(continuação)

Em 1948 a Congregação Lassallista tinha na França 120 noviços; hoje não tem mais de 20

também deixar de operar a partir do sistema. Quero então permanecer no sistema para suscitar a crítica a partir das instituições existentes. Quero ficar no sistema, mas para mudá-lo. Isto é o entrismo" ("Doc.-Patern.", n.° 141, Suplemento n.° 2, pp. 3-5).

Este "Hino da Revolução Lassallista" foi mimeografado com ilustrações dos próprios autores (entre as quais se destaca um desenho obsceno), num estilo muito em voga em certos setores católicos "aggiornatti". A exposição sobre o "entrismo" é ilustrada por um desenho que merece ser descrito. São duas cenas, que se passam sobre a superfície do globo. Na primeira, estão numa posição de primeira plana, de mãos dadas, quatro personagens revestidos de insígnias que manifestam superioridade e poder: um militar, um magistrado, um eclesiástico e um gordo burguês, de cartola e bengala. Aos pés deles aparece a multidão dos inferiores e subordinados, representados por figurinhas menores; no meio dessa multidão destaca-se uma figurinha inteiramente negra, com um ponto de interrogação sobre a cabeça. A legenda dessa gravura é: "Antes do entrismo".

Na segunda cena, a situação é completamente diversa. Todos os personagens ocupam a parte superior do globo (onde antes estavam só os hierarcas da sociedade), todos têm a mesma estatura e dão-se as mãos fraternalmente. As insígnias de superioridade e de poder foram lançadas ao chão: todos são iguais. E a figurinha negra do primeiro desenho, que outro não é senão o "entrista", responsável pela transformação, exclama exultante: "Eu entrei. A coisa mudou!" (p. 5).

Seria longo demais referir tudo o que de aberrante puseram nesse folheto mimeografado os seus autores.

Limitemo-nos a mais um exemplo. Vejamos que conselho estes Religiosos educadores dão a seus confrades, a respeito da atividade que lhes é específica.

"O educador — dizem — preocupa-se em primeiro lugar com as pessoas que tem diante de si e que deseja ajudar a evoluir. Ele deve pois, antes de tudo, ganhar a confiança delas, mesmo que provisoriamente lhe seja necessário pôr entre parênteses algumas de suas próprias convicções as mais ardentes" (p. 7).

É o processo clássico de induzir as almas em erro: cumpre primeiro conquistar-lhes a confiança a qualquer preço, para depois ministrar-lhes o veneno. Seria imprudente dizer logo de início, até onde se deseja chegar. Daí os parênteses...

Laicizar a Congregação, objetivo dos inovadores

Se tais são as idéias em voga a respeito do papel dos Irmãos das Escolas Cristãs na educação da juventude — tarefa que está no cerne mesmo de sua vocação — não pode ser muito diferente o que se lhes propõe como ideal de vida religiosa.

É provável que bem antes das espantosas conferências do Irmão Charles Henry já circulassem em certos setores da Congregação conceitos revolucionários a respeito desse ideal. Mas parece que nestes últimos três anos tais ideias se propagaram com uma velocidade vertiginosa.

Em 1948 a Congregação contava na França com mais de 120 noviços (dos quais 97 preparavam-se para o apostolado em seu próprio país e 25 estavam sendo formados para a ação missionária); estavam eles reunidos em quatro noviciados. A partir de 1968 há apenas um noviciado, com cerca de duas dúzias de jovens. "A vida aí é aberta e suscita muitas reflexões", comentam os Irmãos lassallistas responsáveis pelo dossier que vimos analisando ("Doc.-Patern.", n.° 141, Suplemento n.° 1, p. 6).

Embora, no que se refere à vida interna da Congregação, os dados fornecidos por esse dossier sejam mais escassos, o juízo de seus autores sobre a presente situação do Instituto, na França, é bastante claro: "Em virtude da orientação dada pelos atuais Superiores a Congregação tornou-se infiel a São João Batista de La Salle" ("Doc.-Patern.", n.° 141, Suplemento n.° 2, Anexo).

Os documentos que temos em mãos apresentam uma nova maneira de entender o ideal lassalista, a qual coloca sua tônica numa completa laicização, despreza as considerações de ordem sobrenatural, relega a segundo plano a vida de comunidade, e tira o conteúdo aos próprios votos religiosos.

Reação no interior do Instituto

Um outro dossier, que nos chegou mais recentemente de outra fonte, ajuda a completar o quadro dos extremos a que tem chegado a "Revolução Lassallista" no interior do Instituto, e mostra as reações que esta tem suscitado.

No dia 4 de outubro do ano passado, o Irmão Etienne, Diretor da Escola Técnica de La Salle, de Alès (França), enviou ao Superior Geral dos Irmãos das Escolas Cristãs, Irmão Charles Henry Buttimer, em nome de numerosos outros Religiosos, uma carta na qual expõe o "drama de consciência" no qual estes se encontram:

"O período difícil que atravessamos nos obriga, queiramos ou não, a uma escolha terrível: — ou ficarmos fiéis ao Ideal que nos foi apresentado por ocasião de nossa admissão no Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs, e ao contrato sagrado que assinamos no momento da emissão dos Votos, — ou, senão, nos engajarmos em uma via nova que nos traçam as recentes decisões e tomadas de posição, as quais nos aparecem como desvios do espírito verdadeiro de nosso Santo Fundador".

Como solução para tão angustiante dilema, solicitam esses Religiosos a seu Superior Geral a faculdade de se reunirem em comunidades regidas pelo que chamam de "Carta Fundamental de uma Exata ou Autêntica Observância Regular" (cujo texto apresentam ao Geral, em anexo, juntamente com uma "Carta explicativa"), a qual representa "a substância do espírito tradicional de nossa Congregação, e que lhe deve assegurar a perenidade".

A "Carta Fundamental" expõe minuciosamente os pontos essenciais da vida religiosa como a entendeu São João Batista de La Salle, cuja observância os autores do documento consideram indispensável para a fidelidade ao Santo Fundador. A tônica da Carta está no empenho em conservar ao Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs o seu caráter de Congregação Religiosa, contra a tendência generalizada dos inovadores de o transformarem num simples Instituto secular, ademais inteiramente laicizado e identificado com o mundo de hoje.

O Irmão Etienne e os confrades que ele representa quiseram evitar polêmica. Por isso, limitaram-se a expor seus anseios, fundamentando-os em princípios de direito canônico e de direito natural, sem entrar em pormenores a respeito dos fatos que os levaram a essa atitude. Fazem apenas uma alusão "ao sofrimento de numerosos Irmãos que carregam em silêncio a sua cruz, e se vêem constrangidos a viver em comunidades que não correspondem mais a suas aspirações"; pedem eles a possibilidade de escolher "a comunidade que julguem capaz de assegurar-lhes uma vida plenamente religiosa", uma comunidade na qual possam viver com paz de espírito, "porque os Irmãos assim reagrupados não terão mais que suportar a tensão que resulta atualmente de uma divergência radical sobre concepções fundamentais, tanto da Vida Religiosa, como do Apostolado" ("Carta Explicativa", pp. 1-3). Parece que na Congregação ninguém ignora ou nega esses fatos. Muito menos o Superior Geral.

Eis um dos princípios em que esses Religiosos baseiam sua petição: "Em direito eclesiástico, como em direito civil, é admitido que uma legislação nova não possui normalmente efeito retroativo: isto é particularmente verdadeiro no domínio dos contratos. Os contratantes submetem-se unicamente às obrigações aceitas, por ambas as partes, por ocasião da realização do contrato. [. . .] Segue-se daí que os Religiosos que o desejem, devem poder levar até a morte o modo integral de vida religiosa que aceitaram no dia de sua Consagração, o que postula a existência de Comunidades da mesma mentalidade" ("Carta fundamental", p. 2).

Em uma primeira resposta o Superior Geral informou ter submetido a matéria à Comissão Canônica da Congregação, para que esta lhe apresentasse um relatório à vista do qual ele se pronunciaria sobre a questão. Em sua segunda carta, o Irmão Charles Henry afirma ter feito examinar a petição por quatro Irmãos Assistentes, por ocasião do Conselho Geral da Congregação, e envia ao Irmão Etienne sua "primeira reação pessoal". Diz ter encontrado nos documentos apresentados por este último alguns pontos que considera vagos, e que pedem maiores explicações. Por outro lado, estranha que tais documentos não façam nenhuma referência às Regras e Constituições aprovadas pelo Capítulo Especial de 1966-1967, da Congregação; por isso interpela o Irmão Etienne sobre se ele e seus companheiros as aceitam. Ao mesmo tempo procura assegurar a submissão incondicional desses Religiosos a todos os Superiores atuais do Instituto, bem como impor-lhes sua própria interpretação de documentos da Santa Sé que tratam da vida religiosa. É de se notar que o Irmão Charles Henry evita cuidadosamente de indagar a respeito dos fatos que levaram seus súditos a pedir o reagrupamento em "comunidades de autêntica observância regular". Parece que ele não acha conveniente pôr a mão na chaga representada por tais fatos.

O Diretor da Escola da Alès responde a essa carta dizendo que ele e seus representados aceitam e respeitam as Regras e Constituições a que alude o Superior Geral, e têm consciência de as estarem observando lealmente na vida quotidiana. Quanto ao fato de não fazerem menção a elas na Carta Fundamental de Observância Regular que se propõem como norma de vida, a razão está em que as Regras e Constituições de 1966-1967 foram aprovadas ad experimentum, o que representa uma posição provisória, e, portanto, precária. Em vista disso, preferiram referir-se aos textos da Regra primitiva do Santo Fundador, à qual a Bula de aprovação de 1725 confere uma autoridade oficial e que durante dois séculos e meio vem conduzindo à santidade grande número de Religiosos, inclusive o Irmão Benildo, recentemente canonizado por Paulo VI. Essa é a via mais segura para quem não se quer afastar do espírito de São João Batista de La Salle.

Ressalvam, ainda, a respeito das novas Regras provisórias, que, se as aceitam enquanto aguardam o pronunciamento definitivo da Igreja sobre elas, fazem todavia "sérias reticências e reservas quanto à maneira de as interpretar e de as aplicar". Trata-se de interpretações e aplicações que parecem ao Irmão Etienne e seus companheiros extremamente perigosas, porque conduzem insensivelmente:

- "Ao esquecimento da Doutrina de São João Batista de La Salle, nosso Fundador e Pai;

- À negação do que é específico de nosso estado religioso;

- A um pluralismo inquietante, no qual nossa Missão apostólica particular: a Escola Cristã, e as Obras educativas ligadas diretamente a ela, tomam cada vez menos o lugar privilegiado e essencial que lhes é devido;

À fórmula de Instituto Secular, que rejeitamos formalmente".

Ao longo das quatro páginas seguintes, o Irmão Etienne responde, uma a uma, às outras questões formuladas pelo Superior Geral.

O teor da resposta final do Irmão Charles Henry era facilmente previsível. Em uma carta muito breve, datada de 3 de maio deste ano, ele admite que um Religioso "peça para ser colocado em uma comunidade composta de outros da mesma orientação geral", mas afirma não ser possível reagrupar Irmãos "sob o pretexto de que alguns desejam ficar fiéis ao ideal do Santo Fundador, porque todos os irmãos têm este desejo". Todos os Capítulos da Congregação teriam sido, segundo esse modo de ver, assembleias movidas pelo mais ardoroso entusiasmo por São João Batista de La Salle, inclusive aquele cujos textos não fazem uma só referência ao Fundador. O Irmão Patrice e os autores do "Hino da Revolução Lassallista" seriam, eles também, entusiastas incondicionais do ideal de São João Batista de La Salle...

Essa a razão pela qual o Irmão Charles Henry indefere o pedido do Diretor da Escola de Alès e dos Religiosos dos quais este é mandatário.

Parece-nos que o episódio fala por si. Em face dessa resposta do Irmão Superior Geral, uma pergunta aflora naturalmente: como é que o desejo de fidelidade a São João Batista de La Salle, difuso por todo o Instituto, vem produzindo em largos setores deste o completo afastamento da letra e do espírito das Regras estabelecidas pelo Santo Fundador? Pode um desejo tão reto produzir os perniciosos frutos que descrevemos nestes dois artigos?

Não estamos tomando o partido de súditos contestadores contra Superiores legitimamente constituídos. Apresentamos, isto sim, a legítima perplexidade de Religiosos que, prestando a seus Superiores a obediência e o respeito que são devidos segundo as leis da Igreja, querem, no entanto, satisfazer aos imperativos de sua própria consciência.

Monge, soldado, ou bandido?...

A divulgação dos documentos acima referidos, feita por Irmãos lassallistas em "Documents-Paternité", provocou inúmeras repercussões.

Bispos, Sacerdotes, Religiosos, e, de modo especial, Lassallistas de toda a França, manifestaram seu repúdio às novas doutrinas e seu apoio à obra meritória desses denodados Irmãos.

Órgãos de imprensa católicos fizeram eco também ao brado de alarme desses dignos filhos de São João Batista de La Salle. Além de "Documents-Paternité", ao que saibamos, publicaram artigos contra as posições neomodernistas do Irmão Charles Henry e de seus seguidores, os seguintes jornais e revistas: "L'Homme Nouveau", "Carrefour", "Permanences", "Courrier de Rome", "Monde et Vie", "Itinéraires", "Nouvelles de Chrétienté" (tôdas de Paris), "Defense du Foyer" (Saint-Ceneré), "Lumière" (Boulogne-sur-Mer), "Lecture et Tradition" (Chire-en-Montreuil).

É bem evidente que não poderia faltar também a reação dos partidários da "Igreja pós-cristã". No Suplemento de dezembro de 1969 de "Documents-Paternité", os Irmãos responsáveis pela publicação dos documentos informavam ter recebido até aquela época 32 cartas contrárias à sua iniciativa. Nenhuma das críticas transcritas no dossier que temos em mãos apresenta argumentos válidos.

Uma dessas cartas mostra até onde se identificaram com o mundo neopagão hodierno certos Irmãos da Congregação Lassallista "pós-cristã". Trata-se da resposta do Irmão Jean-Baptiste Delieutraz, Diretor da Casa de La Salle, de Pringy, enviada em 19 de junho de 1969. A linguagem dêsse defensor do Irmão Charles Henry é incrivelmente baixa e injuriosa. Omitindo os tópicos pornográficos — que substituímos por reticências entre colchetes — vamos citar um trecho da missiva do "sieur" Jean-Baptiste Delieutraz:

"Ensuite, je vous prie, ne venez pas m' [...] avec vos feuilles clandestines et vos élucubrations mensongères au sujet de la Conférence du Frère Supérieur Général Charles Henri que je respecte, vénère et honore, tandis que vous, à l'instar de certains [...] vous Le bafouez, Le méprisez et L'invitez à démissionner. Vous me faites chier avec votre polémique insidieuse en 7 points qui reflètent et transpirent les 7 péchés capitaux. N'êtes vous pas du même acabit que ceux qui ont écrit des articles diffamatoires dans "I'Homme Nouveau" et "Carrefour", à propos des propos du Frère Supérieur Général des Frères des Ecoles Chrétiennes?

Vivent le Frère Supérieur Général Charles Henri, les Fréres Assistants Patrice, Sauvage et Mérian et les Frères Visiteurs de France qui sont dans la ligne du Concile Vatican II, tandis que vous, vous puez une [...], une [...], une haleine toute fétide et, en outre, vous sentez le moisi et le ranci qui m'écoeurent et me font vomir".

E mais adiante:

"Encore une fois, je ne veux me laisser [...] par votre lettre-circulaire, intitulée "Comimuniqué", pleine de haine, de hargne et d'aigreur! Sachez que j' en ai plein [...]: gare si vous vous trouvez près de moi, [...] votre fiel et votre bile nauséabonde que vous déversez sur vos confrères pourraient [...]. De plus, les alambics qui distillent une infecte nostalgie d'un passé périmé ou les concasseurs qui broient du cafard putride, n'ont pas droit de cité chez nous.

Je m'excuse de mon langage si coloré et si châtié mais vous excuserez le signataire de ces lignes dont le rêve de sa vie fut ou bandit, ou soldat, ou moine! et qui préfère la pornographie à la calomnie.

Veuillez agréer, Frères, l'expression de mes sentiments douloureusement indignés, mais, qui néanmoins vous adresse fraternellement la prière du Christ en croix: "O Dieu, pardonne-leur, car ils ne savent pas ce qu'ils font!" (Doc.-Patern.", n.° 141, Suplemento n.° 2 pp. 8-9).

Não sabemos com qual de suas antigas aspirações o Irmão Delieutraz considera compatível a pornografia, que, tanto quanto as injúrias, de forma alguma condiz com sua condição de Religioso...

Permitir o escândalo ou abandonar a verdade?

Uma única razão poderia justificar o silêncio a respeito de fatos tão chocantes como os que acabamos de relatar: o receio de escandalizar os fiéis.

Parece-nos, no entanto, que vivemos um momento da História em que, mais do que nunca, a verdade deve ser proclamada para não ser sufocada. Que prejuízo maior para os fiéis do que a liberdade de ação dos arautos da Nova-Religião dentro das muralhas da própria Igreja?

Esta é a hora mais do que todas oportuna para colocar em prática as sábias palavras de São Gregório Magno: "Se da verdade se toma escândalo, é mais útil permitir que nasça o escândalo do que abandonar a verdade" (Homil. 7, in Ezech.).

Peçamos -a São João Batista de La Salle que valha à sua Congregação, neste momento de tamanha provação, e que interceda junto a Nossa Senhora e seu Divino Filho para que façam cessar o mais breve possível este triste momento da vida dos Irmãos das Escolas Cristãs, que não é senão um aspecto da dolorosíssima paixão por que hoje passa a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.


O Cardeal festivo

Plinio Corrêa de Oliveira

A eleição e posse de Allende causaram um suspense no mundo inteiro. E nada mais razoável. No Chile — como aliás também na Itália — os marxistas estão divididos em dois partidos políticos. Um deles se intitula direta e ostensivamente Partido Comunista. O outro, que evidentemente não pode usar o mesmo nome, se chama Partido Socialista. Mas — insisto — tanto o PC quanto o PS são oficial e genuinamente marxistas. Assim, não há dúvida possível: Allende, figura de grande destaque no Partido Socialista, é um comunista confesso.

Ora, está na essência da metodologia de Marx, que os partidos comunistas devem tender continuamente para a realização dos objetivos últimos e mais extremos da revolução social. Não que Marx excluísse a eventualidade de admitir contemporizações e delongas, nessa trajetória para os fins últimos. Quando se percorre um terreno muito escorregadio, pode-se chegar menos tardiamente ao fim caminhando lentamente do que andando com irrefletida pressa. Assim, mesmo quando o marxista autêntico parece tergiversar ou contemporizar, não tenhamos dúvida: é porque julga ser este o modo mais curto de alcançar a realização da revolução integral.

Nestas condições, os ares de comedimento e brandura ostentados nestes dias por Allende só podem iludir a quem ignore os rudimentos mais elementares do método marxista de conquista do poder.

O mesmo se diga das fórmulas vagas de que o líder socialista se tem servido para enunciar seu programa. Evitando dizer cruamente que visa a implantação do comunismo, Allende tem falado, de modo vago, em realizar no Chile o socialismo. Esse pequeno disfarce de nada vale como garantia para os não comunistas. Pois, de um lado, a linha demarcatória entre o socialismo e o comunismo é das mais inconsistentes. E, de outro lado, nos lábios de Allende, a palavra “socialismo” não pode significar senão marxismo, já que como há pouco dissemos — é oficialmente marxista o Partido Socialista ao qual ele pertence.

O mesmo, ainda, se deve afirmar da relativa — e quão relativa — moderação das várias realizações imediatas anunciadas por Allende. Estas sempre foram reclamadas pelo PC e pelo PS chilenos como providências preliminares essenciais para a instauração do regime comunista. Isto posto, e se bem que Allende não pareça resolvido a instaurar, desde já, e em sua integridade, o regime comunista, é para lá que se dirigem desde logo seus primeiros passos. E não é demais repeti-lo — esses passos só serão moderados e lentos na medida em que assim o impuserem as conveniências táticas do comunismo.

Para ilustrar estas observações, não é sem interesse mencionar um pormenor do noticiário referente à entrevista concedida pelo novo presidente ao diretor do jornal “Excelsior”, do México. Na sala de sua residência, em que a entrevista se realizou, se notavam fotos de Fidel Castro, “Che” Guevara, Ho Chi Minh e Mao Tsé-Tung. “Diz-me com quem andas, e te direi quem és”, afirma o provérbio. Perguntado sobre o motivo de estarem elas ali, respondeu o novo amo do Chile, que é porque admirava esses personagens. E que, ademais, eram fotos com dedicatória dos fotografados. Em seguida, Allende acrescentou, com gracejo irreverente, que não tinha ali uma foto de Jesus Cristo, ao lado das dos líderes comunistas, porque Este não lha oferecera com dedicatória.

* * *

Como bom marxista, Allende é oficialmente ateu. Como ateus são também os ministros marxistas que ocupam vários postos, e dos melhores, em seu gabinete.

E como vê ele a Igreja? Como uma entidade inidônea, que “virou a casaca”, e pactua hoje com doutrinas contra as quais ontem lançava categóricas condenações. Eis suas palavras textuais, em entrevista ao “New York Times”:

Repórter: “Na qualidade de maçom, considera a Igreja Católica elemento potencial de oposição ao seu governo?”

Allende: “Creio que está perfeitamente ciente de que as velhas rixas entre a maçonaria e a Igreja estão superadas. O que é mais importante, a Igreja Católica sofreu mudanças fundamentais.

“Durante séculos, a Igreja Católica defendeu os interesses dos poderosos. Hoje, depois de João XXIII, ela se orientou para transformar o Evangelho de Cristo em realidade, pelo menos em alguns lugares.

“Tive ocasião de ler a Declaração dos Bispos em Medellín, e a linguagem que usam é a mesma que usamos desde nossa iniciação na vida política, há 30 anos. Naquela época, éramos condenados por tal linguagem que hoje é empregada pelos Bispos católicos.

“Acredito que a Igreja não será fator de oposição ao governo da Unidade Popular. Ao contrário, será um elemento a nosso favor, porque estaremos tentando converter em realidade o pensamento cristão. Além disso, haverá a mais total liberdade de crença religiosa”.

* * *

Como se vê, dificilmente poderão ser mais sombrias as perspectivas que tem diante de si o país andino. Daí a evasão de capitais do Chile para o exterior. Daí também o êxodo contínuo de chilenos. Só em Buenos Aires há, segundo consta, 50 mil refugiados.

Em meio a tantas e tão fundadas apreensões, uma figura há, inteiramente despreocupada, serena, festiva. É a do Cardeal Silva Henriquez, Arcebispo de Santiago.

Antes das eleições, declarou ele, publicamente, ser lícito aos católicos votar em candidatos marxistas: ou seja, em Allende.

Logo após a confirmação da vitória deste último pelo Congresso, o purpurado se apressou em visitar o futuro presidente, levando-lhe de presente uma Bíblia. Na ocasião, declarou aos jornalistas que fazia votos pelo êxito da gestão do marxista vencedor. E acrescentou que recomendava aos católicos que apoiassem o novo governo. Ou seja, que cooperassem na aplicação das medidas desejadas pelos comunistas como meio de suma importância para a implantação de seu regime ateu e radicalmente igualitário.

Não ficou nisto o Cardeal. No dia da posse de Allende, celebrou ele o Santo Sacrifício da Missa e cantou um “Te Deum” em ação de graças pela ascensão do novo governo. O Presidente ateu e uma farta coleção de pastores protestantes assistiam à augusta cerimônia católica.

Tudo terminou — ao que parece — sem que ninguém risse nem chorasse. O cardeal ainda disse que Allende teve um “gesto delicado” ao ter consentido em assistir às cerimônias, entretanto, para este, vazias de qualquer conteúdo real.

* * *

Se há um direito que tenho, como homem e como católico, tão essencial ou mais ainda do que o de viver, é o direito de refletir sobre estes fatos, e dizer de público o que sobre eles penso.

— O que penso? Antes de tudo, que isto forma uma sequela de imensos escândalos. O que é feito de todas as condenações dos Papas, de Pio IX a Pio XII, contra o comunismo? Como, de um momento para outro, e sem mais explicações, foram postos de lado esses atos solenes, graves, repetidos? E como o Purpurado chileno oferece hoje o Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo para agradecer, como fato lícito e auspicioso, a vitória de uma corrente por tantos papas, qualificada de satânica, imoral e subversiva? Não é isto um sacrilégio? Não é também um sacrilégio cantar “Te Deum” para agradecer a Deus esta vitória do ateísmo?

Se em nome de uma aliás mal entendida disciplina, eu devesse admitir que tais atos não são sacrílegos, teria a sensação de que todas as leis da lógica nada mais valem. E que o absurdo passou a ser a única realidade. Felizmente, a tal ato de disciplina não me obriga nenhuma lei da Santa Igreja.

Vou adiante em minhas elucubrações. O leitor não julgava, há um ano atrás, impossível que fatos como estes ocorressem no Chile? Claro que sim. Entretanto, ei-los. Agora pergunto: fatos destes parecem impossíveis ao leitor, no Brasil de hoje? Quem nos garantirá que, dias mais dias menos, aqui não ocorram também?

* * *

Não adianta assustar-se, gemer, choramingar ou protestar. A voz da realidade aí está.

Mas qual a utilidade de artigo tão rudemente franco? perguntará alguém. — É persuadir os leitores de que em nossos tristíssimos e turvíssimos dias, pode ocorrer que o pastor entregue o rebanho ao lobo. O rebanho, isto é, não um homem ou um punhadinho de homens, o que seria infinitamente triste. Mas um país inteiro.

E que, neste caso, a fidelidade à Igreja e ao país consiste em não seguir o mau pastor.

* * *

Li, há muitos anos, no “Osservatore Romano”, um fato que me vem agora à memória. Quão oportuno é lembrá-lo...

Anos após a implantação do regime comunista na Rússia, numa igreja católica cheia de fiéis, um sacerdote celebrava a Santa Missa.

Ao Evangelho, o celebrante subiu ao púlpito. Estava pálido e cambaleante. Disse que daquele momento em diante se passaria para o comunismo, que por isto iria interromper a missa, tirar a batina e deixar o templo. E convidou os fiéis a fazerem o mesmo. Desceu em seguida os degraus do púlpito, e se afundou pela sacristia, presumivelmente rumo à porta dos fundos.

Ocorreu então um dos mais belos fatos da História da Igreja em nosso século. Todos os fiéis se levantaram e, à uma, cantaram o Credo. O mau pastor partira. Eles não. Naquela localidade, a Igreja continuava a viver. E com que sobrenatural pujança!

Transcrito da “Folha de S. Paulo” de 8/11/1970