Conclusão da pág. 4
O nacionalismo argentino, uma incógnita
filosófico, econômico, social, político e cultural, depois chamado nacionalismo. Duas correntes convergentes vieram então dar corpo a todo um movimento de ideias e tendências; podiam ser comparadas às duas asas de um mesmo pássaro, muito adequadas a facilitar-lhe o voo. Eram o "nacionalismo político" e o "nacionalismo católico".
Os "Cursos de Cultura Católica", fundados em 1922 por Tomás Casares, César Pico e Atilio Dell'Oro Maini, representaram a ala católica do nacionalismo, enquanto a revista "La Nueva República", lançada em 1927 pelos irmãos Júlio e Rodolfo Irazusta, o mesmo César Pico e outros, veio a constituir a ala política do movimento. Entre os dois grupos não havia antagonismo, mas, ao contrário, uma colaboração intensa.
Os redatores da "Nueva República", mais ou menos adeptos de Maurras e Mussolini, vinham dos mais variados quadrantes ideológicos, inclusive o socialismo. Nos "Cursos de Cultura Católica" César Pico desenvolvia uma série de palestras, que receberam o nome de "Convívio", nas quais expunha uma síntese de autores modernos — sobretudo Ortega y Gasset — e São Tomás de Aquino.
No final da década de 30 o nacionalismo católico foi-se politizando paulatinamente e colaborou com a ala política e com grupos heterogêneos na preparação do clima que propiciaria o advento da revolução de 1943, com a qual se abriria a era peronista. Iniciou-se com esta uma nova época na história do nacionalismo.
NA ERA PERONISTA
Esta segunda época foi marcada pela politização cada vez maior do nacionalismo católico, através do movimento "Restauración", fundado em 1937, e do diário "Nueva Política", lançado em 1940, ambos por iniciativa de elementos dos "Cursos".
Enquanto no plano interno o movimento, em seu conjunto, colaborava cada vez mais com o peronismo, no plano internacional ia-se identificando com a causa do Eixo nazifascista. Logo que Perón ascendeu ao poder, vários líderes do nacionalismo receberam postos de alguma importância na Magistratura e nas Universidades. Quando o demagogo justicialista começou a atacar a Igreja, os nacionalistas foram-se distanciando dele e até mesmo conspiraram para a sua derrubada.
A TERCEIRA FASE
Depois da queda de Perón, os nacionalistas galgaram altas posições no efêmero governo do General Lonardi. Nas eleições presidenciais de 1958 apoiaram Frondizi, ex-militante de organizações paralelas do comunismo. Ganhando Frondizi, vários nacionalistas vieram a ocupar cargos importantes, dos quais foram apeados em 1962 com a deposição do Presidente. Nesse governo o movimento mostrou ainda mais seu oportunismo e seu caráter dialético.
Para as eleições presidenciais de 1963 foi intensa a atividade política do nacionalismo. Suas duas alas dedicaram-se à constituição de uma "Frente Nacional e Popular", da qual o peronismo seria ingrediente fundamental.
Com o advento do regime Ongania coincide o impulso internacional a favor de um desenvolvimentismo fundado em pressupostos relativistas e materialistas, que considerava ultrapassada a época das disputas doutrinárias e conduzia a um sincretismo ideológico. O nacionalismo, longe de combater esse sincretismo, entregou-se a ele. Essa é a sua atitude atual, que revela o fundo relativista que sempre o animou.
Doutrina aparente esconde a doutrina real
O nacionalismo sempre teve uma doutrina dupla. A causa disto está em que, desde suas origens, ele se nutriu da força do Catolicismo (que renascera no princípio do século, a partir do pontificado de São Pio X e das aparições de Nossa Senhora de Fátima), o que o obrigou a falar de um modo que o tornasse aceitável para o povo fiel. Mas simultaneamente sofria a influência decisiva de autores e movimentos europeus que lhe serviam de inspiração. Isto deu origem a uma doutrina aparente e uma doutrina real na temática nacionalista. Ou seja, uma doutrina que se utilizava para fins externos, e outra que na realidade se professava.
Os nacionalistas levantaram-se de início contra as mentiras da "Legenda Negra", que procurava denegrir a obra civilizadora da Espanha católica e tradicional. Ao mesmo tempo, contra o ceticismo liberal, afirmavam a existência de uma Verdade absoluta; contra o relativismo moral, professavam a sujeição do homem à Lei de Deus, eterna, imutável. No campo social, opunham-se à maré do igualitarismo e pregavam a necessidade de hierarquia, colocando-se assim intransigentemente contra o socialismo e o comunismo. No campo político, cansados da demagogia partidarista, proclamavam a urgência da restauração da autoridade, e, junto com ela, a dos corpos intermediários, através do corporativismo.
Contudo, por falta de originalidade para continuar a tradição hispânica nos tempos atuais e por falta de sólidos princípios católicos, deixaram-se levar sistematicamente pela última moda dos movimentos europeus, a começar pelo fascismo. Esta forma de snobismo levou-os a sustentar doutrinas opostas ao ideal que anunciavam inicialmente. Adotaram o evolucionismo hegeliano, que lhes serviu para justificar seu próprio evolucionismo, o qual pode enunciar-se do seguinte modo: há uma constante oposição entre o país real e o país legal; dessa contradição resulta uma crise, da qual surgirá o Estado nacionalista, qualitativamente distinto do Estado liberal, mas também diferente do regime hispânico da época colonial. Esse evolucionismo dialético, adotado com tino estratégico, serviu aos nacionalistas para seus fins políticos. Como resultado, tiveram o relativismo, que foi a constante que nunca abandonaram, e a pista por onde correram sempre, deslocando-se cada vez mais da direita para as posições esquerdistas.
A mentalidade dialética do nacionalismo apoia-se sobre um princípio implícito: a Verdade absoluta é limitada e pouco vital; as realidades relativas, pelo contrário, são muito mais numerosas e têm muita influência na vida. Daí a grande importância que ele atribui ao "histórico". A dialética dos nacionalistas distingue-se da dos comunistas porque, enquanto para estes a natureza física é a única realidade, os primeiros creem no espírito; para eles a evolução da História é uma manifestação da Providência de Deus. Sendo assim, acompanhar e servir a evolução é realizar a vontade de Deus. Eles dizem deixar a salvo da evolução aquilo que chamam, de um modo vago e impreciso, o "fundamental", pelo que suas reverências ao absoluto não lhes entravam a marcha evolucionista.
A doutrina social, política e econômica do nacionalismo assemelha-se ao maurrasianismo e ao fascismo. O homem é um ser social; o individualismo é um grave mal que destrói a nação: uma elite vigorosa deve reagir contra isto e impor a ditadura. A economia deve ser rigidamente controlada pelo Estado; este implantará a reforma agrária. As corporações de Estado reunirão todas as classes produtoras, tornadas antagônicas pelo capitalismo liberal. A Igreja é uma parte da nação com a qual se deve entrar em uma relação de paridade, por meio de uma Concordata; deve-se dar à educação um conteúdo católico.
Estas posições são de fundo maurrasiano, porque não reconhecem à Igreja sua superioridade sobrenatural.
Em política internacional o nacionalismo apregoa uma conduta "independente", que não vincule a Argentina a nenhum dos "supergrandes". Ter relações com todos os países do mundo, qualquer que seja seu regime político, comerciar com quem parecer conveniente, e formar um bloco americano de nações em via de desenvolvimento.
Uma incógnita em constante evolução
A terceira parte do livro é dedicada a uma extensa descrição da "Evolução doutrinária do nacionalismo através de suas três épocas históricas". São mais de cem páginas (pp. 121-244) de sólida e abundante documentação, que demonstra à saciedade as teses apresentadas na segunda parte da obra. Os textos citados são mais de quinhentos, tomados de livros e de artigos de imprensa, de autoria das mais conhecidas personalidades nacionalistas.
Depois de analisada a doutrina do nacionalismo chegam os Autores à conclusão de que, "sob a aparência de uma posição ortodoxa, católica e hispânica, antiliberal e anticomunista, oculta-se um relativismo dialético, ansioso de acompanhar a moda intelectual, política, social e econômica do mundo em que vivemos".
Apontam, a seguir, "uma constante na trajetória tão dialeticamente inconstante do nacionalismo". Consiste ela em que este, "desde suas remotas origens até nossos dias, reivindica infatigavelmente uma "Argentina real" por oposição a uma "Argentina irreal". No Conceito de "Argentina real" a palavra "Argentina" é obviamente clara. Não o é a palavra "real" (p. 245).
Mostram então os Autores o que os nacionalistas entendem por "Argentina real": "uma Argentina em constante mutação evolutiva e dialética, que rompe sua identidade de alma com a Argentina de outrora" (p. 245). E não a Argentina tradicional, coerente hoje em dia com a personalidade nacional que nela se modelou desde os tempos da colônia, como um homem que conserva a mesma identidade tanto na infância como na idade madura.
Ora, as bases nacionalistas entendem por "real" exatamente este último conceito, que se opõe ao conceito dialético professado pelas cúpulas do movimento. E daí vem uma contradição entre o significado ideológico do nacionalismo ao nível de dirigentes e as convicções e aspirações doutrinárias e históricas de sua base.
Finalizando, os membros da Comissão de Estudos da Sociedade Argentina de Defesa da Tradição, Família e Propriedade põem algumas questões diante dos jovens de boa formação cristã e verdadeiramente patriotas que, entretanto, confiam ainda no nacionalismo:
"1 — Que posição adotará o nacionalismo, caso chegue à Argentina a onda de reformas de base, propiciadas pela esquerda em geral, e mesmo pelos Estados Unidos através da Aliança para o Progresso e outros programas de ajuda econômica?"
"2 — Que atitude tomará o nacionalismo no caso de se desatar a ofensiva de luta de classes que está em gestação em ambientes progressistas católicos, para a implantação de um regime socialista cristão, no estilo dos Sacerdotes do Terceiro-Mundo?"
"3 — Que atitude tomará o nacionalismo como corrente cultural, diante do fato do progressismo que vai invadindo temivelmente certos meios católicos, extravasando daí para todo o ambiente do país?" (pp. 246-247).
E os Autores antecipam a resposta que se depreende naturalmente do que foi visto a respeito da doutrina e da história do movimento nacionalista: a atitude deste será de aplauso.
Põem, finalmente, uma quarta pergunta — a qual deixam sem resposta — esclarecendo que ela é apenas uma das que se poderiam formular com relação a hipóteses mais ou menos remotas mas que de um momento para outro são capazes de concretizar-se em perigos próximos:
"Que atitude tomará o nacionalismo ante a política de coexistência com o comunismo, dado que as perspectivas parecem apresentar como possível (e Roger Garaudy, o conhecido "técnico" comunista da aproximação do comunismo com a Igreja, está-se ocupando disso no momento) uma distensão da guerra fria, sob a condição de que os países ocidentais se socializem e os comunistas — na aparência — admitam em algo o princípio da livre iniciativa e da propriedade privada?" (p. 247).
O livro encerra-se com uma súplica a Nossa Senhora de Luján, "Mãe de Deus e Rainha da Argentina", para que obtenha para os Autores e para todos os que desejam o triunfo do seu Imaculado Coração, as graças necessárias para lutarem eficazmente na preparação desse dia glorioso.
ESCREVEM OS LEITORES
Dr. Aurelídio R. de Souza, São Domingos do Prata (MG): "Estou remetendo um cheque para renovação da minha assinatura de CATOLICISMO, jornal que tenho na mais alta estima, pois faz ver a todos como deve ser um verdadeiro católico. Concordo plenamente com todos os seus pontos de vista. Que Nossa Senhora continue dando a sua proteção a tão nobre ideal".
Sr. Paulo da Costa Machado, Tatuí (SP): "Não renovei a minha assinatura, [...] pelas seguintes razões: 1.a) não concordo com o que o citado jornal [CATOLICISMO] escreve, digo em partes, porque há coisas que é aproveitável. 2.a) é jornal muito caro além de vir só uma vez no mês (Cr$ 10,00) quando temos semanários como Lar Católico, Cr$ 15.00 o Santuário de Aparecida, Cr$ 10,00. São Jornais muito mais instrutivos, explicam as missas de todos os domingos e o que eles escrevem estão dentro do Concílio Vaticano II, o seu jornal só vive acusando os outros padres concitando os leigos à revolta. Eu peço aos senhores que leiam os documentos do Concílio Vaticano II, e vejam que a Igreja está todinha dentro da Bíblia".
Sr. [assinatura ilegível], bibliotecário da Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, São João del Rei (MG): "Sobre o jornal CATOLICISMO quero manifestar-me como Bibliotecário, procurando colher as opiniões que ouço dos seus leitores.
Antes de tudo uma admiração pela sua impressão, apresentação, pela sua constância, idealismo, etc.
[...] As críticas mais comuns são:
Jornal da direita, extremista, saudosista, tradicionalista, incapaz de compreender a evolução, visão estreita da realidade, pontos de vista muito limitados, incapaz de compreender o adversário, de se colocar no seu lugar.
Sempre houve grupos extremistas que [...] vivem sobre o medo constante de que estes males [cuja vinda anunciam] acabarão com a Igreja e sociedade. A Igreja Católica estava também nesta linha: só condenava, só ela acertava, só ela tinha a verdade, tornou-se uma seita. O Concílio abriu a Igreja e nós temos uma série de atitudes mais humanas e mais evangélicas. Não que tudo esteja certo, pelo contrário, [Ela] procura ter a humildade de bater no peito. O CATOLICISMO não parece ter encontrado o espírito mais profundo destas transformações.
Este medo se alastra sobre o nome Comunismo. Hoje [este] é diferente de anos atrás, está em constante evolução como todas as coisas humanas. Muitas vezes atribuímos os erros dos avós aos netos [...].
Muitas vezes fazemos a caricatura da realidade exagerando os erros [...]
A posição conservadora é muito válida, [...] pois é um fenômeno humano. [...] Mas também os conservadores têm que evoluir [...]. A pessoa está mais preocupada em defender seus conteúdos dogmáticos do que analisar a realidade. É um médico que sabe muito sobre doença e não conhece o doente [...].
Agradeço esta oportunidade de manifestar a nossa opinião. É uma abertura do jornal, muito válida que poderá ser útil a todos os leitores".
■ CATOLICISMO sente-se feliz em se saber criticado por pessoas que adotam posições evolucionistas, pretendem que a Igreja Se transformou numa seita e julgam que o comunismo "hoje é diferente de anos atrás".
Prof. José de Alencar Feijó Benevides, Macapá (Território do Amapá): "[...] esse excelente jornal CATOLICISMO, intrépido paladino da genuína fé católica".
Revmo. Pe. Frei Teodoro de A. Chaves, Criciúma (SC): "Recebo com verdadeira alegria cada número do mensário, sempre, ao menos para mim, portador de uma mensagem clara e positiva sobre os problemas que agitam o mundo de hoje.
Vejo com alegria que o jornal não se impressiona devido a seus contestadores e adversários: publica-lhes abertamente as cartas com reparos e acusações. Muito bem! Com isso a Redação faz um juízo positivo dos seus leitores, que julga bastante inteligentes e instruídos, para saberem distinguir e joeirar o trigo do joio.
O jornal apoia a Sociedade TFP, e vice-versa. Duas forças para a difusão da Verdade, recebida a apregoada sem meios-termos e sem respeitos humanos.
O que acho admirável são esses grupos de moços, que se consagram corpo e alma às causas do bem familiar e social, civil e religioso do nosso povo; deste povo maravilhoso, portador da Verdade católica e rico em tudo o que é humano. Mas, também, povo insidiado por falsos profetas, no campo religioso, e por pregoeiros de ideologias perversas e dissolventes.
Consola saber que há Pastores vigilantes, como o de Campos, e um Exército consciente e decidido, para desmascarar os falsos profetas e abrir os olhos dos que, em sua ingenuidade, seriam arrastados como récuas".
Calicem Domini Biberunt.
PROGREDIU RAPIDAMENTE A AMICIZIA DE FLORENÇA
Fernando Furquim de Almeida
Apesar de sobrecarregado de trabalhos, em 1802 o Padre Virginio julgou o momento oportuno para pôr em prática os seus novos planos sobre as Amicizie da Itália. Decidiu ir a Florença, onde as relações que cultivara nos círculos italianos que frequentavam o salão da Princesa Rospigliosi, em Viena, já tinham preparado o ambiente para a formação de uma Amicizia. Como não podia demorarse, escreveu ao Padre Lanteri propondolhe um encontro naquela cidade. Infelizmente o Servo de Deus não pôde deixar Turim, e os dois amigos, ao que parece, não se viram, depois de tantos anos de separação.
Em Florença, o Padre Virginio procurou o Prior da Ordem Militar dos Cavaleiros de Santo Estêvão, Leopoldo Ricasoli Zanchini, que provavelmente já conhecera em Viena. Entusiasmado pelo gênero de apostolado a que era convidado, e cativado pelo zelo e pela personalidade do Padre Virginio, o Prior Ricasoli tomouo como diretor espiritual e pôs o seu palácio à disposição dele. No Palácio Zanchini realizaramse as primeiras reuniões da Amicizia em Florença. Nele se instalaram depois a biblioteca a as outras atividades a que se dedicavam os AmigosCristãos.
Cidade célebre pelo seu gosto artístico, onde as diversas formas de beleza são cultivadas em todos os meios sociais, famosa pelos seus literatos, e que poucos anos antes obrigara a corte do GrãoDuque Leopoldo a se retirar para Pisa, em virtude da oposição do povo, nobreza e clero à política revolucionária que aquele príncipe tentara impor à Toscana, Florença era um campo muito promissor para o apostolado contrarevolucionário. Com o tato e o discernimento que possuía, o Padre Virginio, para tirar o máximo proveito dessas boas tendências, deixou também fundada uma academia literária, a "Conversazione Cristiano Cattolica", que se reunia periodicamente para ouvir conferências de católicos especialmente convidados para falarem sobre os mais variados temas, considerados à luz da doutrina da Igreja.
Não podendo demorarse muito, logo depois de instalada a Amicizia o Padre Virginio voltou para Viena. Não se sabe se passou por Turim, mas entre os papéis do Venerável Lanteri se encontraram anotações suas sobre o estado das Amicizie italianas e as possibilidades de fundá-las em outras cidades da península, bem como a indicação de pessoas que poderiam ser procuradas com proveito para o apostolado. É certo também que o Padre Virginio propôs ao Padre Lanteri que visitasse todas essas cidades para conhecer pessoalmente os novos membros das Amicizie e ao mesmo tempo constatar o estado em que estas se encontravam. Desde então o Padre Lanteri passou a dirigir o movimento na Itália.
A Amicizia de Florença progrediu rapidamente. Foi nela que o Marquês Cesare Taparelli d’Azeglio deu início à sua participação intensa nas obras do Padre Diessbach, até se firmar como um dos principais esteios das Amicizie italianas. Ele já trabalhara com o Padre Lanteri em Turim, mas os seus deveres militares e políticos tinham-no impedido de se entregar completamente ao apostolado. Quando o Piemonte foi incorporado à República Francesa, não quis continuar a viver em sua cidade natal sob o domínio do conquistador da pátria, e retirouse para Florença em exílio voluntário. Massimo d’Azeglio, em seu livro "I miei ricordi", descreve os ambientes florentinos frequentados por sua família, pondo em relevo a amizade do pai com Vittorio Alfieri, o qual, já velho, se aproximava da Igreja depois de ter levado uma vida aventureira e sem religião. Nos salões de Alfieri reuniamse os literatos italianos atraídos pela sua fama, e o Marquês Cesare d’Azeglio teve nesse ambiente a possibilidade de conhecer bem as consequências devastadoras da disseminação dos erros revolucionários e a necessidade de um apostolado que os combatesse com eficiência.
O Prior Ricasoli e o Marquês d’Azeglio tornaramse os líderes da Amicizia florentina e puderam convencer os outros membros desta da conveniência de lançar uma revista. Sendo poucos os colaboradores de que podiam dispor, resolveram que o novo órgão publicaria traduções de bons artigos estampados nos periódicos católicos do exterior, e apenas um ou outro artigo original. A 30 de agosto de 1803 saiu o primeiro número, com o título de "L’Ape" e o subtítulo de "Scelta d’opusculi litterari e morali estratti per lo piú da fogli periodici oltramontani". Desde esse primeiro número "L’Ape" apresentou regularmente artigos do Marquês d’Azeglio, com o pseudônimo de Ottavio Ponzoni.
Nesse mesmo ano o Padre Lanteri pôde fazer a viagem que lhe fora sugerida pelo Padre Virginio. Visitou primeiro Milão, onde a Amicizia estava quase extinta (porque seu principal responsável, o Conde Perturati, era muito fiel à Casa d’Áustria, a perseguição revolucionária desencadeada contra ele atingira também e prejudicara bastante o apostolado que desenvolvia, até que acabou sendo preso e deportado). O Padre Lanteri reergueu a associação agonizante, com o tato e a habilidade que sempre demonstrava, e ela voltou a ser o que fora antes das vicissitudes provocadas pela Revolução Francesa.
O êxito da Amicizia em Florença demonstrava como era oportuna a existência de "L’Ape". O Padre Lanteri, aproveitando sua viagem por outras cidades, procurou angariar assinaturas e colaboradores para a revista. Em Parma residia então o jesuíta espanhol Juan Andrés, o qual tinha grande renome nos meios literários, inclusive por ter escrito uma espécie de enciclopédia literária em sete volumes "Dell’origine a stato attuale d’ogni letteratura" então muito apreciada. O Padre Lanteri foi procurálo, e tentou convencêlo a ajudar "L’Ape". Não foi bem sucedido. O Padre Andrés declarou que não via nada de interessante nos dois primeiros números da revista, que ela não passava de uma coletânea de traduções de artigos vindos a lume em outros jornais, e que esse tipo de publicações não encontrava leitores. Recusouse mesmo a assinála. O Padre Lanteri não desanimou. Foi à casa do Conde Cesare Ventura, que lhe fez as mesmas objeções, mas se mostrou mais aberto do que o Padre Andrés, lamentando ter recebido apenas o primeiro número e revelando mais curiosidade em saber quem era Ottavio Ponzoni, cujo artigo lera e apreciara muito. No fim da conversa, estava mudado e prometeu tentar convencer o Padre Andrés a auxiliar a revista.
Foi, talvez, resultado desses contatos do Padre Lanteri a mudança de orientação de "L’Ape", que pouco a pouco foi substituindo as traduções por artigos originais de vários escritores da Península, alguns de nomeada (inclusive, mais tarde, o próprio Padre Juan Andrés).
A Amicizia de Florença editava também anualmente um almanaque, o "Buon Capo d’Anno", que teve maior difusão do que a revista, por ser de conteúdo menos elevado, atingindo assim um público mais numeroso.
Infelizmente, em 1806 as contingências políticas obrigaram o Marquês d’Azeglio a voltar para Turim, com o que "L’Ape" perdeu o seu principal animador. Talvez seja essa a razão do brusco desaparecimento da revista, continuando a Amicizia de Florença, no entanto, a publicar o almanaque.
O desaparecimento de "L’Ape" não prejudicou o crescimento do sodalício florentino. O Prior Ricasoli, sempre entusiasta, manteveo em ascensão, apesar da adversidade dos tempos, preparando os seus membros para os gloriosos episódios em que se veriam envolvidos mais tarde, durante o cativeiro do Papa Pio VII em Savona.
NOVA ET VETERA
SERÁ BOM O COMUNISMO QUE NÃO SEJA ATEU E BRUTAL?
J. de Azeredo Santos
Tiveram larga repercussão em todo o Brasil as afirmações do Sr. General Humberto de Souza Mello, Comandante do II Exército, o qual, discursando na inauguração do ano letivo do CPOR de São Paulo, verberou a atuação do Clero esquerdista e aludiu a dois Arcebispos que "preconizaram para nossa pátria a adoção do regime comunista do tipo existente na Iugoslávia e na Checoslováquia". O Centro de Informações Ecclesia — CIEC-SP, organismo oficial da Arquidiocese de São Paulo, apressou-se a dar difusão a uma nota em que procura afanosamente refutar as oportunas considerações do General.
A controvérsia entre o Comandante do II Exército e o Arcebispado paulopolitano mereceu brilhantes comentários do Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em dois de seus artigos semanais para a "Folha de São Paulo". Hoje queremos focalizar apenas este tópico da nota do CIEC: "Para a Igreja, de feito, o comunismo soviético, chinês, iugoslavo ou checo, continua sendo filosoficamente ateu e mau, politicamente ditatorial e economicamente discutível. Assim como o capitalismo, ou neocapitalismo, também, é um sistema materialista, gerador de inegáveis injustiças e diferenças entre indivíduos e povos" ("O São Paulo", de 6 de março p.p.).
Estamos em presença de chavão há muito tempo em voga nos meios da esquerda-católica e que, mil vezes refutado, volta sempre ao proscênio, sustentando a distinção especiosa segundo a qual o comunismo e o socialismo estariam condenados enquanto filosofia de vida, ou enquanto ditatoriais e inimigos da Igreja, sendo, porém, aceitáveis enquanto mero sistema ou regime econômico. Falácia semelhante àquela que afirma que só são condenáveis o comunismo e o socialismo quando impostos por meios violentos, sendo perfeitamente aceitáveis quando implantados por "evolução", isto é, por via eleitoral ou legislativa.
Acoberta a doutrina social da Igreja semelhante distinção? Vejamos. Diz Leão XIII — e com ele Pio XI — que "não pode existir capital sem trabalho nem trabalho sem capital" ("Rerum Novarum", 15). Portanto, de acordo com a organicidade da vida social, esses dois elementos se associam livremente por razões de mútuo interesse. E diz também o Pontífice da Ação Social: "Na verdade, como é fácil de compreender, a razão intrínseca do trabalho empreendido por quem exerce uma arte lucrativa, o fim imediato visado pelo trabalhador, é conquistar um bem que lhe pertencerá como coisa própria. [...] Portanto, se, reduzindo as suas despesas, chegou a fazer algumas economias, e se, para assegurar a sua conservação, as emprega, por exemplo, num campo, torna-se evidente que esse campo não é outra coisa senão o salário transformado: o terreno assim adquirido será propriedade do artífice com o mesmo título que a remuneração do seu trabalho. Mas, quem não vê que é precisamente nisso que consiste o direito de propriedade mobiliária e imobiliária?" ("Rerum Novarum", 4).
Sustenta também a doutrina social da Igreja como princípio básico a desigualdade social: "O primeiro princípio a pôr em evidência é que o homem deve aceitar com paciência a sua condição: é impossível que na sociedade civil todos sejam elevados ao mesmo nível. É, sem dúvida, isto o que desejam os socialistas; mas contra a natureza todos os esforços são vãos" ("Rerum Novarum", 14).
Efetivamente, dizem os comunistas: todos os patrões e proprietários são exploradores, ladrões da "mais valia", escravizadores de quem trabalha. O dogma revolucionário da igualdade preceitua que se extinga essa classe. A cada um segundo sua capacidade, eis o que quer o socialismo. Não basta, porém, implantar a sociedade tecnocrática em que reinará a competência profissional em vez dos privilégios de sangue ou de fortuna: essa é uma fase inicial, provisória. Virá o dia em que se poderá estabelecer: a cada um segundo sua necessidade. Eis o comunismo plenamente realizado. Entretanto, visto não se achar a massa em condições de gerir seus próprios interesses, ainda está longe esse reino da completa anarquia, em que cada camarada se tornará seu próprio rei. Enquanto isto não acontece, por procuração da coletividade (que a nós mesmos nos outorgamos) nós, os membros do partido comunista, constituímo-nos no Estado totalitário e seremos assim os únicos patrões e os únicos proprietários: somos a ditadura do proletariado.
Ora, esse açambarcamento do poder econômico nas mãos do Estado comunista é coisa "discutível" à luz da doutrina social da Igreja, como quer o CIEC-SP, e com ele toda a esquerda-católica?
Os Soberanos Pontífices que se ocuparam do assunto têm invariavelmente afirmado que se trata de um erro monstruoso, o qual conduz à escravização da humanidade através da economia, — e dizem isso não exclusivamente em defesa dos patrões e proprietários de terras e de bens de produção, mas sobretudo em defesa dos economicamente mais fracos. Declara Leão XIII: "Assim, a conversão da propriedade particular em propriedade coletiva, tão preconizada pelo socialismo, não teria outro efeito senão tornar a situação dos operários mais precária, retirando-lhes a livre disposição do seu salário e roubando-lhes, por isso mesmo, toda esperança e toda possibilidade de engrandecerem o seu patrimônio e melhorarem a sua situação" ("Re-rum Novarum", 4). Mais ainda: "Por tudo o que Nós acabamos de dizer, compreende-se que a teoria socialista da propriedade coletiva deve absolutamente repudiar-se como prejudicial àqueles mesmos que se quer socorrer, contrária aos direitos naturais dos indivíduos, como desnaturando as funções do Estado e perturbando a tranquilidade pública. Fique, pois, bem assente que o primeiro fundamento a estabelecer para todos aqueles que querem sinceramente o bem do povo é a inviolabilidade da propriedade particular" ("Rerum Novarum", 12).
Convém acentuar que não se trata, aqui, da filosofia ateia do comunismo e do socialismo, que também é combatida pela Igreja, mas de seu aspecto puramente econômico.
Quanto a querer separar do socialismo e do comunismo a nota da violência, estamos diante de um intento impossível, pois ela é inerente ao sistema. Eis porque Pio XI diz que a sociedade como a vê o socialismo "não pode existir nem conceber-se sem violências manifestas" ("Quadragesimo Anno", 118). Com efeito, não será suma violência despojar o homem de seus direitos naturais? "Cumpre advertir ademais, diz Pio XI em outro Documento, que o comunismo reconhece à coletividade o direito, ou melhor, um ilimitado poder arbitrário de obrigar os indivíduos ao trabalho coletivo, sem atender a seu bem-estar particular, mesmo contra sua vontade e até com violência" ("Divini Redemptoris", 12).
Finalmente, afirmar que o regime econômico capitalista é também "materialista e gerador de inegáveis injustiças" constitui outro chavão do esquerdismo-católico que não encontra amparo no ensinamento social da Igreja. O comunismo é intrinsecamente perverso, diz Pio XI. O sistema econômico capitalista em si mesmo não é condenável, sendo passível de ser ordenado segundo a reta razão, declaram os Documentos pontifícios.
Quem tem a lucrar com tão profundo falseamento da doutrina social da Igreja senão o próprio comunismo?