recentemente comentávamos nesta coluna, sob o título de "Laboratórios sombrios para produzir todo erro" ("Catolicismo", n.° 234, de junho de 1970), as declarações formuladas por dois Bispos e 125 clérigos que participaram das reuniões do "Movimento de Sacerdotes para o Terceiro-Mundo" realizadas na cidade Argentina de Santa Fé. Proclamavam eles abertamente sua adesão ao processo revolucionário socialista e suas simpatias pela "experiência peronista". Depois disso os jornais noticiaram a participação de leigos católicos e de pelo menos um Sacerdote nos atos delituosos que culminaram no assassinato do General Pedro Eugenio Aramburu.
Como se viu quando estourou o escândalo dos Dominicanos brasileiros comparsas do terrorista Marighela, não faltam nos meios católicos os partidários da política do avestruz, que porfiam em mergulhar a cabeça na areia diante dessa tempestade que desaba. Outros preferem assumir uma atitude pseudo-equilibrada em face dos discípulos de "Che" Guevara e de Camilo Torres. Para D. Helder Câmara e sua corrente, por exemplo, aqueles que optam pela violência o fazem como revide diante de uma alegada violência institucionalizada pré-existente e fruto do que chamam de estruturas arcaicas do capitalismo colonizador, espécie de sanguessuga do mundo subdesenvolvido.
A TFP vem-se entregando a um enorme esforço de esclarecimento da opinião pública, denunciando a ação corrosiva dos "grupos proféticos" e do progressismo em geral, da qual é amostra a pregação subversiva do tristemente famoso Pe. Comblin, que livremente circula por toda parte sob as asas protetoras do Sr. Arcebispo de Olinda e Recife, sem que haja quem lhe detenha os passos nessa faina criminosa. E bem recentemente a Sociedade Argentina de Defesa da Tradição, Família e Propriedade saiu a público para com todo o empenho reclamar do Episcopado platino urgentes medidas que ponham cobro à propagação das ideologias subversivas nos ambientes católicos, exercendo sua autoridade para castigar exemplarmente os culpados (texto na última página desta edição).
Mercê de Deus, a voz da TFP brasileira e das sociedades coirmãs que se vão espalhando por toda a América Latina vem encontrando eco em seu clamor. Ainda no mês passado cerca de trezentos católicos argentinos, dos mais variados setores sociais da nação vizinha, subscreveram uma declaração exprobrando, a propósito dos fatos ligados ao assassinato do ex-Presidente Aramburu, essa escandalosa contaminação dos meios católicos. Damos a seguir o texto do documento conforme foi publicado pelo diário "La Nación" de Buenos Aires, em sua edição de 2 de agosto último:
* * *
"Diante dos fatos que comovem a opinião pública e que provocaram a repulsa do povo argentino, os signatários deste documento elevam sua voz em momento decisivo da vida nacional, para declarar o seguinte:
"1 — A Igreja Católica Apostólica Romana desempenhou desde os albores da independência um papel preponderante na formação da consciência nacional, e isto ficou reconhecido nos próprios textos da Constituição de 1853.
"2 — Observamos com profundo pesar e alarma que nos fatos criminosos que culminaram com o assassinato aleivoso e covarde do Sr. Tenente-General Pedro Eugenio Aramburu foram indiciados como participantes, em maior ou menor grau, um Sacerdote e leigos católicos.
"3 — Do mesmo modo, e com vergonha, vimos que outros Sacerdotes, sem esperar o veredicto da justiça e surdos às diretrizes da Hierarquia Eclesiástica, fizeram declarações que constituem uma homenagem aos presumíveis culpados.
"4 — Comprova-se de um tempo a esta parte que certos membros do "Movimento de Sacerdotes para o Terceiro-Mundo" têm feito da violência e do coletivismo marxista a base de sua ação destrutiva".
"Os fatos assim assinalados — prossegue mais adiante o documento — como outras manifestações anteriores de agressiva insubordinação por parte de alguns Sacerdotes, configuram uma situação de verdadeiro comprometimento para a Igreja Católica em nosso país, já que eles se acham em aberta contradição com a doutrina social da Igreja e deixam a nu a irresponsabilidade dos que, amparando-se em sua condição sacerdotal, desenvolvem a mais malsã pregação, a serviço de uma concepção anticristã".
Acrescentam os signatários que, pelas razões enunciadas, consideram de seu dever declarar como católicos e como cidadãos argentinos que:
"1 — Repudiamos os fatos criminosos que comovem o país, e os que os instigaram, prepararam ou executaram.
"2 Repelimos a exaltação da violência que certos grupos de Sacerdotes chamados católicos vêm realizando há certo tempo, e que começa a produzir seus sinistros frutos de subversão extremista, por ser totalmente contrária à doutrina cristã e às mais caras tradições de nosso país.
"3 — Solicitamos respeitosamente aos Srs. Bispos que afastem das fileiras do Clero esses falsos profetas, os quais difundem sua nefasta pregação de dentro dos próprios seminários, universidades, movimentos e grupos católicos.
"4 — Solicitamos também com todo o respeito aos Srs. Bispos que utilizem todos os meios conducentes a esclarecer definitivamente, ante a opinião pública, a posição da Hierarquia Eclesiástica argentina em face do denominado "Movimento de Sacerdotes para o Terceiro-Mundo", de onde têm surgido, lamentavelmente, tantos apóstolos da violência e até possíveis delinquentes.
"Vimos, por fim, solicitar da Hierarquia Eclesiástica que exerça com firmeza a autoridade que lhe compete, e que a gravidade da hora reclama, contra todos aqueles que, a serviço de objetivos claramente subversivos, vêm desvirtuando até agora, com impunidade, a mensagem evangélica, na certeza de que ao adotar medidas graves e dolorosas a Hierarquia católica, apostólica e romana contará com o apoio unânime do laicato fiel e com o agradecimento profundo de todo o país".
Por onde se vê que também na Argentina reina a mesma perplexidade em face de um problema cujos parâmetros ultrapassam suas fronteiras: é o mesmo fenômeno que aqui simultaneamente notamos com o mais profundo pesar.