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O AMERICANISMO

A novidade americanista está na rejeição da vida contemplativa. A novidade está no desprezo dos conselhos evangélicos e no princípio de que os votos religiosos são inaceitáveis em nosso tempo. A novidade está em considerar que a ação é mais importante do que a oração, quando a Igreja ensinou sempre o contrário. A novidade está em preferir as virtudes naturais às sobrenaturais.

Não é verdade que parecem de um Padre ou leigo "aggiornato" destes nossos tempos as palavras que Monsenhor Ireland escreveu no seu prefácio para a biografia do Padre Hecker? Ei-las: "É com virtudes naturais, praticadas com toda a retidão do coração e do espírito, que se fazem as virtudes sobrenaturais. Cada século tem seu ideal de perfeição cristã. Ora é o martírio, ora a humildade do claustro. Hoje, é-nos necessário o homem de honra cristão e o cidadão cristão. Que os católicos deem o exemplo de um voto honesto e de uma boa conduta social, e assim farão mais para a glória de Deus e a salvação das almas do que se se flagelassem à noite ou fossem em peregrinação a Santiago de Compostela" (Barbier, p. 255).

O Padre Hecker atribuía todos os males da Igreja de seu tempo à crise do século XVI. Mas não acusava os protestantes: a culpa, ele a lançava sobre os que fizeram a Contra-Reforma. Segundo ele, a defesa da Igreja contra o protestantismo teria chegado a excessos, em detrimento das virtudes naturais, que os americanistas estimavam mais que as sobrenaturais. Escrevia Hecker: "A influência da Igreja, por causa das circunstâncias, foi, pois, conduzida a se exercer de algum modo em detrimento das virtudes naturais que, sabiamente dirigidas, fazem a virilidade do cristão do mundo. O que se ganhou foi a manutenção e a vitória da verdade, assim como a salvação das almas; a perda foi uma certa debilitação da energia, que trouxe consigo um enfraquecimento da atividade na ordem natural" (Maignen, p. 124).

Não é de surpreender que os seguidores e defensores do americanismo, como por exemplo o Padre Naudet, declarassem a "Imitação de Cristo", assim como a espiritualidade de São Francisco de Assis ou de Santo Inácio de Loyola, superadas e anacrônicas (Delassus, p. 156).

O Padre Maignen notou que Hecker não apresentava nenhum sinal de verdadeira devoção a Nossa Senhora e ao Sagrado Coração de Jesus, e que, se ele falava constantemente no Espírito Santo, não era para despertar amor e devoção para com a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, mas unicamente para "elevar a personalidade humana a uma intensidade de força e de grandeza, que marcará uma nova era na Igreja e na sociedade" (Maignen, pp. 142- 143 ) .

Salvar a sociedade mais do que salvar os almas

Em suma, os americanistas eram naturalistas. O importante para eles não era o Céu e a vida sobrenatural, e sim o mundo presente e o aperfeiçoamento natural do homem.

O Padre Naudet, por exemplo, dizia em Angers, em 1895: "Cidadãos e cidadãs, eu sou da Igreja de hoje e de amanhã, não da Igreja de há cem anos... O paraíso, eu o quero dar imediatamente enquanto espero o outro". O Padre Naudet enganou-se: ele era da Igreja não "de amanhã", mas de quase cem anos depois. Ele já era da Igreja "pós-conciliar", da Igreja-Nova do IDOC e dos "grupos proféticos", do Pe. Comblin e de outros. Os quais, vê-se agora, são bem antiquados, pois repetem slogans de há quase cem anos atrás.

A propósito deste discurso do Padre Naudet, Monsenhor Delassus cita o comentário de um jornal socialista de Lille, o "Réveil du Nord": "As bem-aventuranças celestes! O Sr. não fez muito caso delas no domingo, Padre! O Céu está muito longe, a cruz é muito pesada. Nós queremos a felicidade aqui em baixo. Foi esta (não é verdade?) a linguagem quase ímpia para a qual o seu coração de democrata-cristão encontrou eloquentes desculpas. De qualquer modo, o Sr. prega hoje as felicidades terrenas: saíram de seus lábios, contra a riqueza ociosa e contra a exploração do homem, períodos inflamados que seus amigos que o aplaudiram no domingo qualificam invariavelmente, quando ditos por um dos nossos, de excitações ao ódio, à inveja e às piores paixões humanas" (Delassus, pp. 160-161).

Se o jornal socialista de Lille pudesse prever como o Padre Naudet seria seguido, e por quem... Naquele tempo, um jornal socialista estranhava o fato de um Sacerdote democrata-cristão e americanista difundir teses revolucionárias. Hoje, bom número de sermões têm esse tom. Quem mudou? Mudou a Igreja? Ou certos eclesiásticos "aggiornati" mudaram de Igreja?

Como nota Henri Bargy, a religião dos americanistas era "uma religião da humanidade enxertada no Cristianismo". Ela "não mais ensina a morrer, mas a viver, ela é uma escola de energia prática. [...] A religião se preocupa cada vez mais em salvar a sociedade e cada vez menos em salvar os indivíduos. Em lugar do Paraíso, ela oferece uma recompensa: o aperfeiçoamento social. O cristianismo torna-se uma mutualidade, reduz-se a uma fraternidade" ("La religion dans la société aux EtatsUnis", 1902, apud Barbier, pp. 243-244).

O americanismo foi muito bem definido como sendo o culto da humanidade.

"A forma de governo dos EUA ajuda o Espírito Santo"

Outra nota do americanismo era seu pacifismo extremado. Queria estabelecer a paz entre a Religião e a ciência pretensiosa do século XIX, entre as várias religiões, entre a Religião e o ateísmo. Era coerente com isso o fato de Monsenhor Keane falar com desprezo — como já vimos — das fronteiras nacionais e das lutas a que elas dão lugar.

O naturalismo, entretanto, levava os americanistas a delírios patrióticos e a caírem assim em contradição.

Um autor da época, Henri Bargy, que já citamos, observa que nos Estados Unidos "a Igreja quer fazer de cada católico um norte-americano, mesmo com o risco de fazer dele um protestante", porque "a lealdade para com o país deve prevalecer até mesmo sobre o devotamento à fé" (Barbier, p. 257).

Em matéria política, consideravam os americanistas que a forma de governo yankee era preferível a qualquer outra para a Igreja. A esse respeito escrevia o Padre Hecker: "A forma de governo dos Estados Unidos é preferível a qualquer outra para os católicos. Ela é, mais do que as outras, favorável à prática das virtudes que são as condições necessárias para o desenvolvimento da vida religiosa no homem. Ela lhe deixa uma maior liberdade de ação e, consequentemente, torna-lhe mais fácil cooperar com a direção do Espírito Santo. Com estas instituições populares, os homens gozam de maior liberdade para o cumprimento de seu destino. A Igreja Católica será, pois, tanto mais florescente nesta nação republicana, quanto mais os representantes da Igreja seguirem, na vida civil, a doutrina republicana" (Maignen, p. 174).

Anos depois, o movimento do "Sillon" repetiria esses mesmos erros, que São Pio X condenou então nestes termos : "O "Sillon" [...] semeia portanto entre a vossa juventude católica noções erradas e funestas sobre a autoridade, a liberdade e a obediência. Outra coisa não acontece quanto à justiça e à igualdade. Trabalha, como afirma, para realizar uma era de melhor justiça. Assim, para ele, toda desigualdade de condição é uma injustiça ou, pelo menos, uma justiça menor. Princípio soberanamente contrário à natureza das coisas, gerador de inveja e de injustiça, subversivo de toda a ordem social. Assim, só a democracia inaugurará o reino da perfeita justiça! Não é isto uma injúria às outras formas de governo, que são rebaixadas, por este modo, à categoria de governos impotentes, apenas toleráveis?" (Carta Apostólica "Notre Charge Apostolique", de 25 de agosto de 1910).

Contra a tese da união entre Igreja e Estado

O indiferentismo religioso e o igualitarismo deviam levar os americanistas a defenderem também a tese liberal da separação entre a Igreja e o Estado. Para eles, toda situação de privilégio para a Igreja era execrável.

O Padre Maumus escrevia em "L'Univers" de 13 de março de 1898: "Eu disse, e repito, que a liberdade de direito comum, isto é, a liberdade pública, é para a Igreja uma situação melhor que a da proteção e do privilégio" (Maignen, p. 180).

Monsenhor O'Connell, que foi Reitor do Colégio Americano em Roma, exprimia-se com mais cautela: "Por mais verdadeira e bela que seja em teoria a doutrina da união legal entre a Igreja e Estado, entretanto, na prática, infelizmente, aconteceu com frequência que ela teve por resultado prejudicar gravemente a Igreja, diminuindo sua liberdade e dando a leigos, muitas vezes desprovidos de piedade, a ocasião de se intrometerem indevidamente na administração dos negócios religiosos. [...] Qualquer que seja a teoria ou a tese, este sistema [o dos Estados Unidos] parece ter tão bons efeitos como qualquer outro sistema atualmente em vigor. [...] E, ainda que a Igreja não goze de nenhum privilégio legal, Ela não deixa de encontrar um apoio de ilimitada eficácia na calorosa simpatia de um povo cristão e na irresistível influência de uma opinião pública favorável" (Maignen, pp. 180-182).

Algumas medidas concretas propugnadas pelo americanismo

Quando os judeus, certa vez, estavam transportando a Arca da Aliança, num carro, como a estrada fosse má o veículo inclinou-se muito e a Arca ameaçou tombar. Um israelita procurou segurá-la, e foi fulminado por Deus porque não era do número dos levitas, os únicos que nela podiam tocar (2 Reis 6, 6-7). São Gregório Magno explica que esse homem representa os hereges que, vendo a Igreja em perigo, se arrogam o múnus de corrigir Lhe a posição, a pretexto de ampará-La.

Costumam os hereges clamar que a Igreja cometeu erros, e para corrigi-La apresentam uma longa lista de reformas, de fundo revolucionário.

Os americanistas não fugiam à regra. Vimos que seu programa reformista não poupava o que há de mais sagrado na doutrina católica e na disciplina eclesiástica.

Eles consideravam que o I Concílio do Vaticano, proclamando a infalibilidade do Papa, levara a Contra-Reforma a seu último extremo, e garantira plenamente a autoridade exterior da Igreja. Com isso tornara-se possível renovar inteiramente esta última. O dogma da infalibilidade do Papa representaria uma tal garantia para Ela, que não mais caberia a preocupação de defendê-La. O que seria preciso agora era dar-Lhe uma nova feição, apta para atrair os dissidentes e pagãos.

Para levar a cabo esse programa, propugnavam os americanistas uma reformulação dos Seminários a fim de formar o novo tipo de Padre, de que o próprio Hecker fora o precursor. Os futuros Sacerdotes deveriam receber uma formação "mais humana".

O Padre Naudet afirmava que "a formação do Clero é por demais exclusivamente clerical e insuficientemente humana. Habitua-se por demais o jovem a não ver em seu futuro ministério senão o papel sobrenatural, ou mais exatamente o lado puramente religioso" (Delassus, p. 174).

No fundo, o que pedia o Padre Naudet é que nos Seminários se ensinasse menos Teologia e mais sociologia e economia. Hoje esta reforma está feita em numerosos lugares: nestes, os eclesiásticos deixaram de lado o sobrenatural e o cuidado das almas, e pretendem entender da produção de cebolas...

No Congresso Eclesiástico de Reims de 1896 defenderam-se as teses americanistas e houve quem exclamasse: "Não poderia haver a peregrinação dos Padres que se iriam batizar homens, que iriam sacudir as cadeias de um sistema odioso em que o Coadjutor não pensa senão conforme o Pároco, este conforme o Bispo, e o Bispo conforme o Governo? Entre nós a hierarquia mata o indivíduo" (Delassus, p. 180).

Até a administração suprema da Igreja era visada pela fúria reformista do americanismo. O Padre Hecker permitiu-se dar estes conselhos ao Papa, sem que este os houvesse pedido:

"1.° — Pôr toda a Igreja na condição dos países de missão e fazer da [Congregação de] Propaganda [Fide] o braço direito da Igreja;

2.° — Escolher os Cardeais dentre todas as nações, a fim de fazer deles um Senado que represente a Cristandade inteira;

3.° — Adotar meios e métodos modernos na tramitação dos negócios da Santa Sé" (Maignen, pp. 34-35).

* * *

O americanismo foi condenado por Leão XIII, mas não morreu. Ele continuou vivo no "Sillon", suas mesmas ideias, com outras afins, ressurgiram no modernismo. Morreu o modernismo?

O que mais impressiona nos textos dos autores americanistas — insistimos — é a sua atualidade. Lendo-os tem-se a impressão de que foram escritos por adeptos da Igreja-Nova "pós-conciliar". Americanismo, sillonismo, modernismo, progressismo, "profetismo", não passam de ramos de uma mesma árvore. São tentáculos do mesmo polvo que há séculos procura envolver a Igreja. Contra essa heresia, devemos invocar Aquela que é o Trono da Sabedoria e o Auxílio dos Cristãos, Aquela que esmagará afinal a cabeça da antiga serpente.


BARBIER, Emmanuel — "Histoire du catholicisme libéral et du catholicisme social en France / Du Concile du Vatican à l'avènement de S. S. Benoit XV (1870-1914)" — Imprimerie Y. Cadoret, Bordeaux, 1924, tome troisième.

DELASSUS, Henri "L'Américanisme et la conjuration antichrétienne" — Société de Saint Augustin, Desclée, De Brouwer et Cie., Lille-Paris, 1899.

GREGÓRIO XVI — Carta Encíclica "Mirari Vos", de 15 de agosto de 1832, sobre os principais erros de seu tempo — Editora Vozes Ltda., Petrópolis, 1953, 2.a edição.

LEÃO XIII — Carta Apostólica "Testem Benevolentiae", de 22 de Janeiro de 1899, ao Cardeal James Gibbons, Arcebispo de Baltimore, sobre o americanismo — apud Delassus, obra citada.

MAIGNEN, C.M., Charles — "Le Père Hecker est-il un Saint? / Etudes sur l'Américanisme" Desclée, Lefebvre et Cie. — Librairie de Victor Retaux, Rome-Paris, 1899.

PIO IX — Silabo de 8 de dezembro de 1864, contendo os principais erros de nossa época, notados nas Alocuções Consistoriais, Encíclicas e outras Letras Apostólicas do Nosso Santíssimo Padre, o Papa Pio IX — Editora Vozes Ltda., Petrópolis, 1964, 4a. edição.

SÃO PIO X — Carta Apostólica "Notre Charge Apostolique", de 25 de agosto de 1910, sobre os erros do "Sillon" — Editora Vozes Ltda., Petrópolis, 1952, 2.a edição.

SÃO PIO X — Carta Encíclica "Pascendi Dominici Gregis", de 8 de setembro de 1907, sobre o modernismo — Editora Vozes Ltda., Petrópolis, 1952, 2.a edição.

(SÃO PIO X) — Decreto "Lamentabili", de 4 de julho de 1907, da Sagrada Inquisição Romana e Universal (Silabo das proposições dos modernistas condenadas pela Igreja) — Editora Vozes Ltda., Petrópolis, 1952, 2.a edição.


JOVENS RECEBEM FORMAÇÃO ANTICOMUNISTA

Com a participação de 180 jovens de 15 Estados do Brasil, e de 30 outros de diversos países latino-americanos, tiveram lugar em São Paulo, de 3 a 6 e de 10 a 16 de julho p. p., a IV e V Semanas Especializadas para a Formação Anticomunista, da TFP.

Nesses encontros foi desenvolvido um intenso programa de conferências, debates, círculos de estudo, projeções de filmes e áudios-visuais, versando temas doutrinários e problemas da atualidade, e apresentando os princípios básicos para uma ação anticomunista autêntica em nossos dias. As conferências e a direção dos debates estiveram a cargo de membros do Conselho Nacional, sócios e militantes da TFP.

Da IV SEFAC participaram jovens procedentes do Pará, Maranhão, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Bahia, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Guanabara, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Goiás. Na sessão de encerramento, realizada no auditório da Bolsa de Mercadorias de São Paulo, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira discorreu sobre os fundamentos da propriedade privada, como decorrência da natureza livre e racional do homem.

A V Semana foi promovida pela TFP brasileira em colaboração com suas congêneres argentina, chilena (no exílio), uruguaia e colombiana, e reuniu jovens daquelas nacionalidades, além de brasileiros.

O encerramento deste segundo certame deu-se no dia 16, também no auditório da Bolsa de Mercadorias, ocasião em que o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira proferiu vibrante discurso sobre a defesa dos fundamentos morais e religiosos da civilização cristã.

Por coincidir a data com a festa de Nossa Senhora do Carmo, Padroeira do Chile, foi prestada uma especial homenagem à infeliz nação andina, que vive dias de angústia sob o regime marxista de Allende.

Na sessão de encerramento de ambas as Semanas falaram ainda representantes dos diversos Estados e dos países estrangeiros, e o Coro São Pio X, da TFP, executou peças de canto polifônico


Calicem Domini Biberunt.

A CONGREGAÇÃO DE PARIS ATRAI A NOBREZA JOVEM

Fernando Furquim de Almeida

As tumultuosas negociações da concordata foram conduzidas por Napoleão com o uso sistemático do binômio medo-simpatia. Ora ele agradava a Santa Sé com uma concessão em favor da liberdade de culto na França, ora fazia ameaças, e ao mesmo tempo apoiava ou suscitava oposições dos revolucionários, que intimidavam os representantes da Santa Sé e os católicos tíbios, temerosos de voltar às condições difíceis em que tinham sido obrigados a viver para se manterem fiéis à Religião dos seus antepassados. No entanto, como vimos, Bonaparte era o principal interessado na celebração da concordata, pois constatara que precisava do apoio da Igreja para se manter no poder, por isso que o povo francês, apesar dos anos de perseguição, continuava profundamente católico.

Assinado o tratado, o Primeiro Cônsul — sob o fútil pretexto de que só assim poderia obter a aprovação dos órgãos competentes do governo, que no entanto ele dominava completamente — acrescentou ao texto os chamados artigos orgânicos, os quais anulavam todas as restrições à ingerência estatal em matéria eclesiástica, que a duras penas os negociadores pontifícios tinham conseguido incluir. Embora esse adendo não tenha sido reconhecido pelo Papa, Napoleão o manteve e criou uma situação de fato, isto é, tudo se passava como se a concordata tivesse sido aprovada com os artigos orgânicos.

Alguns anos depois Pio VII pôde verificar pessoalmente como a França continuava católica. Indo a Paris, a fim de sagrar Napoleão Imperador dos Franceses, foi recebido entusiasticamente pelas populações de todas as cidades por onde passou. Em Paris, a acolhida que recebeu foi triunfal, e tendo Fouché lhe perguntado como encontrara a França, o Papa respondeu: "Bendito seja o Céu! Nós a atravessamos por entre um povo de joelhos! Estávamos longe de imaginála nesse estado!"

Com a distensão produzida pela política eclesiástica de Napoleão, o movimento católico francês, que durante tantos anos fora obrigado a viver na clandestinidade, confinado em esconderijos e mantido em constante sobressalto pelas freqüentes investidas da polícia, voltou pouco a pouco à luz do sol, e começou a promover uma verdadeira renovação religiosa do país. As propulsoras desse ressurgimento foram as Congregações Marianas, que se fundaram em várias cidades. A que mais se distinguiu entre elas, assumindo a liderança do movimento católico francês, foi a Congregação Mariana "Sancta Maria Auxilium Christianorum", fundada em Paris a 2 de fevereiro de 1801 pelo Padre Jean Baptiste Bourdier Delpuits.

Delpuits entrara na Companhia de Jesus aos dezessete anos, em 1753. Com a expulsão dos jesuítas em 1762, como ele ainda não fizera os votos solenes, pôde permanecer na França e passar para o clero secular. Depois de ter exercido o ministério na província por algum tempo, foi para Paris, onde o Arcebispo Monsenhor Christophe de Beaumont nomeouo Cônego da Colegiata do Santo Sepulcro. Tornouse muito conhecido como pregador de retiros espirituais. Durante a Revolução, não abandonou a França. Foi um dos sacerdotes heroicos que, desafiando os revolucionários, levavam aos fiéis o socorro dos sacramentos. Juntamente com valorosos leigos católicos, lutavam pela conservação da verdadeira Religião.

* * *

A Congregação "Sancta Maria Auxilium Christianorum" começou modestamente na própria residência do Padre Delpuits, com um núcleo inicial de seis jovens estudantes das faculdades de Direito e Medicina de Paris. Nenhum deles, talvez nem o próprio Padre Delpuits, poderia prever o papel que estava reservado a essa associação que se instalava de forma tão modesta. A Congregação se tornaria famosa, influiria na política francesa e seria uma verdadeira sementeira de grandes líderes católicos no século XIX.

A Revolução dedicara um especial cuidado ao ensino superior, para difundir os seus erros na juventude. Incentivou os estudos nas faculdades já existentes e criou outras; todas tiveram grande desenvolvimento e prestígio no tempo de Napoleão. Podese imaginar o ambiente que nelas reinava. Formados de acordo com as ideias revolucionárias, professores e alunos se estimulavam uns aos outros no combate a toda a ordem antiga, esmerando-se nos ataques à Religião. Fazendo numa sessão da Congregação o elogio fúnebre de Paul Emile Teysseyrre, antigo aluno da Escola Politécnica, o Duque de Rohan assim se exprimia sobre o ambiente desta na época a que nos referimos:

"Nessa escola, a elite da juventude francesa, emergindo dos horrores da anarquia revolucionária, demonstrava toda a energia que suscitam os grandes abalos políticos, mas também a imoralidade que acompanha, de ordinário, as revoluções. O desejo da glória, nela se transformara em frenesi; o amor da pátria degenerara em fanatismo, porque o amor de Deus, único motor dos sentimentos grandes e nobres, encontrava os corações fechados; a França parecia colocar a esperança de sua felicidade nessa juventude borbulhante, enquanto a Religião, chorando sobre as infelicidades passadas, tremia diante dos triunfos que se anunciavam".

O pequeno grupo do Padre Delpuits enfrentou corajosamente tanto a hostilidade dos colegas quanto a má vontade dos professores, e desfraldou nas escolas superiores a bandeira da Congregação. A luta dos seus jovens foi árdua, mas em pouco tempo vários de seus colegas vieram juntarse a eles, fazendose congregados para ajudálos na propagação das ideias contra-revolucionárias e nas vitoriosas discussões que sustentavam com os professores. Foi graças a esse apostolado perseverante que dois estudantes se inscreveram no novo sodalício, e durante toda a vida permaneceram fiéis aos ideais da mocidade, sem embargo de se terem tornado cientistas eminentes. Foram o célebre médico Hyacinthe Laënnec e o Barão Augustin Louis Cauchy, um dos maiores matemáticos de todos os tempos.

Mas não eram só os estudantes que formavam a elite da juventude dessa época. A nobreza, cruelmente dizimada pela Revolução, dela saíra fortalecida e prestigiada. Como em sua grande maioria os mais velhos tinham perecido no cadafalso, eram os seus jovens descendentes que ostentavam os maiores títulos nobiliárquicos da antiga monarquia. Napoleão cortejavaos, sobretudo depois de instaurar o império, e toda a França voltava para eles os seus olhos. Também esses jovens aristocratas o Padre Delpuits conseguiu atrair, e logo no primeiro ano de existência da Congregação nela entraram o Duque Mathieu de Montmorency-Laval e o Marquês Eugène de Montmorency. Depois, um a um foramse inscrevendo nos quadros do sodalício o Duque de Béthune Sully, o Duque de Rohan, o Príncipe Jules de Polignac, o Conde Alexis de Noailles, o Marquês de Rivière, Charles de Levis Mirepoix, Louis de Rosambo, Charles de Breteuil, Emmanuel de Cossé Brissac e numerosos outros portadores de grandes nomes, que ilustram a história da cristandade.

O Duque Mathieu de Montmorency tornouse logo a alma da Congregação. Foi o seu dirigente durante muitos anos, e as principais iniciativas católicas durante o Império e a Restauração tiveram o seu apoio decidido, quando não foram por ele mesmo planejadas e executadas.

Também a Congregação "Sancta Maria Auxilium Christianorum" constitui uma prova da pujança do Catolicismo francês ao tempo das negociações da concordata. Fundada antes da ratificação desta pelo Papa Pio VII, com apenas seis membros, ao completar um ano de existência contava já com setenta congregados e um bom número de vitórias contra a Revolução.


NOVA ET VETERA

DO DEFENSOR DE D. VITAL AO AMIGO DE D. HELDER

J. de Azeredo Santos

Com atraso de cerca de quatro anos, cai-nos agora nas mãos o livro do Sr. Cândido Antônio Mendes de Almeida, "Memento dos Vivos / A Esquerda Católica no Brasil" ("Tempo Brasileiro", Rio, 1966).

Em resumo, a finalidade da obra é a seguinte: fazer o nosso pobre Brasil passar daquilo a que o autor dá o nome de economia colonial, para os encantos sinárquicos da economia socialista, seguindo o exemplo de Cuba e do Chile (pois o desventurado país andino, ao sair o livro, já se achava em fase pré-socialista nas mãos do demo-cristão Eduardo Frei Montalva).

* * *

Cita o Sr. Cândido Mendes, em rápido retrospecto dos principais estágios por que passou a esquerda-católica no Brasil, o movimento de "Economia e Humanismo", a Democracia-Cristã com "suas pompas e suas ambições" (p. 42), o solidarismo, o que ele classifica como "primeira ruptura", representada pela "opção" da Ação Popular (p. 50), a cisão havida no Centro Dom Vital. Relaciona as "fontes para análise da confrontação entre a geração de "A Ordem" e a temática do desenvolvimento".

Embora dedique algumas páginas à direita católica, frisando "a importância do pensamento de João XXIII na primeira denúncia frontal a um envolvimento pelo integrismo, possivelmente o "pecado original" da inteligência católica" (p. 165), o autor — que em matéria de citações não esquece nem os rançosos "abbés democratiques" da "Belle Époque" (p. 89) — ao tratar da história do movimento político-social católico no Brasil de nossos dias, não enxerga, talvez por falta de perspectiva (como acontecia com o rei de Lilliput diante de Gulliver) esse gigante que é a TFP, cuja atuação repercute além das fronteiras do País e mesmo dos limites continentais.

O Sr. Cândido Mendes, por força, haveria de se mostrar simpático, e isto através de várias páginas, ao famigerado MEB, a seu ver um excelente meio de "conscientizar" as massas (pp. 200-215).

Como o princípio de subsidiariedade é uma pedra no caminho do socialismo, procura removê-la com toda a desenvoltura: "Ficando ainda na proposição tradicional, do princípio de subsidiariedade, [a Encíclica "Pacem in Terris"] não obstante já se ordena ao seu desdobramento enunciando-o com a profundidade e a largueza suficientes para a compreensão de um eventual papel dominante do Estado nas economias em desenvolvimento, ou, mesmo nelas, da aceitação de um socialismo necessário" (p. 122). Já se foi, portanto, a fase em que o falecido Alberto Pasqualini, teórico do trabalhismo no Brasil, declarava que o socialismo não podia ser introduzido em países de técnica atrasada, sendo próprio de povos como os escandinavos, de organização ultra adiantada. Vem agora o Sr. Cândido Antônio Mendes de Almeida e diz ser indispensável a aplicação ao "Terceiro Mundo" do "socialismo necessário" (pp. 134-135). Um traço comum une, porém, o antigo líder do PTB e o secretário da Comissão Justiça e Paz: é o de querer que o Estado assuma desde logo papel dominante na economia ("estatismo necessário", p. 148), o que forçosamente redundará, mais cedo ou mais tarde, na implantação do socialismo integral.

* * *

Estamos no âmago do livro: "O centro da investigação, pois, do presente trabalho, se desloca para o exame da possibilidade de, na perspectiva atual da doutrina social da Igreja, se adotarem novos modelos de socialismo como técnica de desenvolvimento, para a realização do bem comum concreto nos países do Terceiro Mundo. Poderemos falar mesmo para tais países, em modelos de um "socialismo necessário", desde que a expressão não implique os conteúdos ideológicos e doutrinários que as próprias encíclicas procuraram afastar" (pp. 134-135). Incide aqui o autor na falácia própria dos esquerdistas católicos, com o Sr. Alceu Amoroso Lima à frente, segundo a qual o pernicioso do socialismo estaria na filosofia de vida, mas nada teria ele de contrário à doutrina da Igreja enquanto encarado do ponto de vista meramente econômico, — tirada de corpo que somente é possível para quem faz tabula rasa do que se acha claramente escrito nas Encíclicas papais.

Assim se explicam as catilinárias do autor contra a livre empresa e em particular contra a sociedade orgânica e os grupos intermediários, coisas indesejáveis contra as quais "deveríamos nos resguardar" (p. 149). A "Igreja peregrina" (p. 166) deveria despojar-se de tudo o que possa parecer um entrave ao advento desse "socialismo necessário".

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O que diz o autor sobre o emprego da polissemia (fenômeno da existência simultânea de várias significações para uma mesma palavra), do cinema, da televisão, do teatro, do folclore, para a transformação revolucionária da sociedade (pp. 217-243), é coisa velha e conhecida. Basta que nos lembremos dos trovadores provençais e de sua linguagem cifrada, para os quais a "dama de seus amores" era a igreja catara, etc. etc., e que tenhamos os olhos abertos para a propaganda subversiva acobertada por todo o gênero de espetáculos e de contestações que hoje surgem como cogumelos por todos os lados.

Para a esquerda-católica tudo são armas, inclusive levar a sério um pensamento dos "patriarcas" e "metropolitas" da igreja cismática moscovita, meros títeres nas mãos dos senhores do Cremlin (p. 250).

Não deixa de ser melancólico que o descendente de um dos mais destacados defensores de Dom Vital se alinhe ao lado do novo e lamentável ocupante da gloriosa Sé de Olinda e Recife nessa deplorável atividade tão danosa à causa da Igreja e da Pátria. E que o secretário da Comissão Justiça e Paz seja partidário de uma "justiça" caolha, cega aos horrores do socialismo a ponto de querer o domínio desse Leviatã sobre o chamado Terceiro-Mundo, e pugne por uma "paz" que prepara a mais espantosa das hecatombes, aquela anunciada na Cova da Iria e que só terminará quando, condoída dos povos oprimidos pelo omniarca totalitário, um dia a Virgem Se levantar para libertar de seus algozes a pobre humanidade para cujo resgate o Filho de Deus derramou todo o seu preciosíssimo Sangue no alto do Calvário, tendo ao lado Aquela que é terrível como um exército em formação de batalha e que, sozinha, esmagou todas as heresias no mundo inteiro.