(continuação)
mundo ocidental e cristão. Toda a Cristandade sofreu e sofre esse fenômeno, iniciado com a Renascença e o Protestantismo, continuado com a Revolução Francesa, e que atinge o seu auge com o comunismo.
No Chile, evidentemente, essa crise das crises se fez notar. A isto chamaríamos de Revolução Chilena, que é apenas uma parte, com poucas variantes dignas de nota, da grande Revolução universal a que se refere o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira.
Seria infantil dizer que esta começou no Chile com a ascensão da Democracia-Cristã. Já muito antes de Frei era ela vigorosa. Muito especialmente nos tempos do governo Jorge Alessandri sua velocidade se tornou avassaladora. À medida que avança a corrupção no campo moral, forçosamente se corrompem as instituições, invariavelmente os espíritos se predispõem a ouvir os falsos líderes, inevitavelmente se passa a aceitar erros doutrinários. Para se entender a Revolução no Chile, como para entendê-la em qualquer parte do mundo, é imprescindível a consideração atenta de seus aspectos religiosos e morais.
Um observador político dos tempos da Reconquista erraria se a considerasse com olhos estritamente laicos, e no mero plano político, abstraindo do fervor religioso que animava os filhos da Espanha cristã desde Covadonga. Um historiador da dominação árabe falharia gravemente se ignorasse os fatores religiosos que pesaram decisivamente nas guerras e transformações sociais por que passaram as populações islâmicas do Andaluz. Um comentarista da segunda guerra mundial erraria se considerasse a existência dos pilotos suicidas japoneses como um mero efeito do patriotismo, abstraindo de que essa atitude provinha também de um devotamento religioso ao Imperador.
Assim também, erraria gravemente quem quisesse considerar a Revolução Chilena como um fato — ou uma sucessão de fatos — de origem unicamente política, econômica ou social. ANTES DE TUDO, ELA É DE FUNDO MORAL E RELIGIOSO.
O marxismo não era assimilável pela nação chilena, tradicional e profundamente católica, e por isso mesmo imbuída de respeito pela família e pela propriedade. Ela não queria a luta de classes. Amava a ordem. Abominava a desordem. Não aceitava a demagogia dos agitadores de esquerda.
Os homens que dirigem de cima os destinos daquele povo irmão verificaram que a única maneira de fazê-lo aceitar a transformação social que lhe propunham — a Revolução de esquerda — seria "batizá-la", seria apresentá-la não só como isenta de qualquer hostilidade à Igreja, mas até inspirada pelos princípios cristãos. Sem isto, seria incerto e muito lento o caminhar da Revolução Chilena.
Apresentavam-na seus fautores como uma revolução técnica. Mas, como as transformações desejadas por eles supunham a rejeição de princípios aceitos unanimemente como verdadeiros pelo povo chileno, tal rejeição teria que ser antes coonestada teologicamente. E para isto necessitavam de teólogos que fizessem a necessária escamoteação doutrinária. A êste papel se prestou, de maneira flagrante e audaciosa, certo número de Sacerdotes jesuítas. Dedicaremos o presente capítulo ao estudo sumário desse trabalho de prestidigitação doutrinária e dos seus autores.
A - A base teológico-sociológica
Sendo impossível batizar o marxismo, é necessário, para que a Revolução se faça aceitar pelos católicos, levar a opinião pública a adotar princípios que, à primeira vista, parecem verdadeiros, mas trazem em seu bojo — escondida cautelosamente — a semente marxista. É exatamente com esse objetivo que a preparação ideológica do povo chileno para a aceitação de uma estrutura social comunista se faz em diversos níveis.
Existe, primeiramente, uma terminologia estranha, utilizada somente por alguns iniciados. E só estes conseguem entendê-la. Por exemplo, a revista "Reportaje DESAL" emprega, em um de seus números, os seguintes termos cabalísticos: "sociedad global", "globalidad", "participación pasiva o receptiva". "participación activa y contributiva", "radicalidad de la marginalidad", "enfoque multidisciplinario y supersectual", "integración interna del mundo marginal", etc. (artigo "Marginalidad y Promoción Popular", in "Reportaje DESAL" — ano I, n.° 1).
Mas, para convencer o povo simples, o homem da rua, o camponês, conceitos dessa natureza, um tanto esotéricos, não servem. Nesse nível a doutrinação tem que ser feita com termos mais acessíveis. É necessário empregar palavras mais simples, que eles entendam ou julguem entender, mediante a compreensão das quais se faz nascer neles o espírito revolucionário. Deve-se agir principalmente por meio de slogans revolucionários, cujo sentido primeiro e vago seja facilmente compreensível, mas cujo sentido verdadeiro e profundo seja de conhecimento apenas dos líderes, dos condutores das massas.
Dentro dos objetivos do presente trabalho, restringimo-nos à análise rápida de alguns dos principais termos impregnados de princípios revolucionários que os fautores da comunistização do Chile mais difundem.
• 1 - MARGINALIDADE E INTEGRAÇÃO
O marxismo quer destruir uma classe e confiar a direção exclusiva da sociedade e do Estado a outra. Para isso propõe a ditadura do proletariado, que aniquila a anterior classe dominante.
A exposição clara desse objetivo, no entanto, choca um espírito católico bem formado, pelo seu sabor não só de igualitarismo injusto, como também de luta de classes. O teólogo empenhado em servir a DC necessita de um princípio teológico-sociológico que possa defender como verdadeiro, e no qual esconda sorrateiramente o que é cedo para apresentar às escâncaras.
Nada mais justo, nada mais de acordo com a doutrina da Igreja do que dar pão aos que não o têm. Nada mais cristão do que ir buscar os homens que vivem marginalmente e procurar integrá-los na sociedade.
O normal, em uma sociedade bem constituída, na qual exista uma harmônica cooperação das várias classes que formam a hierarquia social, consiste em procurar integrar na vida social os que estão em situação de carência, fazendo-os subsistir por si mesmos, e incentivar a que, com os recursos culturais e financeiros das classes mais altas, e se necessário do Estado, se auxiliem em todas as suas necessidades de alma e de corpo as pessoas que vivam na miséria.
Os homens que são mais, especialmente do ponto de vista dos bens do espírito, devem interessar-se pelos necessitados, para que estes venham a participar da vida social. E ao Estado cabe velar pelos que são menos, auxiliá-los a progredir, a se civilizarem e a se culturalizarem.
Em termos muito concisos, estas seriam as verdadeiras noções de marginalidade e integração:
Encontram-se em marginalidade aqueles homens que por sua situação de carência vivem à margem do corpo social;
Integração é o processo através do qual os homens que vivem à margem do corpo social são conduzidos a participar ativamente dele como membros vivos e sadios.
Os conceitos de marginalidade e integração — palavras talismânicas — facilmente podem ocultar sentidos condenáveis que o homem incauto, pouco observador das manobras esquerdistas, talvez não perceba à primeira vista.
Tendo, embora, como dissemos, um sentido natural legítimo e sadio, essas duas palavras são lançadas nas esferas cultas do Chile com um sabor esquerdizante. Elas trazem consigo a aceitação da idéia de que a integração dos marginalizados só pode ser feita através da luta de classes, a substituição violenta da classe dominante e a destruição da estrutura social existente.
A estrutura que tinha a América Latina no século XVI, no entender da revista "Mensaje", está intacta: "Uns são os vencedores, os possuidores; os outros são os vencidos, os condenados a viver à margem da nação a que pertencem sem saber claramente por que" ("Mensaje", junho de 1966 — editorial, p. 214). Dois terços da América Latina, segundo a revista, estão marginalizados. E a situação tende a agravar-se.
Essa imensa marginalização só se deveria às estruturas atuais, à indolência da massa e à falta de interesse do terço privilegiado que dirige o povo, dos "herodianos" (homens tão ultrapassados como são os do tempo de Herodes). Incapazes, incompetentes, não querem que os atuais marginais se integrem.
Daí surgiu a necessidade histórica de justiça, de uma força extrínseca à massa que promovesse a libertação desta e sua integração. É necessário derrubar os homens que estão no poder, integrar os que hoje são marginais e transformá-los nos líderes de amanhã, mediante sua organização em grupos sociais. Esses grupos, como veremos, serão a ponta de lança da agitação, da luta de classes, do processo violento de transformação social.
• 2 — A "PROMOCIÓN POPULAR"
"Promoción popular" é outra expressão talismânica, de sentido cabalístico que só os iniciados conhecem ou dizem conhecer. A idéia que ela traduz aparece como nascida — no ambiente chileno — no Centro Belarmino, dos RR. PP. Jesuítas, e encontra no Pe. Veckemans um de seus maiores propagadores. Quando se pergunta a um chileno comum o que significa "promoción popular", ele não sabe responder. Quando se procuram ler os artigos ou livros publicados a respeito, tem-se que fazer um esforço enorme para, no término, chegar ao triste resultado de pouco se ter compreendido. É tudo cabalístico. No entanto, nos círculos intelectuais e políticos de esquerda todos usam à larga a expressão. E daí extravasa ela em certa medida para o grande público.
Em um folheto de propaganda demo-cristã, a definição que se dá, de "promoção popular", é a seguinte: "É o processo pelo qual o povo CAPACITADO e ORGANIZADO se vai integrando no desenvolvimento geral do país, ao participar efetivamente na solução de seus próprios problemas. Em outras palavras, é o contrário de paternalismo" ("Los Siete Misterios de la Promoción Popular" — grifos nossos). Ou seja, é a politização da massa, a formação, nela, da ideia de que as elites não lhe desejam o bem-estar nem o progresso. E a consequente organização dela para arrancar por suas próprias mãos tais vantagens, com a destruição das elites.
Quando tratarmos do organismo estatal chamado "Promoción Popular" (que tem estatuto de Ministério), veremos o que na prática se quer. Em teoria, trata-se de organizar a população e integrar os marginalizados. Mas, na realidade, o objetivo é expulsar do poder as classes atualmente dirigentes, para que dele se aposse exclusivamente a massa. Este é o objetivo da "promoción popular". Em linguagem não camuflada, seria a ascensão do proletariado, e a marginalização dos líderes atuais da produção e da cultura.
KERENSKY
Alexandre Feodorovitch Kerensky nasceu em Simbirsk, na Rússia, em 1881. Fez seus estudos em São Petersburgo, formando-se em Direito. Iniciou cedo sua carreira política, tendo sido eleito membro da Duma, o Parlamento russo, em 1912.
Socialista e duramente hostil ao regime imperial, participou ativamente da revolução de março de 1917, que levou o Czar Nicolau II a abdicar. Constituído o primeiro governo provisório, assumiu a pasta da Justiça. Em 20 de julho do mesmo ano ascendeu a Primeiro-Ministro, com poderes ditatoriais.
Nessa ocasião reinava funda divergência entre as várias correntes esquerdistas. A mais extremada era a dos bolchevistas, liderados por Lenine, que em março tinham revelado enorme força, mas depois haviam caído em acentuado desprestígio. Nenhum de seus jornais circulava, pelo fato de as tipografias se negarem a imprimi-los. Seus principais líderes estavam fora de ação: Lenine vivia foragido; Trotsky e Stalin se achavam presos.
Kornilov, o comandante-chefe das Forças Armadas, tido como de direita, general de grande prestígio, se dispôs então a liquidar com o bolchevismo, apresentando ao governo um plano de ação enérgico. Era a última oportunidade para isto. Kerensky, o socialista moderado, tinha reservas quanto à posição ideológica dos bolchevistas, mas repudia a proposta radical de Kornilov. Acaba se indispondo com êste e o prende, mais ou menos ao mesmo tempo em que liberta Stalin e Trotsky. Numa concessão aos socialistas avançados proclama a república. Logo depois Lenine volta para a Rússia e sua facção começa de novo a crescer em força e influência. Inicia-se a decadência política de Kerensky.
Em novembro de 1917, os bolchevistas, depois de terem exterminado a Família Imperial, derrubam o governo e tomam o poder. Kornilov foge, e assume o comando do exército russo-branco (que combatia vigorosamente a revolução), para morrer, no ano seguinte, vitimado por uma bomba. Kerensky se refugia a bordo de um navio inglês. Chega são e salvo a Londres, passa algum tempo em Berlim, indo depois para Paris, onde organiza um arremedo de resistência.
Assim, o homem que se negou a tomar as atitudes enérgicas propostas por Kornilov para liquidar os bolchevistas, acabou favorecendo a ascensão destes e perdendo o poder para eles. Prendeu Kornilov, e soltou Trotsky e Stalin. Combateu as chamadas direitas, e deixou Lenine recuperar o prestígio que perdera.
E hoje, enquanto o povo russo permanece escravizado pelos comunistas, Alexandre Feodorovitch Kerensky vive uma velhice despreocupada e bem instalada, no coração do mundo capitalista: em Nova York.
• 3 — A MUDANÇA DE ESTRUTURAS E AS REFORMAS
Toda a hodierna organização social do Chile — afirmam mais ou menos claramente os propugnadores da Revolução Chilena — é má: E os líderes "herodianos" são incompetentes.
Cumpre fazer uma completa mudança de estruturas. Cumpre destruir e recomeçar tudo do marco zero. Cumpre deitar por terra as instituições vigentes e formar novos organismos sociais. Cumpre tirar o poder dos atuais líderes dá-lo a outros.
Isto só se consegue com reformas de base as mais arrojadas e radicais, em todos os setores. E se for necessário o emprego da violência, será empregada a violência.
Para exemplificar, vejamos o editorial do n.° 115, de dezembro de 1962, de "Mensaje" (pp. 589 e ss.), revista católica dirigida pelos RR. PP. Jesuítas, que apóia integralmente a tendência democrata-cristã chilena. Sob o título "Revolución en América Latina", a direção da revista pretende apresentar como católicas as reformas mais violentas e radicais: "Sopram, com efeito, ares revolucionários. Uma imensa e cada vez mais crescente maioria está tomando consciência de sua força, de sua miséria e da injustiça dessa "ordem" política, jurídica, social e econômica que é obrigada a aceitar; e essa maioria não está disposta a esperar mais. Exige uma mudança: uma mudança rápida, profunda e total de estruturas. [...] a inquebrantável decisão de mudar, custe o que custar. Isto, e não outra coisa, significa a "Revolução na América Latina". [...] Revolução é, por conseguinte, "reforma". Mas não uma tal ou qual reforma, senão REFORMA INTEGRAL E RADICAL. [...] A autêntica revolução abrange todos os campos. É clara evidência da inadequação, da inoperância e da injustiça das estruturas vigentes; é, pelo mesmo motivo, inquebrantável decisão de romper radicalmente com a "ordem" atual, de acabar com o passado e, PARTINDO DE "ZERO", CONSTRUIR UMA ORDEM TOTALMENTE NOVA, [...]. Não vemos como se possa conciliar uma atitude autenticamente cristã com uma atitude cerradamente anti-revolucionária, oposta à mudança radical e urgente de estruturas [...]" (grifos nossos).
No final das suas ponderadas e cautelosas observações, a direção de "Mensaje" adverte, no mesmo editorial: "A revolução está em marcha. Não opor-se a ela, mais ainda, propiciá-la, esconde evidentemente um risco (ninguém pode saber exatamente onde termina a revolução), mas a vida é risco, e o Cristianismo não é uma religião de seguranças suaves, mas de generosas loucuras".
Estes Srs. parecem ter-se deixado dominar pelas ideias niilistas, que tanta influência tiveram na Rússia pré-revolucionária do século XIX. Os niilistas tinham como um dos pontos principais de sua ideologia a necessidade da destruição total de todas as estruturas sociais, para depois se formar uma nova sociedade.
Para os RR. PP. Jesuítas da revista "Mensaje", nenhum valor tradicional deve ser preservado. Devemos destruir tudo e partir novamente do zero. Os líderes atuais, as famílias que estão por cima, os homens mais cultos, os políticos de hoje, tudo enfim deve ser posto abaixo para se formar uma nova ordem de coisas.
Nos escritos desses homens, a estrutura social que existe é apresentada como totalmente má, e a que está em gestação, como necessàriamente boa. Por isto, destruamos o existente e ansiemos pelo novo. O que é esse novo que se quer criar? É, a sociedade e a propriedade comunitárias, é a sociedade sem classes, desejada pelos democratas-cristãos e amada pelos marxistas.
Deploramos profundamente a audácia de Sacerdotes católicos que consideram de acordo com a mensagem evangélica absurdos tão graves e evidentes.
• 4 — DIREITO DE PROPRIEDADE
A Igreja sempre ensinou ser o direito de propriedade um direito natural. Com efeito, já que o homem é naturalmente dono de si, é dono de seu trabalho. E, portanto, do fruto do seu trabalho. E esse fruto se destina primeira e diretamente a satisfazer as necessidades de quem o produziu.
Dono de seu trabalho, pode o homem fazê-lo frutificar muito, pela aplicação do seu próprio talento e por sua diligência. O homem é, pois, naturalmente dono dos frutos do seu trabalho que excedam suas necessidades de consumo, e que constituem para ele uma garantia para as incertezas do futuro. É o ponto de partida do que chamamos capital. Este pode ser representado indiferentemente por bens móveis ou imóveis, empresas agrícolas, industriais, comerciais, etc.
O direito do trabalhador a seu salário e o do proprietário a seu capital não são, pois, antagônicos. Brotam da mesma raiz, que é o direito do homem livre, de dispor de si.
Em suma, o direito de propriedade é um direito natural: nasce da ordem natural instituída por Deus.
Os esquerdistas fingem ignorar este ponto, e apresentam o direito de propriedade como contrário ao trabalhador. E proclamam a necessidade de o suprimir.
Se se lhes objeta que todo direito natural é sagrado, e não pode ser abolido pelo Estado, redarguem que os direitos naturais se distinguem segundo Santo Tomás em primários e secundários, e que estes últimos podem ser abolidos pelo Estado. Ora, dizem, o direito de propriedade é secundário.
Sem entrarmos na explanação da controvérsia relativa a ser o direito de propriedade um direito natural primário ou secundário, acentuamos que, máxime sendo secundário, pode ele ser objeto de limitações legais, pode a propriedade privada até ser supressa em um caso ou outro; porém, em qualquer hipótese essa supressão se deve entender como referente a estas ou aquelas propriedades em concreto e nunca pode chegar à abolição — clara ou velada — do instituto da propriedade privada. Pois tal abolição seria indefensável em termos de doutrina católica.
Ora, é a isto que tendem energicamente os esquerdistas com suas reformas de base socialistas e confiscatórias, agravadas pelo fato de serem insuficientes e até irrisórias as indenizações fixadas pelas leis ou projetos de lei reformistas.
Pela doutrina tradicional da Igreja, uma terra pode ser desapropriada em razão de seu mau uso se este prejudicar o bem comum de maneira grave, inconcussa, líquida e certa. E isto há de ser demonstrado por dados precisos, e não por estatísticas ou estudos econômicos duvidosos. Mesmo tomadas essas precauções, é necessário que se prove que a desapropriação é o único remédio para o mal, e que na medida do possível se dê ao proprietário oportunidade de fazer produzir sua terra para evitar que ela seja desapropriada. Por fim, para que uma desapropriação seja moralmente lícita, tem de ser feita normalmente a preço justo.
Na literatura do progressismo chileno a respeito do assunto — vasta, pesada e indigesta — a nenhum desses requisitos se dá atenção. Fala-se em dano para o bem comum, para logo se proporem desapropriações em grande escala, a preço baixo e a longo prazo, sem garantia contra a desvalorização monetária.
Os doutrinadores democratas-cristãos andinos vão mais longe. Não se satisfazem em levantar dúvidas contra a propriedade individual. Chegam a afirmar que ela é ilícita, e que a propriedade desejada por Deus é só a comunitária, ou até a inteira comunhão dos bens.
Vejamos o que escreve a respeito o Sr. Julio Silva Solar, um dos deputados de maior prestígio do PDC chileno. Aplicando talvez o princípio de que os fins justificam os meios, não tem escrúpulos de recorrer à deformação da doutrina verdadeira. No folheto "El Régimen Comunitario y la Propiedad", depois de citar Santo Tomás e fazer de modo tendencioso a já conhecida e aliás legítima distinção entre direito natural primário e secundário, cita os Padres da Igreja para concluir que "em geral se pronunciaram contra a propriedade, privada e a favor da comunidade de bens".
Os textos aduzidos pelo Sr. Silva Solar são de difícil interpretação. São textos obscuros, já de longa data aproveitados pelos marxistas, parecendo, à primeira vista, defender a propriedade comunitária. O parlamentar pedecista afirma tê-los encontrado em São Clemente Romano, Lactâncio, São Crisóstomo, Santo Ambrósio, São Basílio e Santo Agostinho. O eminente moralista Pe. Victor Cathrein, S.J., em sua "Philosophia Moralis" (Herder, Barcelona, 19.a edição, 1945, pp. 318-319), comentando o pensamento dos Padres da Igreja em textos como esses, diz que "não se deve recorrer em primeiro lugar a certas formulações ambíguas, mas àquelas passagens em que eles exprimem o seu pensamento mais claro. [...] há quem, com sumo aplauso dos socialistas, ouse acusar de comunismo os Santos Padres e o Direito Canônico".
Um dos trechos citados por Silva Solar, atribuído a São Clemente Romano, é apócrifo. No livro "La Propiedad" (edição "Dédalos", Madrid, 1935), o Pe. José Maria Palacio, O.P. (que não é um antiprogressista à outrance) transcreve na p. 56 o mesmo trecho, na mesma tradução apresentada por Silva Solar. É possível que este tenha colhido lá a citação. E observa depois o Pe. Palacio: "A literatura marxista tem-se aproveitado deste fragmento", que é aduzido "como argumento incontrastável a favor do comunismo dos Santos Padres. [...] Graças aos progressos da crítica moderna, pôde-se chegar à demonstração apodítica de que esse fragmento faz parte de um escrito apócrifo do século III ou IV". O texto em questão, na tradução adotada pelo Sr. Silva Solar, é o seguinte: "Todas las cosas que hay en este mundo debieron ser de uso común entre los hombres. Sin embargo, injustamente llamó uno a esto suyo y aquél a lo otro, de donde se originó la división entre los hombres".
Em um artigo de “La Nación” (diário do governo), edição de 6 de setembro de 1966, intitulado "Para una teologia del derecho de propiedad", sustenta-se que os bens da terra pertencem "em primeiro lugar a Deus" — que é verdade. Depois pertenceriam "à comunidade humana", o que — assim sem maiores explicações — pode parecer duvidoso a muitos. E conclui-se que o homem é apenas um "administrador dos bens" — o que é falso. Em seguida dá-se interpretação ambígua a várias passagens da Escritura, e afirma-se que os Padres da Igreja são favoráveis à comunhão de todos os bens.
Aqui não cabe um estudo pormenorizado a respeito do direito de propriedade na doutrina pedecista. Por isto citamos apenas duas amostras de uma literatura vastíssima e muito difundida nos meios democratas-cristãos do Chile. Para justificar suas posições falsas a respeito da propriedade privada, os autores de tais livros fazem escamoteações doutrinárias por meio de citações de difícil interpretação e exegese complexa, chegando mesmo ao extremo de se servirem de um texto apócrifo, fazendo ao mesmo tempo tábula rasa dos ensinamentos tão claros das numerosas Encíclicas que tratam do assunto. Isto é o suficiente para mostrar que nem sempre a boa fé é apanágio dos teóricos da Democracia-Cristã chilena.
• 5 — FOME E MISÉRIA: AGITAÇÃO EMOCIONAL PARA TIRAR CONCLUSÃO MARXISTA
Um dos métodos de ação ideológica marxista usados intimamente consiste no desvirtuamento do sentido de determinadas palavras, seguido de uma agitação emocional em torno delas, o que traz consigo, por efeito de exageração, certas conclusões precipitadas, de um conteúdo comunista muito bem camuflado, às vezes imperceptível no primeiro momento.
Esse fenômeno é muito bem explicado pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira em seu recente livro "Baldeação Ideológica Inadvertida Diálogo" (Editôra "Vera Cruz", São Paulo, 1965). Mostra o autor que o emprego continuado de determinadas palavras talismânicas — como "diálogo", "coexistência", "ecumenismo", "paz", etc. -- acaba por "operar nas almas uma transformação paulatina mas profunda" (p. 1). Acaba a pessoa por aceitar um sentido da palavra — ou uma conclusão implícita que a acompanha — que no início não aceitava. Passa-se paulatinamente a adotar os princípios implícitos que a palavra talismânica contém.
É sabido que na América Latina existe, em muitos lugares, fome e miséria. Ninguém o nega, e seria estupidez negar.
Para qualquer homem normal, é profundamente doloroso ver um povo que sofre fome e miséria. Qualquer cristão, fervoroso ou não, qualquer ateu que tenha um mínimo de compaixão pelo sofrimento do próximo, sente-se inclinado a sanar esses dois males onde quer que eles existam. E ninguém duvida de que os governos honestos que têm surgido em nosso continente sempre estiveram ou estão dispostos a procurar afastar esses males.
Acontece, no entanto, que os esquerdistas criam uma peculiar fermentação emocional em torno das palavras fome e miséria, para daí tirarem conclusões que os favoreçam. Tal fermentação em nada facilita a solução do problema. Pelo contrário, até a dificulta, pois nenhum problema se resolve em clima de intranquilidade e excitação.
Os esquerdistas — e isto se nota muito particularmente no Chile — começam por insistir frequentemente em ambas as palavras; depois passam a criar a fermentação emocional em torno delas, acusando todo o mundo de egoisticamente se esquecer do problema que elas traduzem; num terceiro tempo acusam as elites atuais de se negarem a solucioná-lo; e por fim apresentam-se como os únicos homens da terra que sabem ver equilibradamente a questão, e os únicos dispostos seriamente a solucioná-la, por meio da ascensão do proletariado e das reformas de estrutura.
A solução do problema da fome postula, evidentemente, o aumento da produção agropecuária. No entender de quantos não estejam mordidos pela mosca fanática do agro-reformismo confiscatório, a solução está em uma sã política agrária, que inclua a garantia de preços justos, incentivos governamentais, etc. Mas, para os agro-reformistas delirantes, haverá fome enquanto não se der o aniquilamento dos atuais proprietários e a transferência das terras para os seus legítimos donos, os trabalhadores, com a eliminação da propriedade privada e a instauração da propriedade coletiva. A reforma agrária assim concebida — que não deu certo em nenhum país — seria a panacéia universal.
Mostra o prof. Plinio Corrêa de Oliveira na obra citada que os reformistas, "sob a louvável alegação de destruir privilégios e desigualdades excessivas, podem ir além, e abolir, gradualmente, também privilégios e desigualdades indispensáveis à dignidade da pessoa humana e ao bem comum". Isto se aplica inteiramente ao presente caso. Inicialmente exagera-se o problema da pobreza, depois apresenta-se como solução a destruição de privilégios e desigualdades excessivas — para, por fim, se pedir a destruição das desigualdades que não são excessivas, mas pelo contrário, naturais, harmônicas e indispensáveis.
Os homens que no Chile falam em marginalização e em promoção popular são os grandes fautores da agitação emocional em torno das palavras fome e miséria. Criam um verdadeiro pânico da fome — talvez influência mórbida da tese malthusiana — de onde se tiram conclusões que favorecem seus ideais subversivos e confiscatórios.
B — Os homens e as organizações que elaboraram a base teológico-sociológico
Nos países onde a Revolução deita suas garras, por vezes surgem elementos do Clero dispostos a colaborar com ela. No Brasil, durante o período presidencial de Jango Goulart, a principal liderança do chamado Catolicismo de esquerda, que apoiou o governo comunizante, foi representada por um largo círculo de Padres dominicanos, influenciados pela Província de sua Ordem com sede em Toulouse na França, pelos leigos que viviam em torno deles e por bom número de Sacerdotes da mesma orientação.
No Chile a ocorrência hodierna de um fenômeno semelhante é pública e notória. A liderança progressista está com os filhos do grande e glorioso Santo Inácio de Loyola.
• 1 - O CENTRO BELARMINO SEUS JESUÍTAS
O papel desempenhado no Brasil pelos Dominicanos a que aludimos cabe lá a certos Padres Jesuítas. Uma série de Sacerdotes indiscutivelmente capazes, inteligentes, com preocupações antes de tudo de sociólogos, e secundariamente de Sacerdotes, representa a intelligentzia que lidera o movimento progressista. Vários desses Padres tiveram permissão para deixar suas casas religiosas e viver em comum ("solidariamente", em sua peculiar terminologia) no Centro Belarmino.
O Centro Belarmino é o principal propagador das ideias revolucionárias que animam o governo do Sr. Eduardo Frei. É um centro de estudos sociais, que mantém estreitas ligações com o laicato. Formou em torno de si um grupo de leigos preparados, estudiosos, irrestritamente simpáticos às idéias de esquerda e totalmente progressistas.
Muitos homens hoje importantes ou influentes na administração pública saíram do Centro Belarmino. A título de exemplificação, basta dizer que o Sr. Alvaro Marfan, chefe de propaganda da campanha eleitoral que levou Frei à Presidência da República, é um dos mais diletos filhos daquela organização. Atualmente assessor do governo para o setor de planificação, é um Ministro sem pasta. Outro exemplo é o do Sr. Sergio Ossa, chefe do órgão governamental intitulado "Promoción Popular", que tem estatuto de Ministério.
• 2 — O PE. ROGERS VECKEMANS O DESAL
Estranho personagem é o Pe. Rogers Veckemans.
É jesuíta. Mas, segundo a voz corrente, timbra em ser antes de tudo um sociólogo. É um dos homens mais importantes no Chile. Circulam histórias fantásticas a respeito desse Sr. Dizem-no filho de um anarquista belga. Comenta-se que raramente celebra a Missa.
Não se sabe até que ponto são merecedoras de crédito estas informações. O incontestável, no entanto, é que se trata de um homem de grande influência.
Tem livre trânsito em todas as áreas do governo, tem entrada fácil nas classes produtoras, é chegado a determinados banqueiros e industriais. Em discursos no Congresso, seu nome é citado amiúde.
Tem considerável capacidade de ação e viaja com muita frequência. É homem de voar para os Estados Unidos, proferir uma conferência e voltar, dentro de 24 horas. Comenta-se que era bem acolhido na Casa Branca ao tempo de Kennedy.
Talvez seja o Pe. Veckemans, no momento, o teórico e doutrinador esquerdista mais em voga no Chile. É o inventor ou principal propagador dos princípios de "marginalidad", "integración" e "promoción popular". Aceita as distorções doutrinárias sobre o direito de propriedade, referidas acima.
Poder-se-ia dizer que é a Eminência parda do governo Frei.
É o diretor do DESAL — Centro para el Desarrollo Económico y Social de América Latina. Esse centro de estudos foi fundado no tempo ainda do governo Alessandri. Foi financiado inicialmente pela Fundação Misereor, que o Episcopado Alemão criou em 1959.
No DESAL trabalham técnicos em desenvolvimento, todos eles de orientação esquerdista. O Sr. Paulo de Tarso, triste expoente da Democracia-Cristã brasileira na era de Goulart, é hoje um dos técnicos mais graduados da entidade. Dizem que os funcionários desta são muito bem remunerados. Consta, até, em largos círculos, que o Estado concede grandes financiamentos ou subvenções ao DESAL.
Nos livros ou artigos que publicam, os homens deste órgão técnico apresentam toda a ideologia revolucionária que enunciamos nas páginas anteriores. Favorecem a luta de classes, defendem a necessidade de destruir todas as estruturas hoje existentes, apóiam inteiramente a política esquerdista do governo Frei.
O DESAL faz estudos sobre toda a América Latina. Não me consta que seus trabalhos tenham tido penetração ou influído em outros países que não o Chile. Graças a Deus! Mas, lá ele faz devastações.
• 3 — A REVISTA "MENSAJE"
Seria uma falha fazer referência ao papel propulsor de certos Jesuítas na Revolução Chilena, sem falar de "Mensaje".
É uma revista católica mensal. Pertence também à Companhia de Jesus. Seu diretor é o Pe. Hernán Larraín Acuña, S.J.-ex-Reitor da Universidade de Valparaíso. Além do Pe. Veckemans, um dos colaboradores mais importantes de "Mensaje" é o Pe. Mario Zafiartu Undurraga, S.J., economista do Centro Belarmino.
Apresentando-se como católica, a revista defende em toda a linha a política de Frei e critica violentamente os opositores deste. Basta quase ser revolucionário para poder aí escrever.
Nela colaboram homens de prestígio. Entre eles citamos, por exemplo, o Sr. Jacques Chonchol — fautor da reforma agrária de Cuba, e o Sr. Raul Prebisch — conhecido esquerdista da CEPAL.
"Mensaje" chega a extremos absurdos e escandalosos. Assim, fui seguramente
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Flâmula distribuída pelo Colégio San Ignacio, dos RR. PP. Jesuítas de Santiago, por ocasião do 110° aniversário da fundação daquele estabelecimento de ensino. Um diabinho ao qual não faltam nem os chifres, nem o rabo, nem o tridente, calca aos pés, trêfego e triunfante, um círculo no qual se leem as iniciais e o nome do glorioso fundador da Companhia de Jesus. Curiosa inversão de valores, pois o normal seria precisamente o oposto: o nome do Santo a esmagar o demônio. — Filhos de Santo Inácio lideram o progressismo no Chile e fornecem a base teólogo-sociológica da Democracia-Cristã andina.