Uma velha heresia perfeitamente atual
O AMERICANISMO
Orlando Fedeli
Em fins do século passado, uma nova doutrina escandalizava os católicos: era o americanismo. Ela foi condenada em 1899 por Leão XIII na Carta Apostólica "Testem Benevolentiae", dirigida ao Cardeal James Gibbons, Arcebispo de Baltimore e Primaz dos Estados Unidos. Apesar dessa condenação, os erros americanistas foram retomados e largamente difundidos por outros movimentos, como por exemplo o "Sillon" e o modernismo, ambos condenados por São Pio X.
Ao serem lidos hoje, os escritos americanistas causam-nos uma impressão de surpreendente atualidade. São estas velhas doutrinas reprovadas que deparamos presentemente em sermões, em conferências, em discursos e documentos de eclesiásticos e leigos de prol. O que ontem foi condenado, hoje é ensinado. Teria a Igreja mudado? Sua verdade não é sempre a mesma? E as palavras de Jesus Cristo não permanecem eternamente? Teria razão o redator da nota de apresentação do Pe. Comblin na capa do seu livro sobre a "teologia da Revolução", quando afirma: "Mas a heresia de ontem é muitas vezes a verdade de amanhã" (J. Comblin, "Théologie de la Révolution", Ed. Universitaires, 1970)? Certamente não. A Igreja tem uma doutrina imutável e se alguém muda de doutrina já não é mais católico.
O Padre Hecker, suas variações e suas visões
A história do americanismo está intimamente ligada à do Padre Isaac Thomas Hecker, posto que este foi o fundador e modelo vivo dessa corrente doutrinária.
Nasceu ele em Nova York em 1819. Sua mãe era metodista, e o metodismo muito o influenciou durante toda a vida. A família Hecker era pobre e desde os dez anos Isaac Thomas teve que trabalhar, primeiro numa tipografia, e depois numa padaria.
Aos quatorze anos começou a preocupar-se com política e filosofia e trocou o metodismo pelo kantismo. Aos 24 anos, entrou para o falanstério de Brook Farm — comunidade constituída segundo as teorias do filósofo Fourier — onde embebeu-se ainda mais das doutrinas filosóficas de Kant e sociais de Saint-Simon, tendo passado antes por todas as seitas protestantes da América, e militado no Partido Trabalhista de seu Estado natal, de tendências comunistas.
Converteu-se depois ao Catolicismo e foi pedir o batismo ao Bispo de Nova York, o futuro Cardeal Mac Closkay. Recebido em audiência, Hecker não saiu contente, porque, disse mais tarde, o Prelado procurou antes descobrir e refutar seus erros do que saber das verdades que o tinham aproximado da Igreja. Hecker afirma que recusou dar explicações ao Bispo (Barbier, pp. 249-250).
Apesar disso, foi batizado em 1.° de agosto de 1844. Ele mesmo dizia: "Eu me esgueirei na Igreja" (Maignen, p. 89).
Hecker julgava-se então guiado diretamente pelo Espírito Santo. Afirmava que há muito tempo tinha visões e inspirações sobrenaturais e que a voz de Deus lhe falava.
Na antevéspera de seu batismo, escreveu o seguinte : "30 de julho — A voz interior se faz ouvir cada vez mais. Ela diz: "Sou eu, escutai! Ao que é novo, são necessárias vestimentas novas. Que prova dá alguém de sua existência se faz só o que já foi feito? Será que pode haver gênio no repetir o passado?"
E mais adiante a voz lhe teria dito: "Eu dirijo vossa pena, vossa palavra, vossos pensamentos, vossos afetos, se bem que não de modo sensível. Conhecereis, porém, mais claramente quem sou e tudo o que me concerne, se seguirdes minhas inspirações. Não temais nada, não podeis errar se vos deixardes guiar por mim" (Maignen, pp. 20 e 22).
Antes de se fazer católico, quando ainda estava no falanstério de Brook Farm, Hecker teve a visão de uma jovem "de beleza angélica", cuja lembrança depois o obsidiava continuamente. Era como que uma "noiva" espectral que aparecera junto a seu leito. "Quando eu a olhava, escreve ele, não via nenhuma linha precisa, mas alguma coisa de divino que não saberia descrever. Esta imagem deixou uma impressão indelével em meu espírito. Eu continuei a sofrer sua influência, e agora esta se exerce tão frequentemente, que o real em torno de mim não me toca mais" (Maignen, p. 23).
As "visões" continuaram a assediá-lo mesmo depois de seu batismo. Assim é que em fins de 1844, já católico, enamorou-se de uma coisa não menos misteriosa. A essa altura escreveu em seu diário: "18 de dezembro de 1844 — Sonhos de futuro, visões estáticas! Esperanças e desejos inexprimíveis que enchem a alma inteiramente! Como um anjo doce, harmonioso e puro, como a desposada da alma triunfante, adornada para as núpcias, eu vejo o Futuro convidar-me a ir ao encontro dele com um claro e luminoso sorriso! Ah! dizia minha alma, eu me reunirei a ti, porque estou em tua presença e, com a ajuda de Deus, permanecerei fiel a ti. A beleza, a graça e o amor que me atraem não permitem qualquer comparação! Futuro, eterna e radiosa virgem, chegarei jamais a estreitar-te sobre meu coração? Se olho para mim, eu me curvo sobre a dor, mas se levanto os olhos para ti, perco-me em ti. Tua graça e tua beleza passam para minha alma e eu adivinho o que és. Sou teu desposado, e quisera que esta fosse uma união eterna. Mas, quando olho para mim, eu te perco de vista, e não vejo mais que as manchas e defeitos de minha alma. Como me podes amar? Por amor de ti, fundo-me em ti" (Maignen, p. 24).
Metáforas? Visões? Se são apenas metáforas literárias é preciso convir em que Hecker estava apaixonado pelo futuro e só queria a ele. É frisante a semelhança deste texto com os devaneios gnósticos de Teilhard de Chardin!
Todas estas visões e vozes mostram bem quanto permanecera viva em Hecker a influência do metodismo, que ensina exatamente isso: que o Espírito de Deus inspira o crente e fala pela sua boca.
Em 1845, Hecker entrou para a Congregação Redentorista. Levou semanas para aprender o "Pater" em latim. Passou três anos sem conseguir ler ou estudar. Ele não tinha diretor espiritual, como nunca teria depois, porque dizia que o próprio Espírito Santo o dirigia: "A razão pela qual sempre tive tanto interesse na doutrina da ação direta do Espírito Santo na alma, é uma razão de experiência pessoal; na verdade, jamais tive outro diretor" (Maignen, p. 30). Hecker ficou na Congregação de Santo Afonso de Ligório até 1857, quando foi excluído por ter violado os votos de pobreza e de obediência, ao ir a Roma sem licença dos Superiores e às próprias expensas. Em 1858, fundou a Congregação dos Paulistas, uma comunidade livre e sem votos. O fundador, com efeito, era contrário aos votos religiosos e queria um novo tipo de Sacerdote, adaptado ao modo de ser de "homens cheios de uma justa confiança em si mesmos", como via os norte-americanos (Maignen, p. 66).
O Padre Hecker passou os seus últimos dezesseis anos de vida com muitas doenças. Depois de morto suas ideias tiveram grande influência nos Estados Unidos, e mais ainda na França. O liberalismo católico, com todos os movimentos que dele nasceram, acolheu as chamadas teses americanistas do Padre Hecker e dos Padres Paulistas; o terreno estava bem preparado para os novos erros.
A polêmica americanista
Em 1894, veio a lume nos Estados Unidos a "Vida do Padre Hecker", de autoria do Padre Elliot, da Congregação dos Paulistas, e com uma introdução de Monsenhor Ireland, Arcebispo de Saint Paul de Minnesota.
A obra teve pouca repercussão nos Estados Unidos. Três anos depois foi publicada em Paris em tradução do Padre Klein, jovem professor do Instituto Católico, cujo prefácio resumia as ideias de Hecker. Essa tradução repercutiu enormemente na França e também no Vaticano.
Os americanistas, como eram chamados os seguidores do Padre Hecker, tinham provocado já grande celeuma ao participarem do Parlamento das Religiões que reuniu em Chicago, em 1893, católicos, protestantes, judeus, budistas, muçulmanos, espíritas, etc. As principais figuras católicas desse encontro ecumênico foram Monsenhor Ireland, Arcebispo de Saint Paul, Monsenhor Keane, Reitor da Universidade de Washington (que discorreu sobre o tema "A religião final"), Monsenhor Redwood, norte-americano de Maryland e Arcebispo da Nova Zelândia, e o Padre Elliot, discípulo e biógrafo do Padre Hecker.
Eram as ideias deste grupo ecumenista e irenista que o Padre Klein defendia no prefácio da edição francesa da biografia de Hecker.
Imediatamente dois Sacerdotes ilustres, o Padre Charles Maignen e Monsenhor Henri Delassus, saíram a campo em defesa da ortodoxia, atacando as teses americanistas.
O primeiro escreveu o livro "O Padre Hecker é um Santo? / Estudos sobre o Americanismo". O Cardeal Richard, de Paris, não lhe quis dar o "imprimatur" por temer melindrar os Bispos dos Estados Unidos. A obra recebeu então uma aprovação mais alta: a do Mestre dos Sacros Palácios, Frei Alberto Lepidi.
Vários Arcebispos e Bispos franceses enviaram felicitações a Maignen, e o Cardeal Satolli, antigo Delegado Apostólico em Washington, escreveu-lhe uma carta de apoio irrestrito, com censuras aos que se lhe opunham.
Os esquerdistas do tempo chamaram a si a defesa de Hecker e do americanismo. Destacaram-se nessa empreitada os Padres Klein, Naudet (condenado mais tarde por São Pio X), Lemire, Loisy, Quiévreux, Gondal, Dabry. O "Sillon", de Marc Sangnier — movimento depois fulminado por São Pio X — também apoiou, em parte, a campanha americanista.
O Padre Dabry afirmava então: "Apesar das diferenças de fundo, o americanismo e a Democracia Cristã se reconheceram como irmãos e se deram reciprocamente testemunhos de afeição e de estima" (Barbier, p. 263). Para o Padre Dabry, o que unia americanistas e democratas-cristãos era a ideia de progresso. Os primeiros buscavam-no através do desenvolvimento da personalidade individual, enquanto a Democracia-Cristã queria alcançá-lo pelo aperfeiçoamento das leis sociais.
O Padre Quiévreux, como costumam fazer os que dizem ter como lema a liberdade e a fraternidade, atacou a pessoa do Padre Maignen com termos grosseiros e insultuosos (Barbier, p. 263).
O Padre Naudet escrevia no seu jornal "Justice Sociale": "Ainda que nos tratem de hereges, cremos que essas virtudes [as virtudes "ativas", fortaleza, justiça, prudência, temperança] são superiores à humildade e à obediência" (Barbier, p. 264).
O Padre Loisy, condenado como modernista pelo Decreto "Lamentabili" no pontificado de São Pio X, assacou contra o livro do Padre Maignen a pecha de "panfleto odioso e ridículo" (Barbier, p. 265).
Também o jornal "L'Univers", outrora campeão do ultramontanismo, defendeu o americanismo e criticou Maignen. Em artigo do Padre Boeglin, publicado em novembro de 1898, chegou a afirmar que o próprio Leão XIII patrocinava o americanismo (id., p. 266).
Em fins de 1898 correu a notícia de que o Papa publicaria um documento a respeito do caso. Monsenhor Ireland partiu para Roma em janeiro para, dizia-se, tentar impedir o pronunciamento papal.
Entrevistou-se ele com Leão XIII, e declarou depois que o Papa lhe asseverara que o documento não sairia.
Em fevereiro de 1899, porém, veio a lume a Carta Apostólica ao Cardeal James Gibbons, Arcebispo de Baltimore, datada de 22 de janeiro, a qual condenava o americanismo.
Afirmava-se que os Cardeais Sattoli — o antigo Delegado Apostólico em Washington — e Mazzella teriam redigido o documento, e que Leão XIII e o Cardeal Rampolla — favorável "in petto" aos americanistas, segundo constava — o teriam revisto e modificado (Barbier, pp. 267-269).
Vejamos os principais aspectos da doutrina condenada.
A doutrina do acordo na caridade
Por ocasião do quarto centenário da descoberta da América, o boletim do Instituto Católico de Paris publicou um artigo de Monsenhor Keane, Reitor da Universidade Católica de Washington, antigo discípulo do Padre Hecker e um dos mais destacados líderes da corrente americanista.
Nesse artigo o autor perguntava: "Já que um traço distintivo da missão dos Estados Unidos é, pela destruição das barreiras e das hostilidades que separam as raças, o retorno à unidade dos filhos de Deus há muito divididos, por que não se poderia fazer qualquer coisa de análogo no que concerne às divisões e hostilidades religiosas? Por que os congressos religiosos não conduziriam a um congresso internacional das religiões, onde todos viriam a se unir numa tolerância e numa caridade mútuas, onde todas as formas de religião se levantariam juntas contra todas as formas de irreligião?" (Maignen, p. 212).
O espírito americanista inspirava estas linhas repassadas de um ecumenismo irenista que salta por cima de qualquer diferença dogmática, contanto que se consiga a "união no amor".
No Congresso Científico Internacional dos Católicos, reunido em Bruxelas em 1894, o mesmo Monsenhor Keane dizia: "Quando estudamos o mapa da Europa, vemo-lo marcado de pequenas divisões. As linhas atravessam esse mapa em todos os sentidos. Elas não indicam só divisões territoriais, mas significam ainda: ciúme, ódio, hostilidade, divisão dos corações, que se traduzem por sabe Deus quantos milhões de homens armados para destruírem o mundo".
Notemos de passagem que Keane se revela hostil à ideia de pátria e adepto de um pacifismo extremado.
O orador prosseguiu afirmando que os Estados Unidos tinham o dom de acabar com todas essas divisões, uma vez que a Providência permitira que para seu território emigrassem indivíduos de todas as nacionalidades, os quais, misturados uns aos outros, viviam fraternalmente na nova pátria, sem hostilidades, fundidos todos na unidade norte-americana. Monsenhor Keane propõe a aplicação da mesma fórmula às religiões: "Era preciso dar a mesma lição no campo religioso. Todas as vezes que me sinto tentado pelo pessimismo, tenho um remédio: olho ao redor de mim e vejo que o gênero humano se põe cada vez mais a detestar o ódio e a hostilidade. Há um esforço incontestável da humanidade em direção a costumes mais suaves, a um maior florescimento da caridade. Mas o fim da religião não é unir o homem a Deus e a seus irmãos? A religião é a caridade! Mesmo quando não nos pudéssemos entender quanto às crenças, não seria possível entrar em acordo quanto à caridade?" (Maignen, pp. 213 e 215).
A tese exposta é a de que mais importante do que os dogmas é a caridade, como se fosse possível a verdadeira caridade sem a fé. Vê-se bem que essa caridade, esse amor de que fala Monsenhor Keane, capaz de realizar a união de todas as religiões acima das diferenças doutrinárias, não é o amor ao homem por amor de Deus. É o amor do homem pelo homem e não passa de filantropia maçônica.
E continua o ecumênico Bispo americanista: "Já não seria pouca coisa dar mesmo aos cristãos esta lição: que, para amar a Deus, não é necessário odiar seu irmão que não O ama como nós; que, para ser fiel à nossa Fé, não é preciso mantermo-nos em guerra com os que compreendem a Fé de modo diferente de nós" (Maignen, p. 216).
Igualitarismo, "profetismo", evolucionismo
Esta ideia de reunir todas as crenças "na caridade", um dos cavalos de batalha do americanismo, era fruto lógico de seu igualitarismo, de seu "profetismo" e de seu evolucionismo.
IGUALITARISMO — O igualitarismo levava-o a nivelar todas as religiões. É o que confirmam as palavras de Monsenhor Redwood, Arcebispo da Nova Zelândia, no Parlamento das Religiões, reunido em Chicago em 1893. Depois de afirmar que o dogma da Encarnação implica não só na paternidade de Deus, mas em sua fraternidade conosco e na fraternidade de toda a família humana, prosseguiu: "Tais são as grandes ideias fundamentais do Cristianismo compreendido integralmente. Devemos, neste século XIX, derrubar as barreiras de ódio que impedem os homens de entenderem as verdades contidas em todas as religiões. Em todas as religiões há um amplo elemento de verdade, posto que de outro modo elas não teriam coesão. Penso que este Parlamento das Religiões promoverá a grande fraternidade da humanidade e, para promover esta fraternidade, ele promoverá a expressão da verdade. Eu não pretendo, enquanto católico, possuir toda a verdade ou estar em condições de resolver todos os problemas que se põem ao espírito humano. Sei apreciar, amar e estimar todo elemento de verdade existente fora deste grande corpo de verdades. A fim de destruir as barreiras de ódio que existem no mundo, devemos respeitar os elementos de verdade e os elementos de moralidade contidos em todas as religiões" (Barbier, p. 246).
É surpreendente como estas palavras se parecem com certos discursos atuais. Recentemente houve, aqui mesmo no Brasil, um eclesiástico que afirmou que a Igreja não era "dona da verdade". Os erros são monótonos em suas repetições...
Monsenhor Keane, no discurso que fez sobre "A religião final", perante o mesmo "Parlamento", afirmou: "Ouvindo declarações que não podemos deixar de aprovar e aplaudir, ainda que vindas de fontes tão diversas, tivemos uma evidência prática e experimental do velho ditado de que há verdade em todas as religiões" (Maignen, p. 329).
"PROFETISMO" — O "profetismo" americanista afirmava que o Espírito Santo fala diretamente a cada alma. Sendo assim, tanto pode falar a um budista como a um católico, e fala de modo diferente para cada um. Daí, embora haja entre os homens desigualdades de religião, todas seriam certas.
Foi precisamente esta tese de que todas as religiões são inspiradas por Deus, que Monsenhor Keane defendeu no congresso científico de Bruxelasiem 1894: "Pretendeu-se por vezes que os fundadores das religiões pagãs eram enviados do demônio, encarregados de fazer abandonar a verdade e fazer abraçar o erro. Esse é um ponto de vista historicamente falso. A todos Deus deu a verdade em partilha. Quando a pobre família humana se dispersou, esqueceu os princípios religiosos e morais. Então Deus suscitou mesmo entre os pagãos, homens para lembrar a verdade. Tais foram os sábios da antiguidade: Buda, Confúcio, Zoroastro, Sócrates não eram servidores do demônio; eram instrumentos da Providência Divina, viam a verdade, mas somente em parte, misturada com erros; eles fizeram o melhor que podiam. Por que não prestar homenagem à sua boa vontade e a tudo o que é bom e belo em seu ensinamento?" (Barbier, p. 246).
EVOLUCIONISMO — O evolucionismo levava os americanistas a não aceitarem uma religião de dogmas estáticos. Toda a concepção religiosa deles era evolucionista.
Em 1897 foi publicado em Londres, na "Contemporary Review", um artigo intitulado "O catolicismo liberal" e assinado por Romanus, o qual constituía um verdadeiro manifesto de partido e uma súmula do americanismo.
Lia-se ali a certa altura: "A Igreja, durante os dezenove séculos de sua existência, teve de sofrer a influência não só das condições materiais muito diversas que a cercavam, como também dos meios intelectuais muito diferentes que a modificaram profundamente. Seu êxito deveu-se muitas vezes à sua capacidade de apropriar-se da objeção e de modificar-se ela mesma em presença de novas circunstâncias, ao passo que sua própria existência muitas vezes dependeu da possibilidade de estabelecer relações favoráveis entre seu ensino e sua disciplina, de um lado, e, de outro, a corrente das crenças, sentimentos e condições sociais das diferentes idades e das diferentes regiões. Mas sem a notável evolução social e religiosa que se produziu no paganismo durante o primeiro e o segundo século de nossa era, jamais teria a Igreja podido converter o Império Romano; ao passo que, assim preparadas as vias, esta conversão se tornou inevitável" (Maignen, pp. 302-303).
Mais adiante Romanus observa: "Assim como cada um de nós deve ser, num sentido mais ou menos restrito, um homem de seu tempo, também a Igreja de cada período sucessivo foi a Igreja de sua época, refletindo os conhecimentos limitados do mundo intelectual e moral então existente". Pergunta-se ele se os cristãos primitivos poderiam falar de transubstanciação ou mesmo ter idéia dela. E indaga: "É crível que a devoção a Nossa Senhora tivesse tido lugar na religião de São Paulo?" (Maignen, p. 305). Depois dessas abominações, só lhe resta concluir: "A doutrina moderna da evolução, considerada com espírito teísta, aplana e afasta todas as dificuldades, mostrando como erros parciais e inevitáveis serviram providencialmente ao avanço do bem-estar espiritual da humanidade. Todas estas verdades novas podem achar seu lugar na Igreja Católica, que não deve ter receio de as aceitar e assimilar, tal como no passado aceitou gradualmente outras verdades novas e mesmo modificações vitais" (Maignen, pp. 309-310).
O próprio Padre Hecker tinha uma concepção evolucionista da Igreja, que está bem expressa nestas palavras, escritas em 1843 (antes, pois, de seu batismo): "Li esta manhã um trecho de Heine sobre Schelling, que me emocionou mais que tudo o que pude ler nestes seis meses. A Igreja, diz Schelling em substância, foi primeiro de Pedro, depois de Paulo, e deve ser um dia toda amor em São João: Pedro, o catolicismo; Paulo, o protestantismo; João, aquilo que será. A proposição impressionou-me tanto mais quanto correspondia às minhas vagas intuições. O catolicismo é a solidariedade; o protestantismo, a individualidade. O que nos falta e o que desejamos é aquilo que unirá a ambos como o faz o espírito de João, e isto, operado em cada
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A CONDENAÇÃO
Da Carta Apostólica "Testem Benevolentiæ", de 22 de janeiro de 1899, ao Cardeal Gibbons, Arcebispo de Baltimore, sobre o americanismo:
[...] As opiniões novas de que falamos baseiam-se em suma sobre êste princípio: a fim de reconduzir mais facilmente à doutrina católica os que dela estão separados, a Igreja deve adaptar-Se mais à civilização de uma época adulta, e, relaxando seu antigo rigor, fazer algumas concessões às tendências e aos princípios recentemente introduzidos entre as nações. E isto se deve entender, segundo pensam muitos não só da regra de vida, mas também das doutrinas em que está contido o depósito da fé.
* * *
Com efeito, pretendem eles que é oportuno, para ganhar os corações dos extraviados, passar sob silêncio certos elementos da doutrina como sendo de menor importância, ou atenuá-los de tal modo, que não conservem mais o sentido ao qual a Igreja sempre Se ateve.
Não há necessidade de longos discursos, dileto Filho, para mostrar o quanto semelhante sistema deve ser reprovado; basta lembrar a natureza e a origem da doutrina que a Igreja ensina. Eis o que diz a esse respeito o Concílio do Vaticano: "A doutrina da fé, que Deus revelou, não é como um sistema filosófico susceptível de ser aperfeiçoado pelo espírito humano; mas como um depósito divino confiado à Esposa de Cristo para que Ela o guarde fielmente e o interprete infalivelmente [...]. O sentido que nossa Santa Madre Igreja uma vez declarou ser o dos dogmas sagrados, deve ser perpetuamente conservado, e não cabe jamais afastar-se dele sob o pretexto ou a aparência de melhor penetrar-lhe a profundidade" (Const. De Fide cath., cap. IV).
Não se deve crer, tampouco, que não haja pecado algum no fato desse silêncio pelo qual se omitem deliberadamente e se relegam ao esquecimento certos princípios da doutrina católica. Porque todas estas verdades, quaisquer que sejam, que formam o conjunto da doutrina cristã, não têm senão um único e mesmo Autor e Doutor, o "Filho Unigênito que está no seio do Pai" (Jo. 1, 18). Que estas sejam verdades adaptadas a todas as épocas e a todas as nações, isto se infere manifestamente das palavras pelas quais o próprio Cristo Se dirigiu a seus Apóstolos: "Ide e ensinai todas as nações [...], ensinando-as a guardarem tudo o que Eu vos mandei; e eis que estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos" (Mat. 28, 19 ss.). [...].
Que haja cuidado, pois, de nada cortar da doutrina que nos vem de Deus, e de nada omitir dela, por qualquer motivo que seja; porque aquele que ousasse fazê-lo tenderia mais a separar os católicos da Igreja do que a reconduzir à Igreja os dissidentes. Que voltem, nada certamente Nos é mais grato, que voltem todos, todos aqueles que erram fora do aprisco de Cristo, não porém por outra via que a mostrada pelo próprio Cristo. [...].
* * *
Ele [Pio VI], com efeito, apontou como injuriosa à Igreja e ao Espírito de Deus que A rege, a proposição 78 do Sínodo de Pistóia, "enquanto submete à discussão a disciplina estabelecida e aprovada pela Igreja, como se esta pudesse estabelecer uma disciplina inútil e por demais pesada para a liberdade que convém aos cristãos".
E entretanto, no assunto de que tratamos, dileto Filho, o intento dos inovadores é ainda mais perigoso e mais oposto à doutrina e à disciplina católicas. Eles creem que é preciso introduzir uma certa liberdade na Igreja, de forma que, peadas de algum modo a ação e a vigilância da autoridade, cada fiel tenha a faculdade de abandonar-se, em uma medida mais larga, à sua própria inspiração e ao seu impulso pessoal.
Afirmam eles que esta é uma transformação que se impõe, a exemplo das liberdades modernas que constituem comumente, na hora atual, o direito e o fundamento da sociedade civil [...].
Esta licença que se toma correntemente por liberdade; esta mania de tudo dizer e de tudo contradizer; este poder, enfim, de sustentar e de propagar pela imprensa todas as opiniões, mergulharam os espíritos em tais trevas, que o uso e a necessidade do magistério da Igreja são maiores hoje do que outrora, para premunir contra todo desfalecimento da consciência e do dever.
* * *
[...] rejeita-se toda direção exterior como supérflua, e até mesmo como incômoda para aqueles que querem elevar-se à perfeição cristã; o Espírito Santo, dizem, difunde hoje nas almas fiéis dons mais amplos e mais abundantes do que nos tempos passados, e as move e esclarece, sem intermediário, por uma espécie de instinto secreto. [...]
Quem, na verdade, se reporta à história dos Apóstolos, à fé da Igreja nascente, aos combates e às hecatombes dos mais heroicos mártires, à maior parte enfim desses velhos séculos tão fecundos em homens da mais alta santidade, como ousará pôr em paralelo os tempos antigos com o presente, e afirmar que aqueles foram favorecidos com uma menor efusão do Espírito Santo. [...].
* * *
[...] estes amadores de novidades fazem mais caso do que convém das virtudes naturais, como se essas virtudes correspondessem melhor aos costumes e às necessidades de nosso tempo, e como se valesse mais possuí-las do que as outras, porque elas tornariam o homem mais apto à ação e mais forte.
É difícil de se conceber, na verdade, como homens imbuídos da sabedoria cristã possam preferir as virtudes naturais às virtudes sobrenaturais e atribuir uma eficácia e uma fecundidade maiores àquelas do que a estas.
Mas então a natureza acrescida da graça seria mais fraca do que se fosse deixada às suas próprias forças?
Será que os homens santíssimos que a Igreja venera, e aos quais presta culto público, mostraram-se fracos e inferiores nas coisas da ordem natural, porque foram excelentes nas virtudes cristãs? [...].
* * *
A esta opinião sobre as virtudes naturais, pode-se juntar uma outra que lhe é conexa, e que divide em duas classes todas as virtudes cristãs, chamando umas de passivas, e outras de ativas; acrescentando que as primeiras convinham melhor aos séculos passados, enquanto que as segundas se adaptam melhor ao tempo presente. O que se deve pensar desta divisão das virtudes, é coisa evidente, porque não há e não pode haver virtude verdadeiramente passiva. [...].
Quanto a pretender que haja virtudes cristãs mais apropriadas que outras a certas épocas da História, seria preciso, para sustentá-lo ter esquecido as palavras do Apóstolo: "Aqueles que Ele conheceu na sua presciência, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho" (Rom. 8, 29).
O mestre e o modelo de toda santidade é Cristo, a cuja regra devem conformar-se necessariamente todos os que aspiram a encontrar lugar no número dos Bem-aventurados. Ora, Cristo não muda segundo o progresso dos séculos, mas Ele é "o mesmo ontem e hoje e por todos os séculos" (Heb. 13, 8). É pois aos homens de todos os tempos que se dirige esta palavra: "Aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração" (Mat. 11, 29): e não há época em que Cristo não Se mostre a nós, "feito obediente até a morte" (Filip. 2, 8). Vale também para todos os séculos a sentença do Apóstolo: "Os que são de Cristo crucificaram sua carne com seus vícios e suas concupiscências" (Gal. 5, 24). E prouvesse a Deus que essas virtudes fossem praticadas em nossos dias por um maior número, como elas o foram pelos Santos dos tempos que nos precederam. Aqueles pela humildade de seu coração, sua obediência, sua abstinência, foram poderosos em obras e em palavras, e isso não só para o maior bem da Religião mas ainda da Pátria e do Estado.
* * *
[...] Eles [os americanistas] dizem [...] que estes votos [os votos religiosos] são totalmente contrários ao caráter de nosso tempo, porque restringem os limites da liberdade humana; que convêm mais às almas fracas do que às almas fortes, e que absolutamente não são favoráveis à perfeição cristã e ao bem da sociedade humana, mas antes constituem um obstáculo e um entrave a uma e a outro.
Porém, a prática e a doutrina da Igreja nos tornam facilmente evidente a falsidade desta linguagem, porque Ela sempre teve em alta estima a vida religiosa. E certamente não sem razão; pois os que, chamados por Deus, abraçam espontaneamente este gênero de vida e, não se contentando com os deveres comuns que os preceitos lhes impõem, entregam-se à prática dos conselhos, esses se revelam os soldados de elite do exército de Cristo. Devemos crer que isto é coisa de almas pusilânimes? Ou ainda numa prática inútil ou nociva à perfeição? Aqueles que assim se obrigam pelo vínculo dos votos estão bem longe de perder sua liberdade, mas, ao contrário, gozam de uma liberdade muito mais completa e mais alta, aquela mesma pela qual "Cristo nos tornou livres" (Gal. 4, 31).
Quanto ao que eles acrescentam, a saber, que a vida religiosa é pouco ou nada útil à Igreja, além de ser isso ofensivo às Ordens Religiosas, ninguém que tenha lido os anais da Igreja pode ser desse parecer. [...].
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Em último lugar (para não Nos estendermos demais), pretende-se que é preciso abandonar a maneira e o método que os católicos usaram até agora para reconduzir os dissidentes, a fim de no futuro substituí-los por outros. Basta-Nos observar sobre este assunto, dileto Filho, que não é prudente negligenciar o que foi aprovado por uma longa experiência e consagrado, além disso, pelos próprios ensinamentos apostólicos. [...].
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De tudo o que dissemos até agora, resulta evidente, dileto Filho, que nós não podemos aprovar estas opiniões cujo conjunto é designado por muitos pelo nome de americanismo. [...].
LEÃO PP. XIII