A figura de D. Antonio de Castro Mayer já de há muito se impôs aos meios católicos não só de nosso País, como também do Exterior. Teólogo exímio e zelosíssimo Pastor, não há problema de nossa época — tão cheia, aliás, de problemas — que não tenha merecido de sua parte uma observação lúcida e atenta, uma diretriz segura e coerente.
A luminosa série de documentos que há vinte anos vem S. Excia. Revma. dando a público para a instrução e orientação de seus diocesanos — série inaugurada peta famosa Carta Pastoral sobre problemas do apostolado moderno, vertida para o francês, o espanhol e o italiano — vem agora juntar-se mais uma peça preciosa.
Na Carta Pastoral que "Catolicismo" se honra em publicar neste número, começa o egrégio Prelado por apresentar um panorama geral da crise por que passa a Igreja, cuja amplitude e gravidade levaram Paulo VI a referir-se a ela como um processo de autodemolição, uma vez que preconizado e promovido de dentro das próprias fileiras católicas.
Observa a respeito o ínclito Bispo Diocesano que não se trata de uma obra meramente destrutiva: ao mesmo tempo que se procura demolir a Igreja de Cristo, vai-se edificando uma Igreja nova, que outra coisa não prega e pratica que a religião do homem, egoísta e sensual.
Indaga a seguir S. Excia. Revma. quando teve início o processo descrito, e quais as suas causas. Lembra que, ao abrir o II Concilio do Vaticano, João XXIII propôs à Magna Assembleia uma adaptação na maneira de expor a doutrina cristã — sem mudar seu sentido e alcance — visando atrair o homem moderno de espírito reto. Ora, essa tarefa não é fácil, salienta o ilustre prelado, citando palavras de Paulo VI. Pela dificuldade do empreendimento, ou por uma concessão ao espírito do tempo, em largos meios eclesiásticos o esforço de adaptação — ou "aggiornamento" — foi muito além do que o Papa recomendara aos Padres conciliares e atingiu a própria substância da Revelação, a ponto de se poder perguntar o que resta hoje de intacto no Cristianismo.
Essa subversão doutrinária total resultou do fato de que os teólogos da nova Igreja abandonaram as fórmulas dogmáticas tradicionais, sob alegação de que estas seriam meras expressões de um sistema filosófico particular, a escolástica, e especialmente o tomismo (quando, na realidade, pertencem à filosofia de todos os tempos). Adotaram eles uma nova terminologia, conforme a filosofia moderna, e com a mudança das palavras mudaram-se os conceitos. A nova terminologia introduziu uma nova religião.
O remédio para o mal imenso, o Sr. Bispo Diocesano aponta-o na fidelidade à Tradição.
Traça a seguir S. Excia. Revma. normas práticas para a aferição das novidades que aparecem na Igreja: "Ajustam-se à Tradição? — São de boa lei. Não se ajustam, opõem-se à Tradição ou a diluem? — Não devem ser aceitas".
Por fim acentua o Sr. Bispo Diocesano a importância das práticas religiosas tradicionais - sobretudo o culto especial à Santíssima Eucaristia e a devoção a Nossa Senhora - como meios para preservar a fé e resistir à onda levantada pelos falsos profetas, opondo a ela um dique intransponível.
A segurança e a lucidez que caracterizam os escritos de D. Antonio de Castro Mayer tornam supérfluo realçar o quanto aproveitarão nossos leitores no estudo da presente Carta Pastoral.
CARTA PASTORAL
“AGIONARMENTO” E TRADIÇÃO
D. Antonio de Castro Mayer, por mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica, Bispo de Campos, ao Reverendíssimo Clero Secular e Regular, às Religiosas, à Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte Carmelo, às Associações de piedade e apostolado e aos fiéis em geral da Diocese de Campos, saudação, paz e bênção em Nosso Senhor Jesus Cristo.
† Antonio, BISPO DE CAMPOS
Zelosos cooperadores e amados filhos.
Em 21 de novembro do ano passado, em Circular dirigida aos Nossos caríssimos Sacerdotes, procuramos, uma vez mais, avivar neles e nos fiéis a vigilância contra os perigos, a que um falso "aggiornamento" expõe a integridade da Fé e a pureza dos costumes cristãos. Já em Documentos anteriores Nos ocupamos das tentações a que está exposta a vossa fé, amados filhos, e vos exortamos à vigilância e à oração. Na Circular de 21 de novembro, referiamo-Nos, especialmente, à reverência devida aos Santos Sacramentos, com que damos público testemunho de nossa fé nos mistérios que adoramos. Salientávamos, então, a importância da advertência, à vista de ser a fé indispensável para a salvação, pois, sem ela é impossível agradar a Deus —"sine fide impossibile est placere Deo" (Heb. 11, 6).
Em 8 de dezembro do mesmo ano passado, na ocorrência do quinto aniversário do encerramento do II Concílio do Vaticano, O Santo Padre, Paulo VI, em memorável Exortação, encarecia aos Bispos católicos do mundo inteiro a obrigação de cuidar da ortodoxia no ensino da doutrina católica.
Eis, pois, amados filhos, que não eram vãos os Nossos temores. Os males que receamos em Nossa Diocese, de fato, ameaçam Os fiéis do mundo todo. Aliás, não teria sentido Exortação pontifícia, dirigida a todos Os Bispos católicos da terra.
I
Dever que incumbe ao Bispo: velar pela ortodoxia
Dada a importância capital da matéria — a pureza da Fé — e a obrigação que Nos incumbe de bem apascentar as ovelhas de Cristo que Nos foram confiadas, julgamos de Nosso dever voltar ao assunto, comunicando ao Nosso rebanho as apreensões e admoestações do Papa. A tanto Nos convida o mesmo Pontífice, pois recorda que, a todos aqueles que receberam "pela imposição das mãos, a responsabilidade de guardar puro e intacto o depósito da Fé e a missão de anunciar o Evangelho sem desleixo" (AAS, 63, p. 99), impõe-se dar testemunho de sua fidelidade ao Senhor, na pregação, no ensino, no teor de vida.
De outro lado, ao direito imprescritível que tem o fiel de receber o ensinamento sagrado, corresponde nos Bispos "o dever grave e urgente de anunciar infatigavelmente a Palavra de Deus, para que o povo cresça na fé e na inteligência da Mensagem cristã" p. 100).
Profunda crise da fé no seio da Igreja
Semelhante ofício do múnus episcopal é hoje, mais imperioso, porque lavra no seio da Igreja uma crise generalizada e sem precedentes, como atesta a presente Exortação Apostólica, crise de autodemolição como a denomina o Papa, porque, conduzida por membros da Igreja, abala profundamente a consciência dos fiéis, pois os confunde no que eles têm de mais essencial na Religião.
Afirma, com efeito, Paulo VI, no Documento que estamos a apresentar, que hoje "muitos fiéis se sentem perturbados na sua fé por um acumular-se de ambiguidades, de incertezas e de dúvidas, que atingem essa mesma fé no que ela tem de essencial. Estão neste caso os dogmas trinitário e cristológico, o mistério da Eucaristia e da Presença Real, a Igreja como instituição de salvação, o ministério sacerdotal no seio do Povo de Deus, o valor da oração e dos Sacramentos, as exigências morais que dimanam, por exemplo, da indissolubilidade do matrimônio ou do respeito pela vida. Mais: até a própria autoridade divina da Escritura chega a ser posta em dúvida, em nome de uma "desmitização" radical" (p. 99).
Como vedes, amados filhos, a crise na Igreja não poderia ser mais profunda. Lendo as palavras do Papa, nós nos perguntamos: que ficou de intacto no Cristianismo? pois, se não há certeza sobre o dogma trinitário, mistério fundamental da Revelação cristã, se pairam ambiguidades sobre a Pessoa adorável do Homem-Deus, Jesus Cristo, se titubeia-se diante da Santíssima Eucaristia, se não se entende a Igreja como instituição de salvação, se não se sabe a que o Sacerdote entre os fiéis, nem há segurança das obrigações morais, se a oração não tem valor, nem a Sagrada Escritura, que há de Cristianismo, de Revelação cristã? Compreendemos que o Papa se sinta impelido a excitar a zelo dos Bispos, guardiães da Fé, sagrados para serem autênticos Pastores que apascentem com carinho, desvelo e firmeza, as ovelhas do Divino Pastor das almas.
Empenho par construir uma nova Igreja psicológica e sociológica
Tanto mais, quanto a Exortação do Santo Padre deixa entrever que há uma verdadeira conspiração para demolir a Igreja. É o que se deduz do trecho seguinte ao acima citado, no qual o Pontífice observa que às dúvidas, ambiguidades e incertezas na exposição positiva do dogma, somam-se o silêncio "sobre certos mistérios fundamentais do Cristianismo" e a "tendência para construir um novo cristianismo a partir de dados psicológicos e sociológicos" no qual "a vida cristã esteja destituída de elementos religiosos" (p. 99).
Há, pois, entre os fiéis, um movimento de ação dupla convergente para a formação de uma nova Igreja, que só pode ser uma nova falsa religião: de um lado, criam-se incertezas sobre os mistérios revelados; de outro, estrutura-se uma vida cristã ao sabor do espírito do século.
II
Ocasião e causas do atual crise religiosa
Como foi possível chegar-se a esse estado de coisas?
Paulo VI faz, a este propósito, duas considerações.
A primeira, sobre a finalidade especial que o Papa João XXIII propôs ao II Concílio do Vaticano, como aparece claramente na Alocução com que ele abriu a primeira Sessão do grande Sínodo: "Impõe-se que, correspondendo ao vivo anseio daqueles que se acham em atitude de sincera adesão a tudo o que é cristão, católico e apostólico, esta doutrina [cristã] seja mais ampla e profundamente conhecida e que as almas sejam por ela impregnadas e transformadas. É necessário que esta doutrina, certa e imutável e que tem de ser respeitada fielmente, seja aprofundada e apresentada de maneira a satisfazer as exigências da nossa época". E explicitando melhor o seu pensamento, prossegue o Papa Roncalli : "Uma coisa é, efetivamente, o depósito da Fé em si mesmo, quer dizer, o conjunto das verdades contidas na nossa venerável doutrina, outra coisa é o modo como tais verdades são enunciadas, conservando sempre o mesmo sentido e o mesmo alcance" (p. 101).
Deveria o Concílio, e, em consequência, o Magistério Eclesiástico, com o concurso dos teólogos, procurar aliar duas coisas: transmitir, sem engano ou diminuição, a doutrina revelada; e fazer um esforço por apresentá-la de modo a ser recebida, íntegra e pura pelos homens de nosso tempo. Entende-se pelos homens de espírito reto, "aqueles que se acham em atitude de sincera adesão a tudo o que é cristão, católico e apostólico", como diz João XXIII. Portanto pelos homens realmente desejosos de chegar à verdade; pois, aos que preferem as máximas deste mundo, e, por isso, rejeitam a cruz de Cristo, aplicam-se as palavras de São Paulo: é impossível uma união entre a luz e as trevas, entre a justiça e a iniquidade, entre Cristo e Belial (cf. 2 Cor. 6, 14 s.).
Eis em que consistia o "aggiornamento" do Papa Roncalli, na sua melhor interpretação: uma adaptação, na maneira de expor a doutrina católica, de sorte que possa atrair o homem moderno de espírito reto.
Tal empenho, nota Paulo VI, e é a sua segunda observação, não é fácil. Diz ele: "O magistério episcopal estava relativamente facilitado, numa época em que a Igreja vivia em estreita simbiose com a sociedade do seu tempo, inspirava a sua cultura e adotava os seus modos de exprimir-se; hoje, ao invés, é-nos exigido um esforço sério para que a doutrina da Fé conserve a plenitude do seu sentido e do seu alcance ao expressar-se sob uma forma capaz de atingir o espírito e o coração dos homens aos quais ela se dirige" (pp. 101-102 ) .
Característica da nova Igreja: a religião do homem
Ou pela dificuldade do empreendimento, Ou por uma concessão ao espírito do tempo, o fato é que, na execução do plano traçado pelo Concílio, em largos meios eclesiásticos, o esforço na adaptação foi além da simples expressão mais ajustada à mentalidade contemporânea. Atingiu a própria substância da Revelação. Não se cuida de uma exposição da verdade revelada, em termos em que os homens facilmente a entendam; procura-se, por meio de uma linguagem ambígua e rebuscada, mais propriamente, propor uma nova Igreja, ao sabor do homem formado segundo as máximas do mundo de hoje. Com isso, difunde-se, mais ou menos por toda parte, a ideia de que a Igreja deve passar por uma mudança radical, na sua Moral, na sua Liturgia, e mesmo na sua Doutrina. Nos escritos, como no procedimento, aparecidos em meios católicos após o Concílio, inculca-se a tese de que a Igreja tradicional, como existira até o Vaticano II, já não está à altura dos tempos modernos. De maneira que Ela deve transformar-Se totalmente.
E uma observação rápida, sobre o que se passa em meios católicos, leva à persuasão de que, realmente, após o Concílio, existe uma nova Igreja, essencialmente distinta dAquela conhecida, antes do grande Sínodo, como única Igreja de Cristo. Com efeito, exalta-se, como princípio absoluto, intangível, a dignidade humana, a cujos direitos submetem-se a Verdade e o Bem. Semelhante concepção inaugura a religião do homem. Faz esquecer a austeridade cristã e a bem-aventurança do Céu. Nos costumes, o mesmo princípio olvida a ascética cristã, e tem toda a indulgência para o prazer mesmo sensual, uma vez que, na terra, é que o homem há de buscar a sua plenitude. Na vida conjugal e familiar, a religião do homem enaltece o amor e sobrepõe o prazer ao dever, justificando, a esse título, os métodos anticoncepcionais, diminuindo a oposição ao divórcio, e sendo favorável à homossexualidade e à coeducação, sem temer a sequela de desordens morais, a ela inerentes, como consequência do pecado original. Na vida pública, a religião do homem não compreende a hierarquia, e propugna o igualitarismo próprio da ideologia marxista e contrário ao ensinamento natural e revelado, que atesta a existência de uma ordem social exigida pela própria natureza.
Na vida religiosa, o mesmo princípio preconiza um ecumenismo que, em benefício do homem, congrace todas as religiões, preconiza uma Igreja sociedade de assistência social e torna ininteligível o sagrado, só compreensível em uma sociedade hierárquica. Daí, a preocupação excessiva com a promoção social, como se a Igreja fosse um mero e mais vasto organismo de assistência social. Daí, igualmente a secularização do Clero, cujo celibato se considera algo de absurdo, bem como o teor de vida sacerdotal singular, intimamente ligado ao seu caráter de pessoa consagrada, exclusivamente, ao serviço do altar. Em liturgia, rebaixa-se o Sacerdote a simples representante do povo, e as mudanças são tantas e tais que ela deixa de representar adequadamente, aos olhos do fiel, a imagem da Esposa do Cordeiro, una, santa, imaculada. É evidente que o relaxamento moral e a dissolução litúrgica não poderiam coexistir com a imutabilidade do dogma. Aliás, aquelas transformações já indicavam mudanças nos conceitos das verdades reveladas. Uma leitura dos novos teólogos, tidos como porta-vozes do Concílio, evidencia como, de fato, em certos meios católicos, as palavras, com que se enunciam os mistérios da Fé, envolvem conceitos totalmente diversos dos que constam da teologia tradicional.
Importância da filosofia escolástica
A exortação de Paulo VI fala na dificuldade de obter a renovação da roupagem, em que se transmitissem aos homens de hoje os mistérios de Deus. E reconhece que foram as novas expressões para as verdades de Fé que trouxeram a angústia das incertezas, ambiguidades e dúvidas. Como foram os novos termos que facultaram, aos fautores de uma nova Igreja, a difusão de uma concepção nova e estranha da Religião cristã.
É de São Pio X a afirmação de que o abandono da escolástica, especialmente do tomismo, foi uma das causas da apostasia dos modernistas (Encíclica "Pascendi"). Após o Concílio Vaticano II, retorna a meios católicos o mesmo erro, a mesma ojeriza contra a filosofia que Leão XIII apelidou "singular presídio e honra da igreja" (Encíclica "Aeterni Patris").
De fato, um dos sofismas dos teólogos do novo cristianismo é acusar de aristotelismo a formulação dogmática tradicional, quando a Igreja não deve estar enfeudada a nenhum sistema filosófico. Acrescentam que semelhante formulação foi útil e válida ao seu tempo, ou seja, dentro do ambiente cultural da Idade Média. Hoje, porém, em meio cultural totalmente outro, ela já não tem valor. É antes nociva. Emperra o progresso dos fiéis, e é responsável pela descristianização do mundo atual. A Igreja, se quiser reviver, se quiser conservar sua perenidade, deve abandonar as fórmulas antigas e adotar outras, de acordo com a filosofia de hoje, o pensamento e a mentalidade contemporâneos. Só assim realizará Ela o ideal proposto por João XXIII e o Concilio Vaticano II. E, para não serem tidos como negligentes no seu papel de teólogos, passam à aplicação do princípio por eles mesmos estabelecido, e, às verdades reveladas vão dando novas formulações, dentro da concepção da filosofia contemporânea.
A falácia não é nova. Na antiguidade, outra coisa não fizeram os gnósticos que deturparam a Revelação, para enquadrá-la dentro da filosofia neoplatônica; no século passado, foi o hegelianismo que desvairou certos teólogos católicos. Os da nova Igreja desejam servir ao marxismo, existencialismo e às demais filosofias antropocêntricas, que pululam na angústia intelectual, característica de nossa época.
O vigor do tomismo
O engano, amados filhos, dos mentores do novo cristianismo está no esquecimento, a que votam uma verdade de senso comum, sem a qual é inexplicável o conhecimento, impossível a ciência e a própria vida humana. Semelhante verdade de senso comum está na base de toda filosofia, que não seja mera construção arbitrária do espírito. Consiste na persuasão de que o conhecimento é determinado pelo objeto externo. Ele é verdadeiro, quando apreende a coisa como ela é; e é falso, quando destoa da realidade. Podem variar os sistemas filosóficos. Eles serão mais ou menos verdadeiros, na medida em que suas conclusões atendam ao princípio de senso comum acima enunciado.
No acatamento a semelhante princípio, encontra o tomismo todo o seu vigor. Salienta-o Leão XIII, quando diz que o tomismo é uma filosofia "solidamente firmada nos princípios das coisas" (Encíclica "Aeterni Patris"). Ou seja, não é um sistema arbitrário, fruto da imaginação ou criação subjetiva do filósofo. Muito ao contrário, a filosofia tomista curva-se sobre a realidade, para apreendê-la como ela é.
Quando enuncia seus dogmas, servindo-se dos termos usuais na escolástica, a Igreja não o faz porque tais expressões sejam de um sistema filosófico particular, e sim, porque pertencem à filosofia de todos os tempos.
Relativismo religioso e modernismo nos teólogos da nova Igreja
Já não procedem do mesmo modo os teólogos da nova Igreja. Não estão eles atentos à realidade, cuja expressão pode variar desde que, porém, a apresente como ela é. O que eles desejam é satisfazer à mentalidade moderna. Para eles, a atualização da Igreja está na adaptação de sua doutrina a essa mentalidade. E como o homem moderno formou seu pensamento num ambiente cultural todo voltado às aparências, aos fenômenos, e, além disso, avesso à metafísica, a Igreja para não soçobrar, dizem os novos teólogos, precisa acomodar sua doutrina a semelhante maneira de pensar. Não se percebe como tal atitude possa fugir ao erro modernista, segundo o qual, o dogma evolui de um para outro sentido, de acordo com as necessidades culturais da época em que é enunciado.
Imutabilidade e desenvolvimento da verdade revelada
Lembremos que a verdade revelada se comunica ao mundo em linguagem humana. Tal linguagem, embora inadequada, não é mero simbolismo; ela deve dizer, objetivamente, o que é o mistério de Deus, ainda que o não manifeste na sua riqueza inesgotável. Eis a razão por que as fórmulas dogmáticas não podem evoluir mudando de significado. A fé, uma vez transmitida, diz São Judas Tadeu, o é "uma vez por todas" (vers. 3). Ela é imutável e invariável. Não padece adições, subtrações, ou alterações. Pode esclarecer-se, não pode transformar-se. É como um ser vivo que se desenvolve e aperfeiçoa, porém, na mesma natureza, que faz com que o indivíduo seja sempre o mesmo.
Importância das fórmulas dogmáticas tradicionais
Por isso, é de suma importância manter as fórmulas que, constituídas na Igreja, sob a assistência do Espírito Santo, a Tradição, e os Concílios fixaram, para exprimir com exatidão o conceito revelado. Semelhante linguagem dogmática pode sofrer alterações acidentais, não pode ser modificada de todo em todo.
Ora, o que, sob o signo do "aggiornamento", assistimos após o Concílio, em vários meios católicos, é o menosprezo tanto dos costumes como das fórmulas tradicionais. Demos um ou outro exemplo.
O Concílio de Nicéia, depois de anos de lutas contra os arianos, fixou, na palavra consubstancial, o conceito da unidade de essência das Três Pessoas Divinas. Hoje, em certos meios católicos, aquele termo é conscientemente abandonado. Daí, a incerteza, a dúvida que o Papa lamenta sobre os dogmas da Santíssima Trindade e do Divino Salvador. O Concílio de Trento, contra o simbolismo protestante, consagrou o vocábulo transubstanciação, para indicar a mudança total da substância do pão e da substância do vinho no Corpo e no Sangue de Jesus Cristo. Semelhante palavra nos dá a ideia do que ocorre, objetivamente, sobre o altar, no momento da consagração da Santa Missa, e nos assegura a presença real e substancial de Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento, mesmo depois de terminado o Santo Sacrifício. Como termo aristotélico, que não condiz com as correntes filosóficas atuais, a palavra transubstanciação é rejeitada pelos teólogos da nova Igreja. Substituem-na por outra — "transignificação", "transfinalização" — dando razão à afirmação do Papa de que se põe em dúvida o "mistério da Santíssima Eucaristia e da Presença Real" (p. 99). Na ordem prática, eliminam-se os sinais de adoração, de respeito ao Santíssimo Sacramento, como a comunhão de joelhos, com véu, a benção do Santíssimo, a visita ao Sacrário, etc.
Subversão doutrinária
Se a palavra muda, e não é sinônima, naturalmente também o conceito se modifica. Estão no caso os novos termos dos teólogos "aggiornati", cuja consequência é um abalo na própria Fé. Eis que a nova terminologia, de fato, introduz uma nova religião. Não estamos mais no Cristianismo autêntico. Aliás, as inovações não ficam apenas em troca de palavras. Vão mais longe. Na realidade, excitam uma subversão total na Igreja. Como a filosofia moderna sobrestima o homem, a quem faz juiz de todas as coisas, a nova Igreja estabelece, como dissemos, a religião do homem. Elimina tudo quanto possa significar uma imposição à liberdade ou uma repressão à espontaneidade humanas. Desconhece, assim, a queda original e extenua a noção do pecado. Não compreende "o sentido da renúncia evangélica" (p. 105), e propugna uma religião natural de base nas experiências "psicológicas e sociológicas" (p. 99).
III
Remédio para o mal: fidelidade à Tradição
a. INDICAÇÃO DE PAULO VI
Como causa do aturdimento que sofrem os fiéis, angustiados porque já não têm mais certeza sobre o que devem crer e sobre como hão de agir, Paulo VI aponta o abandono da Tradição. De onde, o antídoto a tão profunda crise de linguagem, pensamento, e ação, só encontramos na fidelidade à Tradição.
O Documento de Paulo VI insiste sobre este ponto. As atuais circunstâncias, assim o Papa, exigem de nós maior esforço, para que "a palavra de Deus chegue aos nossos contemporâneos, na sua PLENITUDE, e para que as obras realizadas por Deus lhes sejam apresentadas SEM ADULTERAÇÃO, e com a intensidade do amor à verdade que os salve" (p. 98 — grifos nossos). Tão nobre incumbência só é exequível mediante a fidelidade à "Tradição ininterrupta que liga [nosso cristianismo] a Fé dos Apóstolos" (p. 99). Deve, pois, cada Bispo, na sua Diocese, estar atento por que os novos estudos "não venham a atraiçoar nunca a verdade e a CONTINUIDADE da doutrina da Fé" (p. 101 — grifo nosso). Aliás, todo o trabalho dos teólogos deve ser no sentido da "fidelidade à grande corrente da Tradição cristã" (p. 102 ), porquanto "a verdadeira Teologia se apoia sobre a palavra de Deus inseparável da Sagrada Tradição como sobre um fundamento perene" (p. 103).
Em resumo, Paulo VI sintetiza (p. 18) a norma do Magistério Eclesiástico na palavra de São Paulo: "ainda que alguém — nós ou um Anjo baixado do Céu — vos anunciasse um evangelho diferente do que temos anunciado, que ele seja anátema" (Gal. 1, 8), e prossegue o Papa: "Não somos nós, com efeito, que julgamos a palavra de Deus: é ela que nos julga e que põe em evidência os nossos conformismos mundanos. A fraqueza dos cristãos, mesmo a daqueles que têm a função de pregar, não será jamais, na Igreja, motivo de edulcorar o caráter absoluto da palavra. Nunca será lícito cegar o gume de sua espada (cf. Heb. 4, 12; Apoc. 1, 16; 2, 16). À Igreja nunca será permitido falar de modo diverso do de Cristo, da santidade, da virgindade, da pobreza e da obediência" (p. 101).
b. EXEMPLO HISTÓRICO: NESTÓRIO E A SANTA MÃE DE DEUS
As palavras do Papa não poderiam ser mais claras, nem mais incisivas, como taxativas são as palavras do Apóstolo por ele citadas. Aliás, elas não passam de um eco da maneira de agir da Igreja, sob o impulso vivificante do Espírito Santo. É fato largamente comentado em toda formação religiosa, o ocorrido com Nestório, Patriarca de Constantinopla. Transcrevemo-lo, aqui, segundo o narra D. Prosper Guéranger, na sua conhecida obra "L'Année Liturgique", ao comentar a festa de São Cirilo de Alexandria, em 9 de fevereiro: "No próprio ano
(continua)