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O AMERICANISMO
indivíduo. Não precisamos da autoridade da História, nem da do indivíduo, nem da infalibilidade e da razão separadas, mas de ambas reunidas na vida. Nem tradição, nem opinião, mas o SER; um Evangelho, nem escrito, nem pregado, mas vivo" (Maignen, pp. 166-167).
"Um pacto de silêncio quanto às particularidades dogmáticas"
A consequência do igualitarismo, do "profetismo" e do evolucionismo era uma posição interconfessional e irênica.
Os americanistas queriam a união de todas as religiões sem que nenhuma renunciasse a seu credo. Era por isso que o Padre Hecker dizia ser preciso abolir a "alfândega da Igreja" (Maignen, p. 90).
Sua nova apologética, ele a expôs na obra intitulada "Questions de l'âme": "Eu desejaria abrir as portas da Igreja aos racionalistas; essas portas me parecem fechadas para eles. Sinto que sou o pioneiro que abrirá o caminho. Eu me esgueirei na Igreja como que de contrabando" (Maignen, p. 89). E mais adiante: "Eu quisera ajudar os católicos com a mão esquerda e os protestantes com a mão direita" (p. 90).
Esse ecumenismo do Padre Hecker não se limitava aos protestantes, cismáticos e racionalistas. Ele se estendia também aos hindus, muçulmanos e pagãos. Não lhe faltava razão ao se dizer um pioneiro. Sabemos bem que outros o seguiram mais tarde.
"O profundo sentimento da imanência divina, que têm os hindus, o impressionava, e ele via na união tão íntima de Deus com o homem pela Eucaristia, um dos principais meios pelos quais nossa fé poderia atingi-los no futuro. Quanto aos muçulmanos, que havia estudado no Egito, eles o tinham impressionado pela intensidade de sua crença no Deus único", escreve dele um admirador, o Padre Dufresne (Maignen, pp. 168- 169).
Todas estas ideias faziam com que os americanistas detestassem o que separa as religiões e buscassem unicamente o que lhes parecia comum a todas elas, para uni-las. Daí o fato de Monsenhor Keane afirmar no já referido Congresso de Bruxelas, de 1894: "Não é pela polêmica, mas pela irênica que chegaremos a nosso fim" (Delassus, p. 128).
O Padre Victor Charbonnel — um dos corifeus do americanismo na França, que mais tarde apostataria da Igreja — planejou reunir em Paris, durante a Exposição universal de 1900, um congresso das religiões. Querendo resumir em algumas linhas o princípio fundamental do congresso (que não chegou a se realizar), escrevia na "Revue de Paris", em 1895: "As lacunas desta ou daquela confissão não são absolutamente negadas, como tampouco a superioridade de tal outra. Nada é enunciado, pela própria natureza do congresso, sobre o valor absoluto dos credos. Mas é menos para comparar seu valor absoluto ou objetivo quanto à "letra", que uma tal aproximação das religiões deve servir, senão para reconhecer seu valor relativo ou subjetivo pela apropriação que delas se fazem as almas, assim como os direitos iguais de todas as consciências que as professam "em espírito e verdade". As religiões, desse modo, são olhadas mais pelo lado do homem. Elas são consideradas menos como doutrinas abstratas, mais como um elemento da personalidade moral, e não se trata tanto de credo e de verdade, quanto de almas crentes e de sinceridade" (Maignen, pp. 241-242).
E, em outra ocasião, escreve o colaborador da "Revue de Paris": "Não se poderia tentar o que se chamaria a união moral das religiões? Far-se-ia um pacto de silêncio quanto a todas as particularidades dogmáticas que dividem os espíritos, e um pacto de ação comum quanto ao que une os corações, pela virtude moralizadora e consoladora que há em toda fé. Seria o abandono do velho fanatismo. Seria a ruptura desta longa tradição de chicanas que mantém os homens aferrados a subtis dissensões de doutrina, e o anúncio de tempos novos, onde os homens teriam menos a preocupação de se separarem em seitas e igrejas, de cavar fossos e levantar barreiras, do que a de espalhar por uma nobre concórdia o benefício social do sentimento religioso. Chegou a hora desta suprema união das Religiões" (Delassus, pp. 142-143).
No fundo, os americanistas tinham um conceito herético de Igreja e de Religião. Para eles, acima de todas as religiões havia a Religião, da qual todas decorriam, tendo cada qual uma densidade maior ou menor de verdade. A verdadeira Igreja Universal seria a reunião de todas as igrejas particulares. É o que se depreende desta afirmação de Monsenhor Keane, no discurso que fez no famoso Parlamento das Religiões, de Chicago: "Ouvimos, pois, a definição do que é realmente a Religião; definição que saiu de bocas diversas, mas concordantes. Encarando-a sob todos os seus aspectos, vimos como é verdadeira a velha definição de que a Religião significa a união do homem com Deus. Este, como vimos, é o grande objetivo visado por todos, quer caminhem na plenitude da luz, quer tateiem na obscuridade da aurora. E por isso é que vimos o quanto é verdadeiro que a religião é uma realidade mais antiga que todas as religiões. As religiões são sistemas para chegar regular ou irregularmente a este grande fim: a união do homem com Deus. Qualquer sistema que não tenha esse objetivo pode ser uma filosofia, mas não uma religião" (Maignen, p. 330).
A decorrência disto é que a Igreja Católica não é a única verdadeira. Apenas, Ela teria uma densidade maior de verdade e levaria de modo mais regular a Deus. Mas não se segue daí que quem está fora da Igreja se perca ou desagrade a Deus.
Lembrando as condenações de Gregório XVI e Pio IX
As teses americanistas tendiam para o conceito maniqueu de Igreja pneumática, que já estava condenado por inúmeros Documentos pontifícios.
Como esses erros estão muito difundidos também em nossos dias, convém lembrar o que ensinaram os Papas. Escreve Gregório XVI na Encíclica "Mirari Vos", de 15 de agosto de 1832: "Outra causa que tem acarretado muitos dos males que afligem a Igreja é o indiferentismo, ou seja, aquela perversa teoria espalhada por toda parte, graças aos enganos dos ímpios, e que ensina poder-se conseguir a vida eterna em qualquer religião, contanto que se amolde à norma do reto e do honesto. Podeis, com facilidade, patentear à vossa grei esse erro tão execrável, dizendo o Apóstolo que "há um só Deus, uma só fé e um só batismo" (Efes. 4, 5): entendam portanto, os que pensam poder-se ir de todas as partes ao porto da salvação, que, segundo a sentença do Salvador, eles "estão contra Cristo, já que não estão com Cristo" (Luc. 11, 23) e os que não colhem com Cristo dispersam miseramente, pelo que "perecerão infalivelmente os que não tiverem a fé católica e não a guardarem íntegra e sem mancha" (Símbolo de Santo Atanásio)".
O Syllabus de Pio IX condena como indiferentismo as seguintes proposições:
"16.a — No culto de qualquer religião podem os homens achar o caminho da salvação eterna e alcançar a mesma eterna salvação.
17.a — Pelo menos deve-se esperar bem da salvação eterna daqueles todos que não vivem na verdadeira Igreja de Cristo.
18.a — O protestantismo não é senão outra forma da verdadeira religião cristã, na qual se pode agradar a Deus, no mesmo modo que na Igreja Católica" ("Syllabus" de 8 de dezembro de 1864).
O "concílio ecumênico" dos tempos novos
Era natural que os americanistas tivessem simpatia por todos os heresiarcas. Também estes teriam sido inspirados por Deus. Seu erro não teria sido o de professar novos dogmas, e sim apenas o de romper a unidade. Monsenhor Keane, em seu discurso de Chicago já várias vezes citado, afirmou o seguinte com relação a esse ponto: "Homens de boa fé e ardorosos encarnaram boas e nobres ideias em organizações separadas da Igreja e criadas por eles. Tinham razão em suas ideias, estavam errados em sua separação" (Delassus, p. 138).
Quanto aos protestantes de sua pátria, Keane, em artigo enviado de Roma em março de 1898 para o "Catholic World", revista da Congregação Paulista, asseverava que eles "são protestantes simplesmente pela força da hereditariedade e quase todos em perfeita boa fé. Olhamo-los, também a eles, como cristãos, mas como tendo perdido, por culpa de seus antepassados, uma parte do ensinamento cristão" (Maignen, p. 229).
Nada de condenações. Nada de dogmatismo. Eis uma nova Igreja que se esboça... Quando protestantes, Sacerdotes católicos e outros planejaram realizar um congresso das religiões em Paris, um espírita que se intitulava "Synesius, bispo gnóstico de Bordeaux", escreveu as seguintes linhas ao Arcebispo de Paris: "O que nós preparamos não é nem uma assembleia política, nem um conselho de heresiarcas: é o verdadeiro concílio ecumênico dos tempos novos. . . Dele não pode senão jorrar o bem e bênçãos sobre a humanidade" (Delassus, p. 148).
Este "concílio ecumênico dos tempos novos" não poderia fulminar anátemas. Todos têm a verdade. Logo, ninguém pode ser condenado. Nele também não haveria discussões e debates. A polêmica não poderia entrar. Quem polemiza admite uma verdade objetiva, e supõe estar com a verdade. Os americanistas eram subjetivistas e odiavam a polêmica com os inimigos da Igreja.
"Chegou a hora desta união suprema das religiões, escrevia o Padre Charbonnel na "Revue de Paris". Entre os crentes de fé diversa, ou mesmo entre crentes e filósofos, está-se cansado de querelas odiosas, de polêmicas — "polemos", guerra! — nas quais as mais nobres convicções perdem sempre o que faz sua grandeza: a tolerância serena. Eis o projeto. É um sinal dos tempos ter-se podido simplesmente expô-lo. Não se teria conseguido isso há dois anos atrás. Porque, enfim, o congresso universal das religiões será, em nossa velha Europa, o primeiro concílio em que não terá havido anátemas" (Maignen, p. 243).
Defendendo o seu projeto do congresso das religiões, dizia o Padre Charbonnel, em carta que enviou ao Cardeal-Arcebispo de Paris: "Pois bem, Eminência, é preciso enfim que um de nós ouse dizê-lo; um daqueles que não se resignam a deixar prevalecer o autoritarismo dogmático sem legitimidade filosófica e sem humanidade: não, as religiões não são todas boas, mas, sim, em todas há a religião que é boa, e, sim, todas as consciências sinceramente religiosas, em que vive o espírito religioso, são boas pelo valor moral desse espírito religioso e desta sinceridade; não, as religiões não se equivalem todas; mas, sim, todas as consciências retas se equivalem e têm um igual direito de exigir o respeito de suas livres convicções. [. . .] Não cessaremos de dizer e de repetir: é mais do lado do homem que as religiões devem ser consideradas. Não se trata tanto de religiões, quanto de homens religiosos, e não se trata tanto de credo e de verdade, quanto de almas crentes e de sinceridade. E assim, para além das seitas e das igrejas, numa comunhão superior de aspirações, de sentimentos e de orações, forma-se a nova elite das almas religiosas, — a "Igreja", verdadeiramente, de tantos eleitos que, pela elevante paz das crenças, ou por nostalgias e desejos de fé, ou pelos tormentos de um pensamento inquieto, ou por apelos de seu sofrimento, com o olhar dirigido para a luz, buscam a Deus" (Maignen, pp. 249-250).
O Padre Charbonnel não acreditava mais na Igreja Católica, pois já não tinha nada de comum com esta a sua pan-igreja. Pouco depois, decorrência natural de tantos erros, ele renegou oficialmente a fé de seu batismo e abandonou a comunhão católica. Quantos hoje não defendem as mesmas ideias! Quantos, hoje, levados por um falso ecumenismo, deixaram de ser católicos, para passarem a ser fiéis da "nova Igreja Universal", ao lado de cismáticos, hereges, judeus e pagãos!
"Entre nós, católicos, a hierarquia mata o indivíduo"
A teoria americanista de que basta o Espírito Santo para guiar as almas e não há necessidade de direção externa, originou toda uma série de erros.
O Padre Hecker e seus seguidores viam com maus olhos tudo o que significa desigualdade e sujeição de um homem a outro. Todos os homens, guiados diretamente por Deus, seriam iguais. O Espírito falaria em cada homem. Consequentemente, a direção espiritual e a obediência religiosa seriam desnecessárias, e constituiriam mesmo um entrave à ação do Espírito. Mais ainda, a obediência seria contrária à dignidade humana.
No deserto, quando os hebreus buscavam a Terra Prometida, guiados pela coluna de fogo e pela autoridade de Moisés, alguns sacerdotes se rebelaram um dia contra aquele varão santo, dizendo que no povo eleito todos eram santos, todos eram iguais. E Deus puniu severamente Coré, Datan e Abiron, engolindo-os a terra com todos os seus familiares e tudo o que tinham, e desceu um fogo do céu e exterminou os duzentos e cinquenta homens que os haviam seguido em sua revolta igualitária (Núm. 16, 1-35).
Os americanistas imitaram o igualitarismo de Coré e de seu êmulo menos "antiquado", Robespierre. A desigualdade e a hierarquia irritavam-nos. No Congresso Eclesiástico de Reims de 1896, tão simpático às teses do americanismo, houve quem exclamasse: "Entre nós a hierarquia mata o indivíduo" (Barbier, p. 316).
A respeito dos votos religiosos dizia o Padre Hecker : "Em matéria de estabilidade, os homens de caráter firme não precisam de nenhum voto para garantir sua fidelidade a uma vocação divina. Quanto aos homens de caráter fraco, eles podem fazer voto de guardar uma fidelidade exterior, mas, além do fato de que esta lhes traz pouco proveito para eles mesmos, torna-se muitas vezes uma carga para seus superiores e para seus irmãos" (Maignen, p. 66).
Nem mártires, nem monges: cidadãos
Coerente com este princípio era a famosa distinção que os americanistas faziam entre virtudes "ativas" e "passivas". Para eles, as virtudes "passivas" (humildade, obediência, abnegação, etc.) eram inferiores às virtudes "ativas". As primeiras teriam sido características do tempo das monarquias e teriam servido para a defesa da autoridade exterior da Igreja. Com o advento da democracia de 1789, as virtudes própria do católico moderno passaram a ser as "ativas".
Na biografia do Padre Hecker escrita por seu discípulo, o Padre Elliot, leem-se as seguintes considerações a esse respeito: "As virtudes passivas, cultivadas sob a ação da Providência para a defesa da autoridade exterior da Igreja, então ameaçada, produziram efeitos admiráveis como uniformidade, disciplina e obediência. Elas tiveram sua razão de ser quando todos os governos eram monárquicos; agora estes são ou republicanos ou constitucionais, e são considerados como exercidos pelos próprios cidadãos. Esta nova ordem de coisas requer necessariamente a iniciativa individual, o esforço pessoal. A sorte das nações depende da coragem e da vigilância de cada cidadão. É por isso que, sem destruir a obediência, as virtudes ativas devem ser cultivadas de preferência a todas as outras, tanto na ordem natural como na ordem sobrenatural. Na primeira é preciso fortalecer tudo o que possa desenvolver uma legítima confiança em si; na segunda, deve-se dar um grande lugar à direção interior do Espírito Santo na alma individual" (Maignen, p. 102).
Lê-se ainda no mesmo livro: "Nosso século não é um século de mártires, de eremitas, de monges. Se bem que ele tenha seus mártires, seus reclusos, suas comunidades monásticas, não é aí que estão, e não é aí que provavelmente estarão os tipos dominantes da perfeição cristã. Nossos contemporâneos vivem em seus mercados ruidosos, em suas lojas, suas oficinas, seus lares, em todas as situações variadas que formam a sociedade humana, e é aí que é preciso introduzir a santidade. São José é o modelo por excelência desse tipo de perfeição. É preciso que estes deveres e estas circunstâncias se tornem igualmente instrumentos de santificação, porque as dificuldades e os obstáculos de nossos tempos são o que forma nosso caráter; uma vez vencidos, esses obstáculos tornam-se meios de perfeição e títulos de glória. Vede isto claramente, e tereis o tipo de santidade que será cada vez mais a expressão viva da vida atual da Igreja. Ai está o campo de conquista para o heroísmo cristão de agora. Os cuidados, os trabalhos, os deveres, as afeições e as responsabilidades da vida cotidiana formarão os pilares da santidade dos estilitas dos nossos dias. É sob esta forma que triunfará a virtude cristã doravante" (Maignen, p. 131 ) .
Os americanistas diziam, pois, que uma nova espiritualidade, adaptada aos nossos tempos, devia surgir. O que tinha de original essa espiritualidade? Praticar a virtude no trabalho, na escola, no lar, não é novidade. A Igreja sempre ensinou que cada qual deve santificar-se na vida a que foi chamado.
Conclui na pág. 6
Quando o sapo abre a jaula para a hiena...
Plinio Corrêa de Oliveira
A visita do chefe marxista do Estado chileno ao militar que encabeça, na Argentina, um regime oficialmente anticomunista, me leva a abrir um parênteses no tema de que vinha tratando. Com efeito, essa visita oferece aspectos muito interessantes para o leitor brasileiro. E isto me obriga a declarar sem delongas o que acho a respeito.
* * *
Em poucas palavras, o encontro dos dois presidentes, em Salta, deu toda a medida do que é, do que pode e do que opera a conjunção da mentalidade comunista com a mentalidade sapa. A partir daí se explica facilmente a mal velada satisfação que o encontro Lanusse-Allende produziu, tanto nos meios sapos como nos meios comunistas de nosso País. Ao mesmo tempo, o ocorrido em Salta bem mostra de que enorme vantagem para o comunismo é a saparia. E tudo isto oferece pelo menos a vantagem de abrir os olhos de numerosos brasileiros para os perigos a que a crescente influência da minoria sapa pode expor nosso País.
Antes de entrar na matéria, sinto a necessidade de esclarecer em que sentido qualifico de “sapo” o tenente-general Lanusse.
Tenho a este último toda a consideração devida a qualquer Chefe de Estado. Entretanto, a palavra “sapo” é a única com que se designa, entre nós, certo tipo de burguês não comunista, mas entusiasta da “apertura a sinistra”. É, pois, à míngua de outro termo, que chamo de “sapo” o ilustre militar argentino.
Isto posto, vamos diretamente aos fatos. Eu os colhi, todos, na imprensa portenha, naturalmente muito mais minuciosa do que a nossa a respeito do encontro de Salta.
* * *
Quem correr os olhos pela lista dos assuntos alegados como motivo do encontro Lanusse-Allende, não pode deixar de se sentir surpreso. Nenhum deles parece exigir tratativas diretas de Presidente a Presidente. Poderiam, todos, ser folgadamente negociados num contato de chanceler a chanceler. Ou até menos do que isto.
Ora, em torno desta reunião tão pobre de conteúdo, a encenação das cerimônias oficiais e o estrépito publicitário foram — paradoxalmente — enormes. Durante a estadia de Allende em solo argentino, trocaram-se discursos numerosos e importantes, difundidos para a América e para o mundo por toda a coorte de jornalistas argentinos e chilenos presentes.
É impossível evitar a sensação de que o principal objetivo da reunião de Salta não estava, portanto, nas negociações, mas nos discursos. Estes últimos, aliás, se mostraram tão bem concatenados de Presidente a Presidente, que criam a invencível impressão de haverem sido bem combinados antes. Em suma, Salta não foi senão uma tribuna da qual os Srs. Allende e Lanusse quiseram anunciar aos respectivos povos, e a toda a América do Sul, uma mensagem nova.
O elemento central dessa mensagem é a adoção de um novo estilo de relações entre os países comunistas e não comunistas. Ou seja, a queda das chamadas “barreiras ideológicas”. A este respeito, tanto Lanusse quanto Allende fizeram, em tom grandiloqüente e profético, declarações reiteradas. E insofismáveis.
Eis, por exemplo, um tópico de Lanusse: “A República Argentina está disposta a orientar suas relações exteriores de acordo com um amplo critério de universalidade, que não admite restrições impostas por preconceitos ou tabus ideológicos. Em nosso tempo, as filosofias políticas defendidas pelos diferentes países que integram o sistema internacional desempenham um papel secundário em face do interesse supremo da paz e da segurança internacionais” (cf. “La Nación” de 24-7-71).
Logo em seguida, à maneira de ressalva, Lanusse acrescentou, aliás: “Isto não significa abdicar dos princípios constitutivos do ser nacional de cada país” (cf. “La Nación” de 24-7-71).
Como se vê, é a posição sapa característica: os sistemas doutrinários já não têm importância em nossa época. Os grandes homens de outrora consideravam que as ideias valem mais do que a vida. Para o homem de hoje, a vida vale mais do que as ideias.
“É melhor para nós morrer na guerra, do que ver os males de nosso povo e de nossos lugares santos” — exclamou Judas Macabeu quando da gloriosa insurreição de sua família e seus sequazes, contra os pagãos, opressores do povo eleito (1 Mac. 3,59).
A causa da paz é um bem, um altíssimo bem. Não, porém, um bem supremo. E se o preço dela é a inércia ante a investida comunista, mais vale a pena lutar.
* * *
Unilateralidade, exagero! — exclamaria algum sapo. Pois relações internacionais nada têm que ver com ideologia.
Para rebater esta objeção, basta considerar o proveito ideológico que, em Salta mesmo, Allende soube tirar da atitude de Lanusse.
Ao mesmo tempo que o Chefe de Estado platino situava seu governo num plano estritamente técnico, deixando aberto um imenso vazio ideológico, este vazio era desde logo preenchido pela propaganda marcadamente ideológica de Allende. Pois comunista não perde vaza.
Assim é que Allende não deixou passar a ocasião de fazer propaganda ideológica de seu governo pró-marxista, afirmando em discurso a Lanusse: “Através do governo popular que presido, o Chile constrói uma economia humana e independente, inspirada nos ideais socialistas. Queremos reestruturar a sociedade chilena em termos de justiça e liberdade, para alcançarmos um desenvolvimento nacional autêntico, isto é, a serviço do povo trabalhador” (discurso ao receber o Grão Colar da Ordem do Libertador — a maior condecoração argentina — a ele conferida por Lanusse, cf. “La Nación” e “La Prensa” de 24-7-71).
E, aproveitando uma deixa dada pouco antes por Lanusse, acrescentou: “Concordo plenamente, pois, com o Sr. Presidente: a igualdade jurídica não basta para assegurar relações estáveis e harmoniosas. Acrescentamos: enquanto existir uma desigualdade de fato e se manifestarem no mundo pressões imperialistas” (cf. “La Nación” e “La Prensa” de 24-7-71).
Por fim, ambiciosamente — e não sem insolência para com o Brasil e os demais países da América do Sul — passou a traçar um programa socialista para todo o continente ibero-americano: “Nós chilenos, queremos contribuir decididamente para projetar a América Latina no mundo, com personalidade própria, dignidade e independência, o que requer profundas transformações em sua estrutura interna, social e política” (cf. “La Nación”, 24-7-71).
Assim, mal derrubadas as “barreiras ideológicas”, o que surgiu não foi a paz, nem a primeira coisa que entrou do Chile para a Argentina foi dinheiro ou mercadoria, mas... propaganda socialista!
* * *
A coerência estaria a pedir que o Tenente-General Lanusse, paladino da neutralidade ideológica nas relações internacionais, encontrasse algum modo diplomático para exprimir sua rejeição da manobra do marxista Allende.
Qual nada! Depois de, num tópico, lembrar que o regime argentino não é o chileno, ei-lo que afirma o princípio das portas escancaradas para o Chile marxista: “Por esta razão, não há relação de estrangeirismo entre nossos povos. Os que compartilharam de um mesmo passado e estão dispostos a cooperar reciprocamente na preparação de um futuro de maior bem-estar e desenvolvimento, não podem sentir-se estranhos entre si” (cf. “La Nación”, 24-7-71).
Em síntese, realmente as barreiras ideológicas que separavam a Argentina do mundo marxista foram derrubadas. E, logo depois, a propaganda vermelha entrou. É natural. Quando o sapo abate as grades da jaula, a fera sai. E depois, ai! do sapo... ou dos que acreditaram nele.
* * *
Duas observações finais. Uma sobre a impopularidade do que se fez em Salta. Allende vinha desdourado por uma expressiva e rotunda derrota eleitoral em Valparaíso. Lanusse temeu exibir sua política e seu hóspede aos olhos dos portenhos. E por isto, depois de hesitar sobre se o receberia em Buenos Aires, em Bariloche, ou em Mendoza, acabou por o receber em Salta. Por que fugir assim da Capital do País, senão por medo de uma acolhida má?
Quanto a Bariloche, a coisa é outra. Um jornal informou que a célebre cidade de esportes de inverno era pouco segura para Allende... por ser próxima da fronteira chilena: “Quanto a São Carlos de Bariloche, outro dos lugares que se mencionavam, teria sido descartada devido a algumas informações que assinalavam a presença de guerrilheiros chilenos na zona fronteiriça, a curta distância do limite internacional com a Argentina” (“La Prensa” de 24-7-71). E quanto a Mendoza, lá não podia ir Allende por ser também cidade fronteiriça, repleta de chilenos antimarxistas. Não podendo ser realizado em Buenos Aires, nem na fronteira, o festival — eu ia escrevendo o “show” — da derrubada das ideologias teve que se fazer em Salta.
Como se vê, Allende não foi à Argentina só para fazer propaganda no Exterior. Pouco seguro em seu país descontente e agitado, recentemente vencido numa eleição, quis ele também — e principalmente — desanimar seus opositores internos, que talvez esperassem apoio argentino. E também este objetivo, Lanusse auxiliou Allende a obtê-lo plenamente.
Segunda observação: os jornais informaram que o Arcebispo de Salta, Mons. Carlos Mariano Perez, participou dos atos oficiais da visita (cf. “La Prensa” de 24-7-71).
Esta não podia faltar, nos tristes dias em que vivemos!
Transcrito da “Folha de S. Paulo”, 1º.8.1971