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(continuação)

CARTA PASTORAL

da sua eleição ao trono episcopal, no dia de Natal de 428, aproveitando a grande multidão que se aglomerava na Basílica Catedral, do alto do púlpito, Nestório pronunciou esta blasfêmia: Maria não deu a luz a Deus; seu filho não era senão um homem, instrumento da Divindade. Um frêmito de horror percorreu a multidão, e um leigo, Euzébio, levantou-se do meio do povo e protestou contra a impiedade. Toda a História, até hoje, se regozija com essa atitude. Ela salvou a fé de Bizâncio".

c. NORMA GERAL

D. Guéranger, dá, então, o princípio geral: "Quando o Pastor muda-se em lobo, pertence, em primeiro lugar, ao rebanho defender-se. Normalmente, sem dúvida, a doutrina desce dos Bispos ao povo fiel, e os súditos, nas coisas da Fé, não devem julgar seus Chefes. Há, porém, no tesouro da Revelação, pontos essenciais, cujo conhecimento necessário e guarda vigilante todo cristão deve possuir, em virtude de seu título de cristão. O princípio não muda, quer se trate de crença ou procedimento, de moral ou de dogma. Traições como a de Nestório são raras na Igreja; não assim o silêncio de certos Pastores que, por uma ou outra causa, não ousam falar, quando a Religião está engajada. Os verdadeiros fiéis são os homens que extraem de seu Batismo, em tais circunstâncias, a inspiração de uma linha de conduta; não os pusilânimes que, sob pretexto especioso de submissão aos poderes estabelecidos, esperam, para afugentar o inimigo, ou para se opor a suas empresas, um programa que não é necessário, que não lhes deve ser dado".

d. IMPORTÂNCIA DA TRADIÇÃO

Quisemos ilustrar o critério lembrado por Paulo VI, devido à importância especial que ele assume nos dias que correm, como é notório a quem observa o que se passa em certos meios católicos. Aliás, tal é o valor da Tradição, que mesmo as Encíclicas e outros Documentos do Magistério ordinário do Sumo Pontífice, só são infalíveis nos ensinamentos corroborados pela Tradição, ou seja, por uma doutrinação contínua, através de vários Papas e por largo espaço de tempo. De maneira que, o ato do Magistério ordinário de um Papa que colida com o ensinamento caucionado pela Tradição magisterial de vários Papas e por espaço notável de tempo, não deveria ser aceito.

Entre exemplos que a História aponta de fatos semelhantes, avulta o de Honório I. Viveu este Papa, ao tempo em que a heresia monoteleta fazia estragos na Igreja do Oriente. Negando a existência de duas vontades em Jesus Cristo, renovavam os monoteletas o absurdo que Êutiques introduziu no dogma, quando pretendeu que em Jesus Cristo havia uma só natureza, composta da natureza divina e da natureza humana. Habilmente, o Patriarca Sérgio de Constantinopla insinuou no espírito de Honório I que a pregação das duas vontades no Salvador só causava divisões no povo fiel. Acedendo aos desejos do Patriarca, que eram também os do Imperador, o Papa Honório proibiu que se falasse nas duas vontades do Filho de Deus feito homem. Não advertiu o Pontífice que seu ato deixava o campo aberto à difusão da heresia. Por isso mesmo não se lhe devia dar atenção. Entre os que lamentaram o ato de Honório I estão o VI Concílio Ecumênico, que foi o terceiro reunido em Constantinopla, e São Leão II, Papa, ao confirmar aquele Concílio. Entre os que continuaram a ensinar as duas vontades em Jesus Cristo, está o grande São Máximo, chamado o Confessor porque selou com o martírio sua fidelidade à doutrina católica tradicional.

e. NORMA DE JULGAMENTO PARA AS NOVIDADES

Guardemos, pois, com o máximo respeito e atenção, o critério de aferimento para as novidades que surgem na Igreja:

— Ajustam-se elas à tradição? — São de boa lei.

— Não se ajustam, opõem-se à Tradição, ou a diluem? — Não devem ser aceitas.

Tradição, é certo, não é imobilismo. É crescimento, porém, na mesma linha, na mesma direção, no mesmo sentido, crescimento de seres vivos que se conservam sempre os mesmos. Por isso mesmo, não se podem considerar tradicionais, formas e costumes que a Igreja não incorporou na exposição de sua doutrina, ou na sua disciplina. A tendência, nesse sentido, foi chamada por Pio XII "reprovável arqueologismo" (Encíclica "Mediator Dei"). Isto posto, tomemos como norma o seguinte princípio: quando é visível que a novidade se afasta da doutrina tradicional, é certo que ela não deve ser admitida.

Vários modos de corromper a Tradição

Pode-se concorrer para destruir a Tradição de vários modos. Há, mesmo, entre eles uma escala que vai da oposição aberta ao desvio quase imperceptível. Exemplo de oposição clara, temos nas várias atitudes tomadas por teólogos, e até Autoridades Eclesiásticas, rejeitando a decisão da Encíclica "Humanae Vitae". De fato, o ato de Paulo VI, declarando ilícito o uso dos anticoncepcionais, insere-se numa Tradição ininterrupta do Magistério Eclesiástico. Não aceitá-lo, ensinando o oposto do que ele prescreve, ou aconselhando práticas por ele condenadas, constitui exemplo típico de negação de um ensinamento tradicional.

Mais sinuosa é a falácia, quando se fere a Tradição, através de elucidações dogmáticas que, sem negarem os termos tradicionais, de fato, são incompatíveis com os dados revelados; por exemplo, continuar a fazer profissão de fé no mistério da Santíssima Trindade, mas substituir sistematicamente o termo consubstancial por outro que não tem o mesmo significado, como a palavra natureza.

Há igualmente descaminhos para a heresia, nas deduções que ampliam o conteúdo das premissas. Assim, declarar que, em virtude da colegialidade, o Papa nada pode resolver sem ouvir o Colégio episcopal, é incidir no conciliarismo que subverte a Igreja de Cristo.

Mais subtis são os novos usos, especialmente em liturgia, que sub-rogam aos antigos, e que não só não são dotados da mesma riqueza, senão que insinuam outros conceitos religiosos. Em Nossa Pastoral de 19 de março de 1966, sublinhamos a importância que têm os usos e costumes, tanto no afervoramento da fé, como, em sentido contrário, no solapamento desta mesma fé, sempre que o procedimento pressupõe, e portanto, difunde conceitos errôneos sobre as verdades reveladas.

Evidentemente, não é a mesma a responsabilidade pessoal que há nessas várias maneiras de contestar a Tradição. Nas circunstâncias atuais, no entanto, todas elas oferecem perigo à fé, e talvez mais aquelas que menos aparecem como opostas à Igreja tradicional. Segue-se que de nós se pede cuidadosa vigilância, não venhamos a assimilar o veneno meio inconscientemente. Se há gente de boa fé que, por ignorância ou ingenuidade, nas novidades que vai aceitando, tenciona apenas obter uma nova expressão da verdadeira Igreja; há também e sobretudo, a astúcia do demônio que se serve dessas mesmas intenções para desgarrar os fiéis da ortodoxia católica.

Os falsos profetas e os novos Catecismos

Na exortação Apostólica, que sugere estas considerações, insiste o Papa, sobre a ação dos falsos doutores, que, vivendo no meio do povo de Deus, corrompem a Fé e a Religião. Assim, diz que é "para nós, Bispos", aquela advertência que se encontra em São Paulo: "virá tempo em que os homens já não suportarão a sã doutrina da salvação. Levados pelas próprias paixões e pelo prurido de escutar novidades, ajuntarão mestres para si. Apartarão os ouvidos da verdade e se atirarão às fábulas" (2 Tim. 4, 3-4), e mais adiante, torna Paulo VI ao mesmo toque de alerta, ainda com palavras do Apóstolo: "do meio de nós mesmos, como já sucedia nos tempos de São Paulo, surgirão homens a ensinar coisas perversas para arrebatarem discípulos atrás de si (Atos 20, 30)" (p. 105).

Quando os inimigos estão dentro de casa, como denuncia aqui o Papa, é sumamente néscio quem não redobra a vigilância. Na atual crise da Igreja, podemos dizer que nossa salvação está condicionada ao emprego de todos os meios que preservem a integridade da nossa Fé. Portanto, é necessária, hoje, maior atenção para evitar as ciladas armadas contra a autenticidade de nosso Cristianismo.

Em Nossa Instrução Pastoral sobre a Igreja, de 2 de março de 1965, fundamentamos semelhante advertência, mostrando como o espírito modernista, infiltrado nos meios católicos, introduz, entre os fiéis, o relativismo e o naturalismo religiosos, subvertendo o dogma e a moral revelados. Da difusão de semelhante espírito incumbem-se, atualmente, os novos Catecismos. Eis que nos toca o dever de chamar vossa atenção, amados filhos, sobre essas novas obras de ensino e formação religiosa que, a título de fé para adultos ou para o homem moderno, destroem a doutrina tradicional, ora pelo silêncio, ora por omissões, ora de maneira positiva, por concepções contrárias à verdade sempre ensinada pela Igreja. São os novos Catecismos o meio de inocular na mente dos fiéis a nova religião, em consonância com as correntes evolucionista e racionalista do pensamento moderno.

Não levantamos nenhum julgamento sobre as intenções dos autores dos novos Catecismos. Não nos esquecemos, no entanto, de que, o "homem inimigo", ou seja, o demônio, que tudo faz para perder as almas, se aproveita das perturbações causadas na Igreja pelos pruridos de novidade, e nelas mesmas insinua os sofismas com que corrompe a Fé e perverte os costumes. Sendo, como são, os Catecismos instrumentos para formar, na Religião, as novas gerações, seria ingênuo pensar que o anjo das trevas não procurasse servir-se deles, para a realização de sua obra sinistra. De fato, pois, objetivamente, os novos Catecismos devem ser colocados entre os fautores da autodemolição da Igreja, de que fala o Papa.

Nunca é demais salientar a importância do Catecismo. E, em consequência, nunca será excessivo alertar os fiéis contra os textos de Catecismo que subvertem a Religião de Nosso Senhor Jesus Cristo.

IV

A profissão de fé nas práticas litúrgicas e religiosas

Na sua Exortação Apostólica, Paulo VI onera a consciência dos Bispos, cuidem que a doutrina seja transmitida pura não só no ensino, como no exemplo que há de vivificar as palavras.

Refere-se o Papa aos auxiliares dos Bispos na difusão da sã doutrina. Sua afirmação, no entanto, comporta interpretação mais ampla, uma vez que, nos atos piedosos, fazemos viva profissão de nossa fé. Em outras palavras: o que cremos com a inteligência, isso realizamos na nossa vida católica, especialmente nas práticas religiosas. Em sentido inverso, é pelos atos cotidianos que, ou alimentamos a nossa fé, ou a entibiamos, segundo nosso procedimento se conforme com o que cremos, ou dele se afaste.

E aí tendes, amados filhos, toda a importância das práticas piedosas tradicionais. Nutriu-se com elas a fé das gerações passadas, que, com seu exemplo, nos transmitiram o amor a Jesus Cristo, à sua doutrina e aos seus preceitos. Elas fortificarão, hoje também, a nossa fé, e nos darão as energias de seguir o exemplo dos nossos irmãos, que nos precederam no santo temor de Deus. Nesta mesma ordem de ideias, devemos precaver Nossos amados filhos, contra as práticas religiosas, nas quais ou se encarna o espírito da nova Igreja, ou extenua-se a adesão aos mistérios revelados. Tratando-se de questão capital, que interessa à salvação eterna, recomendamos vivamente aos Nossos caríssimos filhos, que se mantenham fiéis aos exercícios ascéticos encarecidos pela Igreja: meditação, exame de consciência, atos de mortificação, visitas ao Santíssimo, confissão e comunhão frequente, oração contínua, e, de modo especial, a reza cotidiana do terço de Nossa Senhora.

O culto à Santíssima Eucaristia

De modo particular, novamente lembramos aos Nossos amados filhos a reverência que, tradicionalmente, se deve à Santíssima Eucaristia, reverência com que fazemos profissão de fé na presença real e substancial do Deus humanado no Sacramento do Altar. De acordo com o costume tradicional, que, segundo a Sagrada Congregação do Culto Divino, onde existe, deve ser conservado, recebam os fiéis, a Sagrada Comunhão sempre de joelhos, e as senhoras e moças com a cabeça coberta, e jamais se aproximem dos Santos Sacramentos em vestes que desdizem do respeito e reverência para com as coisas sagradas.

Dessacralização

Tenhamos sempre todo o respeito pelo lugar sagrado. Uma das características da Igreja nova é a dessacralização. Condena ela os edifícios próprios para o culto, e deseja que a Religião se dissolva na vida comum do indivíduo. Sob a alegação de que tudo é sagrado, na realidade, tudo reduz ao profano. Jesus Cristo atendia muito à distinção entre o sagrado e o profano. Comentando o trecho de São João, em que o Divino Mestre expulsou os vendilhões do Templo, declara Santo Agostinho que o mal não consistia em que se vendiam animais, porquanto licitamente se vende o que licitamente se oferece no Templo. O mal não estava em que a venda se fazia, por mero interesse, num lugar sagrado, de si destinado à oração e ao culto divino (cf. in Jo. tr. X).

Proteção e mediação de Maria Santíssima

Acenamos, amados filhos, a algumas práticas, através das quais, procura-se instaurar na Igreja um cristianismo novo, destoante daquele que Jesus Cristo veio trazer à terra. Em Nossa Pastoral de 19 de março de 1966, sobre a aplicação dos Documentos conciliares, salientamos o grande perigo que de tais práticas se origina para a fé, intoxicadas, como estão, pela heresia difusa que encontra conivência na mentalidade relativista do mundo moderno. A situação é tão grave, o mal tão profundo, que hoje, mais do que em tempos passados, é necessário o apelo aos meios sobrenaturais da graça. Entregues a nós mesmos, somos incapazes de resistir à onda elevada pelos falsos profetas, e menos ainda de fazê-la amainar, de modo que possam as almas continuar serenamente nas vias da imitação do Divino Salvador.

Recorramos, pois, à oração, e especialmente à devoção a Maria Santíssima, Senhora nossa. A Tradição é unânime em apresentá-La como Medianeira de todas as graças, como Mãe terníssima dos cristãos, empenhada na salvação de seus filhos, como interessada na integridade da obra de seu Divino Filho. Nas situações difíceis, em que Se tem encontrado, a Igreja habituou-nos a suplicar o valioso e eficaz auxílio da Santa Mãe de Deus, seja para profligar heresias, seja para impedir que o jugo dos infiéis pesasse sobre os cristãos. Podemos dizer que a Igreja jamais Se achou em crise tão grave e tão radical, como a que hoje alui seus fundamentos desde os seus primeiros alicerces. É sinal de que a proteção de Maria Santíssima se torna mais necessária. A nós compete fazê-la real, mediante nossas súplicas à Santa Mãe de Deus. Nesse sentido, renovamos a exortação que fizemos à reza cotidiana do terço do santo Rosário, cuja valia aumentaremos com a imitação das virtudes de que a Virgem Mãe nos dá particular exemplo: a modéstia, o recato, a pureza, a humildade, o espírito de mortificação na renúncia de nós mesmos, e a caridade com que, pelo bom exemplo, como discípulos de Cristo "impregnamos de seu espírito a mentalidade, os costumes, e a vida da cidade terrena" (p. 105). Confiamos que a proteção da Santa Mãe de Deus nos conservará a fidelidade à Tradição na nossa profissão de fé e nas nossas práticas religiosas, como nos hábitos de nossa vida católica.

Certo de que tão excelsa proteção jamais nos faltará, enviamos aos Nossos zelosos Cooperadores e amados filhos Nossa cordial benção pastoral, em nome do Pa†dre, e do Fi†lho, e do Espírito†Santo. Amém.

Dada e passada na Nossa Episcopal Cidade de Campos, sob Nosso sinal e selo de Nossas armas, aos onze dias do mês de abril do ano de mil novecentos e setenta e um, na Santa Páscoa do Senhor.

L+S


A VISÃO GNÓSTICA DOS BENS TERRENOS E A LIÇÃO DAS PARÁBOLAS

Cunha Alvarenga

Por todo o Evangelho perpassa uma triste realidade: o modo carnal como os homens encaravam a divina mensagem trazida à terra por nosso Salvador. Aos incréus de todos os tempos se aplicam as palavras do Filho de Deus a Nicodemos: "Se vos tenho falado das coisas terrenas, e não Me acreditais, como Me acreditareis se vos falar das celestes?" (Jo. 3, 12).

Em nossa época constituem legião aqueles que procuram dessacralizar e "desmitizar" a Igreja, pondo entre parênteses a vida eterna, para se preocuparem preponderantemente com o desenvolvimento econômico. Assim se afastam escandalosamente da lição dos Evangelhos quanto às coisas terrenas, ao mesmo tempo que se abre um enorme abismo entre eles e as coisas celestes que representam o núcleo da mensagem trazida ao mundo por Nosso Senhor Jesus Cristo.

O tema por excelência que preocupa os católicos progressistas são as chamadas reformas de estrutura, através das quais desejam eles implantar o igualitarismo social e econômico. Não tratam de difundir as virtudes, mas ocupam-se das coisas deste mundo, visando a comunidade de bens e de tarefas. Para a implantação do Estado socialista, ou comunitário, uma das medidas mais urgentes, segundo os progressistas, é a destruição do regime capitalista, baseado na desigualdade econômica entre os homens, na propriedade privada, na livre disposição dos bens econômicos e em sua transmissão por herança, na diversidade de classes, no salariado e no lucro.

Queremos mostrar, nas linhas que se seguem, que o Socialismo e o comunismo vão não somente contra os pressupostos do regime capitalista, mas contra toda e qualquer ordenação econômica e social baseada na lei natural. Por outras palavras, como o amigo urso da conhecida fábula de La Fontaine, a pretexto de espantar as moscas representadas peles abusos praticados na vida econômica pelo regime capitalista, o progressismo quer usar a enorme pedra socialista ou comunista, e acaba por arrebentar a cabeça de quem supostamente deseja socorrer, isto é, do pobre povo de Deus.

O desapego dos bens terrenos.

Em primeiro lugar, assinalemos como Nosso Senhor prega o desapego dos bens terrenos. "Não queirais acumular para vós tesouros na terra" (Mat. 6, 19). "Não andeis inquietos nem com o que vos é preciso para alimentar a vossa vida, nem com o que vos é preciso para vestir o vosso corpo" (Mat. 6, 25). "Buscai, pois, em primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo" (Mat. 6, 33).

A excessiva preocupação com o que haveremos de comer ou de beber ou de vestir é, segundo a lição que nos deixou o Divino Salvador, coisa de pagãos e de pessoas do mundo (Luc. 12, 29-30).

Àqueles que põem nos bens terrenos todo o seu afeto e deles não fazem o uso que Deus quer, dirige Nosso Senhor as maldições que se contrapõem às bem-aventuranças: "Ai de vós, ó ricos! porque tendes a vossa consolação! Ai de vós os que estais saciados! porque vireis a ter fome. Ai de vós os que agora rides! porque gemereis e chorareis" (Luc. 5, 24-26).

No episódio do jovem rico, que não O quis seguir porque tinha muitos bens, disse o Senhor aos discípulos: "Filhinhos, quanto é difícil entrarem no Reino de Deus os que confiam nas riquezas! Mais fácil é passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus". E eles se admiravam, dizendo uns para os outros: "Quem pode logo salvar-se?" (Marc. 10, 24-26).

Com efeito, é tendência generalizada dos homens a de confiar nas riquezas; os que as possuem, querem aumentar seu cabedal, e os que as não possuem, preocupam-se em obtê-las. A "confiança nas riquezas" é o mal a que Nosso Senhor no Sermão da Montanha alude quando enaltece aqueles que se mostram pobres de espírito.

A avareza é filha dessa falta de confiança em Deus: "Guardai-vos e acautelai-vos de toda a avareza, porque a vida de cada um não consiste na abundância dos bens que possui" (Luc. 12, 15); verdade que transparece claramente na parábola do homem rico que aumentou seus celeiros: "Néscio, esta noite te virão demandar a tua alma; e as coisas que juntaste, para quem serão? Assim é o que entesoura para si, e não é rico para Deus" (Luc. 12, 16-21).

Convém acentuar que no Sermão da Montanha, ao citar as bem-aventuranças, Nosso Senhor não diz simplesmente: bem-aventurados os pobres, mas "bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus" (Mat. 5, 3). Essa pobreza de espírito se refere sobretudo ao desapego e à indiferença com que devemos encarar e usar os bens da terra. Tudo o que temos, bens do espírito e bens de fortuna, devemos referir a Deus e deles usar como instrumento para o "único necessário", que é a salvação eterna.

Onde entra a gnose

Em contraste com essa posição equilibrada em face dos bens deste mundo, desde os primeiros tempos da Igreja se levanta uma terrível heresia, a gnose. Em vez de condenar o uso desregrado da riqueza, como sempre fez a Santa Igreja, intérprete infalível dos Santos Evangelhos, os gnósticos amaldiçoam a posse dos bens terrenos em si mesma considerada, apresentando a pobreza real não como um conselho evangélico, mas como condição imperativamente imposta a toda a humanidade.

Consequência inexorável dessa posição, o gnosticismo em todos os seus ramos, dos tempos apostólicos aos nossos dias, foi sempre adepto do socialismo e do comunismo, embora sob variadas formas, camufladas ou abertas, que a História registra. E assim, dos ebionitas aos socialistas-cristãos, vemo-lo percorrer através dos séculos todas as gamas da perversão coletivista. A condenação que certos Bispos e Sacerdotes fazem do atual regime capitalista deve, portanto, ser estudada no contexto da história da gnose, da qual a fase presente é um simples episódio, embora culminante. E como essa luta é travada pelos progressistas pretensamente em nome dos Evangelhos, vejamos o que nos ensina o Novo Testamento sobre os dados fundamentais comuns a toda vida econômica.

Nosso Senhor diz claramente que não veio destruir a Lei ou os Profetas; não veio para os destruir, mas sim para os cumprir, não desaparecendo da Lei "um só jota ou um só ápice" (Mat. 5, 17-18). Ora, preliminarmente devemos observar que os gnósticos não aceitam a lei natural, de que os Dez Mandamentos são a expressão codificada, pois professam um declarado pessimismo a respeito de toda a criação material, atribuindo a esta todos os males do mundo, razão pela qual rejeitam logicamente a própria natureza humana de Nosso Senhor Jesus Cristo, isto é, recusam-se a adorar a Sagrada Humanidade do Verbo de Deus encarnado.

Fazemos esta ressalva para orientação das almas retas que nos leem, as quais tomarão nossas palavras no seu devido valor, e não como se estivessem carregadas de sentido mágico e ocultista, qual geralmente acontece com as dos maniqueus de todos os tempos, inclusive aqueles que querem passar esse velho contrabando doutrinário como se fosse fruto ultramoderno do II Concílio Ecumênico Vaticano.

Verdades que ressaltam das parábolas de Nosso Senhor

Se de início nos referimos ao papel instrumental dos bens deste mundo em face de uma realidade mais alta, que é a vida eterna, fizemo-lo para deixar bem claro que Nosso Senhor Jesus Cristo sempre desejou que O ouvíssemos como homens espirituais e não como homens carnais. Mas se Ele próprio ressuscitou em sua santíssima humanidade e nos prometeu a ressurreição da carne no último dia, é óbvio que à luz de sua divina doutrina não se pode sustentar a distinção dualista e maniquéia que exalta o espírito e execra a matéria. Tudo o que vem das mãos de Deus é bom, tanto na ordem espiritual quanto na material. E os males que afligem o homem não se acham apenas no corpo, como querem os gnóstico-maniqueus, mas sobretudo na alma, como fruto do pecado.

Isto posto, vejamos como Nosso Senhor Jesus Cristo encara a vida dos homens sobre a terra, em sua faina diária de viajores que, demandando a vida eterna, têm necessidades materiais a satisfazer. As parábolas, neste sentido, nos dão um vivo flagrante dessa realidade que no fundo é de todo o sempre. Escolhe o Divino Salvador fatos comuns do conhecimento de todos, para tecer uma narrativa que se destina a conduzir seus ouvintes a uma verdade de ordem moral ou espiritual. Com efeito, as comparações que servem de parábolas representam geralmente realidades de ordem natural; diferindo da fábula pela verossimilhança da própria história, concorda a parábola com ela nos requisitos essenciais de simplicidade e brevidade. Utiliza um fato subjacente, retirado em geral da vida comum: um homem lavra um campo, outro acha um tesouro escondido, alguém arrenda sua propriedade e faz uma viagem, etc. Há sempre nela um sentido literal que serve de ponto de apoio ao sentido parabólico, moral ou espiritual.

As conclusões a serem retiradas desses fatos, Nosso Senhor as considera de evidência imediata para o comum dos ouvintes, embora haja casos em que a má vontade de alguns circunstantes leve o Divino Salvador a não revelar o sentido da parábola senão a alguns poucos escolhidos. Mas em certas ocasiões a aplicação ressalta com tamanha evidência, que Nosso Senhor deixa aos ouvintes o encargo de dar a conclusão ao fato narrado, como na parábola dos vinhateiros homicidas (Mat. 21, 33-41).

É claro que não é nossa intenção emprestar um valor dogmático ao sentido literal das parábolas, mas apenas nos valer desses exemplos retirados da vida diária para mostrar a perenidade das verdades que nelas se acham subjacentes.

A desigualdade social

Um dos falsos princípios da Revolução, tanto em sua fase liberal quanto em sua fase comunista, é o da igualdade social. Nosso Divino Salvador considerava, pelo contrário, a desigualdade entre os homens como um fato normal e corrente que não devia ser posto em discussão. Na parábola dos dez marcos, diz Nosso Senhor: "Um homem nobre [D. Duarte em sua Concordância adota a expressão "homem de grande nascimento"] foi para um país distante tomar posse de um reino" (Luc. 19, 12). E mais adiante na mesma parábola: "Mas os seus concidadãos aborreciam-no; e enviaram atrás dele deputados encarregados de dizer: Não queremos que este reine sobre nós" (Luc. 19, 14), frase profética que devia ser repetida pelos judeus na Paixão de Nosso Senhor, o que mostra a intenção do Filho de Deus de Se comparar a esse nobre.

Que na vida social existem naturalmente aqueles que servem e aqueles que são servidos, é fato correlato, que se depreende do seguinte exemplo dado por Nosso Senhor aos seus ouvintes: "Qual é de vós o que, tendo um servo a lavrar ou a guardar gado, lhe diga, quando ele se recolhe do campo: Vem, põe-te à mesa; não lhe diga antes: Prepara-me a ceia, e cinge-te, e serve-me, enquanto eu como e bebo, e depois comerás tu e beberás? Porventura, fica o senhor obrigado àquele servo, porque fez tudo o que lhe tinha mandado? Creio que não. Assim também vós, depois de terdes feito tudo o que vos foi mandado, dizei: Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer" (Luc. 17, 7-10).

Direito de propriedade de herança

Ligado também a essa desigualdade está o fato de que os homens possuem bens como próprios, e uns possuem mais que os outros, o que é tomado com toda a naturalidade pelo Divino Mestre em várias circunstâncias. O direito de propriedade e a livre disposição dos bens pelos seus donos são dados indiscutíveis: "O Reino dos Céus é semelhante a um tesouro escondido num campo, o qual, quando um homem o acha, esconde-o, e, pelo gosto que sente de o achar, vai, e vende tudo o que tem, e compra aquele campo. O Reino dos Céus é também semelhante a um homem negociante, que busca boas pérolas. E, tendo encontrado uma de grande preço, vai, e vende tudo o que tem, e a compra" (Mat. 13, 44-46). E a posse desses bens como coisa própria e não propriedade coletiva, tem como corolário o direito de herança; por exemplo: o filho pródigo pede ao pai a parte dos bens que lhe toca (Luc. 15, 12).

Mas onde o direito de propriedade e o de herança ressaltam com mais vigor é na parábola dos vinhateiros homicidas: "Havia um pai de família, que plantou uma vinha, e a cercou com uma sebe, e cavou nela um lagar, e edificou uma torre, e arrendou-a a uns lavradores, e ausentou-se para longe. E, estando próxima a estação dos frutos, enviou os seus servos aos lavradores, para receberem os seus frutos. Mas os lavradores, agarrando os servos, feriram um, mataram outro, e a outro apedrejaram. Enviou novamente outros servos em maior número do que os primeiros, e fizeram-lhes o mesmo. Por último enviou-lhes seu filho, dizendo: Hão de ter respeito a meu filho. Porém os lavradores, vendo o filho, disseram entre si: Este é o herdeiro; vinde, matemo-lo, e teremos a herança. E, lançando-lhe as mãos, puseram-no fora da vinha, e mataram-no. Quando, pois; vier o Senhor da vinha, que fará ele àqueles lavradores? Responderam-lhe: Matará sem piedade esses malvados, e arrendará a sua vinha a outros lavradores, que lhe paguem o fruto a seu tempo" (Mat. 21, 33-41).

Nessa belíssima parábola vemos não somente ressaltar o direito de propriedade e o de herança, mas também o direito de livre disposição da terra mediante arrendamento. Os vinhateiros homicidas são a prefigura daqueles que na Rússia, na China, em Cuba ou no Chile sustentam pertencer a terra aos que a trabalham e dela violentamente escorraçam seus legítimos proprietários.

O regime de salariado

Outra decorrência do direito de propriedade vem a ser a livre contratação do trabalho, vale dizer, a liceidade do regime do salariado, que os esquerdistas-católicos, fazendo coro com os socialistas e comunistas, consideram radicalmente injusto, devendo ser substituído pela participação nos lucros, a cogestão ou a copropriedade. Dentro da sociedade católica foi desenvolvida a instituição do famulato, através da qual, por razões de mútuo interesse, famílias mais abastadas contratam estavelmente o serviço de famílias menos favorecidas por bens

(continua)