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ASPECTOS ESQUECIDOS DA FIGURA DE SANTA TERESINHA DO MENINO JESUS E DA SAGRADA FACE

Caio Vidigal Xavier da Silveira

“Meus desejos sobem ao infinito. O que Deus me reserva após a morte, o que pressinto de glória e de amor ultrapassa de tal modo tudo o que se pode conceber, que sou forçada, por momentos, a deter meu pensamento. J'en ai comme le vertige"(1).

Quem é esta que assim previu o "furacão de glória" (2) que o futuro lhe reservava? Quem é esta que não titubeou em olhar de frente a sua própria glória póstuma? É a maior Santa dos tempos modernos, como a chamou o batalhador contra o modernismo, o grande São Pio X.

Santa Teresinha do Menino Jesus e da Sagrada Face sabia-se santa e não teve escrúpulos em confessá-lo. Previu sua glorificação e não temeu considerá-la. Teve uma misteriosa intuição da missão universal que o futuro lhe reservava e não receou proclamá-lo: "Ah! je le sais bien, tout le monde m'aimera..."(3).

Mas é bem esta Santa Teresinha?! É isto humildade e simplicidade?! A figura que a piedade de incontáveis católicos dela delineou parece tão diversa! Como pôde uma Santa tão pródiga de sorrisos e de rosas, tão piedosa e tão afável, humilde e obscura, assim proclamar sua própria santidade e prever sua própria glória? Não se choca isto com a ideia que a devoção católica ao longo de cinquenta anos fixou a seu respeito?

Não. Cumpre neste seu centenário restituir-lhe a figura em toda a sua estatura, como realmente ela foi. Longe de nós negar seus sorrisos e as rosas que ela mesma prometeu lançar como uma chuva sobre o mundo até o fim dos tempos. Cumpre, porém, conhecermos a totalidade de sua fisionomia espiritual, sem deixar num injusto esquecimento nenhum dos aspectos de alma dessa grande Santa, a maior dos tempos modernos. A par de toda sua doçura, pequenez e misericórdia — que tanto nos encantam, nos embevecem mesmo, e que tanta paz infundem em nossa alma quando, com seus suaves unguentos, como só ela o sabe fazer, maternalmente e com indizível carinho pensa nossas feridas e nossas chagas — cumpre a par disto focalizar os demais traços, admiravelmente sacrais, da Monja que foi profetiza e — por que não dizê-lo? — guerreira, lutando até o último suspiro como um soldado no derradeiro renhido assalto: "Morrerei num campo de batalha, de armas na mão!" (4). Por que só falar da chuva de rosas e do sorriso, e fazer calar a guerreira-profetiza?

Mais reconhecida e enlevada homenagem não saberíamos prestar-lhe nesta grande data em que comemoramos o centenário de seu nascimento.

Intuição profética de sua missão póstuma

"Eu sinto que vou entrar no repouso — afirmou a Irmã Teresa já no leito de morte — mas sinto, sobretudo, que minha missão vai começar, minha missão de fazer amar a Deus como eu O amo, de dar minha pequena via às almas. Meu coração exulta a essa ideia" (5).

"Os Santos me dizem: enquanto estás no cárcere, não podes preencher tua missão; mais tarde, porém, após a morte, então é que será o tempo de teus trabalhos e de tuas conquistas" (6).

Tal certeza tinha ela do cumprimento de sua missão póstuma, que à Madre Agnès, que previa dificuldades para a publicação de seus manuscritos, disse: "Quanto à minha missão, como a de Joana d'Arc, a vontade de Deus será cumprida apesar da inveja dos homens" (7).

Nos últimos meses de vida a pequena Teresa estava como que empolgada pelo desejo de voltar à terra quando estivesse no Céu. Este pensamento não a abandonava, perguntando-se ela, com certa inquietação, como isto se daria. Suas promessas então se multiplicaram: "eu voltarei" (8), "eu descerei" (9), "farei cair uma chuva de rosas" (10), "passarei o meu Céu a fazer o bem sobre a terra" (11), "je ne me reposerai qu'après que le dernier des élus sera sauvé" (12).

Santa Teresinha previu, de forma também misteriosa, a prodigiosa difusão da História de uma Alma, que desde logo alcançou tiragens imensas. Vendo em seus manuscritos o instrumento escolhido por Deus para o cumprimento de sua missão, dera à Madre Agnès instruções precisas e exatas para publicá-los "sem nenhuma demora", após sua morte. Recomendara-lhe não falar do projeto a ninguém, até que a obra estivesse publicada. "Se vos demorardes, se cometerdes a imprudência de falar a quem quer que seja, o demônio vos armará mil ciladas para impedir esta publicação" (13).

No primeiro aniversário de sua morte, a 30 de setembro de 1898, saía a lume a primeira edição, timidamente limitada a 2 mil exemplares! O sucesso foi imediato. Em 1902, quando da quinta edição em francês, o livro já estava traduzido em cinco outras línguas. Nos doze primeiros anos, antes da abertura do Processo Diocesano de Beatificação, a tiragem atingiu o total de 47 mil exemplares. De 1910 a 1915 foram editados mais 164 mil exemplares. Hoje o cômputo atingiria a casa dos milhões. Infelizmente, a total destruição do Office Central de Lisieux e de seus arquivos no bombardeio de junho de 1944, durante a invasão da Normandia, impede uma avaliação exata. Contudo, na biblioteca do Carmelo de Lisieux — poupado milagrosamente pelas bombas — pode-se contar edições da História de uma Alma em 38 línguas estrangeiras!

"De um extremo a outro do mundo, há milhões de almas cuja vida interior sofreu a influência benfazeja desse pequeno livro", proclamou o Cardeal Pacelli pouco antes de ser eleito Papa (14). Era a realização dos pressentimentos proféticos da pequena Teresa.

"Minha via é segura" - Os prodígios do Carmelo de Gallipoli

Santa Teresinha sabia-se fundadora de uma nova via de santificação, e que sua missão era anunciá-la aos homens. Prometeu às suas noviças não as deixar em erro no tocante a este ponto. Caso sua via fosse falsa ou enganosa, ela obteria de Deus permissão para vir adverti-las imediatamente. "Jus'que-là croyez que ma voie est sure, et suivez-la fidèlement" (15).

Assim foi que, nos anos de 1910 e 1911, o Carmelo de Gallipoli, no sul da Itália, conheceu as maravilhas da pequena Teresa. Encontrava-se ele em tal pobreza, que já se pensava em seu fechamento. Lera-se no refeitório a biografia de uma Religiosa francesa, Irmã Teresa do Menino Jesus. Apelou-se para ela, invocando seu socorro. Um tríduo de orações foi organizado: terminaria no dia 16 de janeiro de 1910.

Nessa noite a Superiora, Madre Carmela, doente, vê chegar junto de seu leito uma jovem Carmelita, envolta em claridade celestial. A Religiosa desconhecida oferece 500 francos para pagar as dívidas da Comunidade e convida a Madre a segui-la à portaria, onde, na gaveta de uma pequena escrivaninha, um cofrinho serve de caixa-forte. Era preciso descer ao rés-do-chão, no frio, na escuridão. A Priora hesita. Ela sente-se febril. Não estará sendo vítima de uma alucinação? É impossível resistir, o convite é ternamente imperioso. Ao longo dos corredores Madre Carmela segue a jovem Monja cujo esplendor a guia. Abre a escrivaninha que nada contém senão contas a saldar, e cai de joelhos diante de sua benfeitora que ali deposita os 500 francos. "Oh! minha Santa Madre!" — exclama embevecida a Priora, julgando estar na presença da Reformadora do Carmelo, Santa Teresa de Ávila. "Não, eu não sou nossa Santa Madre; sou a serva de Deus Irmã Teresa de Lisieux. Hoje, no Céu e na terra, festeja-se o Santo Nome de Jesus..."

Como a celeste visitante se afastasse após lhe ter dado inefáveis sinais de ternura, Madre Carmela a previne: "Cuidado, podeis errar o caminho!" Os corredores do convento eram, um pequeno labirinto. A resposta, levemente jocosa, encerrava um sentido misterioso: "Non, non, ma voie est sure et je ne me suis pas trompée en la suivant". Era a promessa outrora feita às noviças que se cumpria.

Na manhã seguinte a Superiora estava profundamente emocionada. Cobriram-na de perguntas. Não teria sido um sonho? A nota de 500 francos, contudo, ali estava para atestar o milagre.

Ao longo desse trimestre, repetidas vezes a pequena Teresa sub-repticiamente introduz na escrivaninha novas somas, sempre o justo necessário para que o Carmelo não fique na miséria. Em maio volta em pessoa. Repete-se a visita na festa de Nossa Senhora do Carmo, 16 de julho. Mas desta vez desaparecem 100 francos da caixa do Bispado! O Bispo suspeita da Irmã Teresa de Lisieux, e encarrega o Carmelo de conseguir de sua Protetora pronta restituição. O prodígio se renova: no dia de São Caetano, onomástico do Sr. Bispo, Teresa se apresenta mais uma vez, tendo na mão uma nota de 100 francos... que exala perfume de incenso e flores! O Bispo a doa à Comunidade.

A emoção popular cresce em torno destas ocorrências extraordinárias. "Imaginação de mulheres subalimentadas", dizem uns; "feitiçaria", exclamam outros. Era preciso esclarecer os fatos.

O Bispo, depois da restituição de seus 100 francos, não podia duvidar. Um tribunal eclesiástico foi encarregado de examinar o caso. As Religiosas foram interrogadas, acareadas, acossadas por perguntas capciosas. Ficou claro que somente a mão de Deus, por intermédio de Teresa, tinha a ver neste caso.

Por outro lado, o Bispo de Nardô, Monsenhor Giannattasio, que conhecia a fundo a doutrina da Irmã Teresa, estava intrigado com a resposta à Madre Carmela: "Minha via é segura!" Quisera a serva de Deus autenticar sua via espiritual? Era o cumprimento do que em vida prometera às suas noviças?

Perseguido por esta ideia, o Prelado solicita um sinal. O primeiro aniversário da aparição de 16 de janeiro se aproximava. S. Excia. toma um envelope e nele introduz uma nota de 500 liras com um cartão no qual escreve: "Minha via é segura, eu não me enganei". Lacra-o com as armas episcopais, e Madre Carmela o coloca na famosa escrivaninha. A 16 de janeiro de 1911 Monsenhor Giannattasio vem ao Carmelo celebrar o aniversário da primeira visão. A Superiora traz o envelope ao parlatório para que ele assista à sua abertura. O lacre é rompido. O pasmo domina todos: além da nota de 500 liras, quatro outras, totalizando mais 300 liras, desprendem um odor de rosas (16)!

A via da infância espiritual era realmente segura!

Mas as graças dispensadas ao mundo através do Carmelo de Gallipoli não se cifraram nisto.

Em seus últimos meses de vida Teresa estava penetrada pela intuição de que lhe cabia ser "o modelo de uma legião de pequenas almas". Exprimia-a amiúde, com uma simplicidade encantadora (17), e preocupava-se com que tudo nela pudesse ser imitado pelas pequenas almas. Tratou disso incontáveis vezes (18). Por exemplo, quanto a seu corpo: "il faut que les petites âmes ne puissent rien m'envier. Preparai-vos, portanto, para não encontrar de mim senão um esqueleto" (18 bis). Em tudo ela precisava poder ser imitada. Mesmo depois da morte.

Na véspera da solene exumação de seus despojos (19), Teresa volta a aparecer à Madre Carmela para lhe confirmar que de seu corpo não se encontrarão "senão ossos", mas que estas relíquias serão armas possantes contra o demônio, e falarão alto e claro pelos prodígios de toda sorte que realizarão para a glória de Deus. Pormenor cheio de significado, Teresa acrescenta que sofreu muito aqui neste mundo...

Para ajudar os que não creem sem ver

Teresa intuiu sua glória. Deus quis que ela mesma a anunciasse. E mais. Fê-la profetizar fatos concretos como que para confirmar na fé aqueles que necessitam ver para crer.

Primeiramente quanto a sua própria morte.

Desde a infância a serva de Deus tivera a "profunda" intuição de que morreria jovem (20). Três anos antes de sua morte, a 18 de julho de 1894, quando dizia "jouir d'une santé de fer", ela misteriosamente anuncia a Celina, sua irmã querida que estava para entrar no Carmelo: "Viens, nous sauffrerons ensemble [...] et puis Jésus viendra, il prendra l'une d' entre nous [...]" (21).

Logo depois, em abril de 1895, vem a previsão clara, exata, precisa: "Eu morrerei logo, confia à irmã Thérèse de Saint-Augustin; não digo que seja daqui a alguns meses, mas dentro de dois ou três anos: sinto, por tudo o que se passa em minha alma, que meu exílio está perto do fim" (22). Nesta época Teresa ainda gozava de uma saúde perfeita. Ela morrerá exatamente dois anos e cinco meses mais tarde! "Eu sempre acreditei, confessa a Irmã Thérèse de Saint-Augustin, que se tratava de uma verdadeira profecia" (23).

No princípio de 1897, bem antes de cair doente, Teresa anuncia à sua irmã Celina que morrerá naquele ano mesmo (24).

As previsões não se cingem à data. Ela prevê que fará bom tempo quando de sua morte. Ora, o dia 30 de setembro de 1897 decorre frio e chuvoso. Tão logo, porém, a Santa exala o último suspiro, as nuvens se dissipam "e miríades de estrelas aparecem; dir-se-ia que todo o céu estava em festa" (25).

Suas irmãs temiam que o desenlace se desse durante a noite. Ela as tranquiliza: "Eu não morrerei à noite, crede-me; j'ai eu le désir de ne pas mourir la nuit" (26) , - o que se cumpriu, tendo seu passamento ocorrido pouco depois das 19 horas.

Teresa prevê a morte dos que a cercam. Anuncia à Madre Hermance do Coração de Jesus que esta morreria proximamente: um ano após ela falecia, aos 65 anos de idade (27).

Mais impressionante foi a predição relativa ao Capelão do Carmelo, o Padre Youf.

Este foi dos poucos que a compreenderam. Um dia, a Madre Aimée de Jésus queixava-se a ele das irmãs de Santa Teresinha: "Não vos queixeis; se tendes de um lado alguma coisa a suportar, deveis considerar-vos feliz de possuir um tesouro tal como a mais moça; é uma alma de elite que sobe de virtude em virtude: seria a glória do Carmelo, se fosse conhecida" (28). "Ainda que ela seja muito jovem, dizia o Capelão ao Padre Domin, se a Comunidade necessitasse de uma Priora, poder-se-ia nomeá-la sem receio" (29).

"No dia seguinte ao da morte da Irmã Teresa, conta a Irmã Marie de Saint-Ignace, pela manhã, fui ver o Padre Youf, que estava também ele doente; ainda não lhe haviam anunciado a morte da irmã Teresa, ocorrida na véspera, à tarde. Ouvindo tocar o sino do Carmelo, ele me disse: "Ela morreu... Ela não demorará em me vir buscar: ela mo prometeu...Que perda para o Carmelo!... É uma santa" (30). Oito dias depois a Santa vinha buscá-lo!...

As predições se acumulavam. Por duas vezes Teresa assevera à sua irmã Leônia que precederá a esta na morte, e lhe promete que, do Céu, conseguirá sua perseverança no claustro. Com efeito, Leônia tentara por diversas vezes fazer-se Religiosa, sempre com insucesso. Após a morte de sua irmã, contudo, ela entrará para não mais sair (31).

Teresa promete uma renovação de seu Carmelo. Poucos dias antes de sua morte, anuncia a Celina: "Depois de mim, haverá une moisson de jeunes, au Carmel". Nos anos que se seguiram, somente Religiosas idosas faleceram, e a partir de 1905 "uma verdadeira seara de jovens, e das melhores", floresceu no Carmelo (32).

Com um ano de antecedência Teresa previa, num sonho misterioso, sua glorificação —a solene transladação de suas relíquias.

"Ontem à noite, confia ela à Irmã Marie de la Trinité, durante a hora de silêncio antes de Matinas, eu pensava em minha morte próxima; então adormeci um instante. Nesse meio-sono, estava num campo parecido com um cemitério; os aubepins estavam floridos, os passarinhos cantavam; via muita gente em festa; era como um dia de triunfo. E eu dizia a mim mesma: Mas o que é que está acontecendo? por que esta festa? não é, afinal, um enterro?... E, apesar de tudo, eu pressentia que se tratava de mim mesma. Este sonho me parece bem misterioso e não me posso impedir de pensar que, mais cedo ou mais tarde, conheceremos o seu significado".

Ora, no dia da transladação das relíquias de Santa Teresinha, a 26 de março de 1923, este anúncio profético voltou repentinamente à memória de sua fiel noviça, que não pôde deixar de ver no acontecimento o verdadeiro significado do sonho misterioso. Foi exatamente em meio a uma natureza primaveril, a uma multidão piedosa e cheia de alegria, que os despojos virginais de Teresa deixaram o campo dos mortos, nas vésperas de sua Beatificação (33).

Mas dentre as predições concretas da serva de Deus, a que talvez mais conteúdo profético tenha é a referente à comunhão quotidiana. Não foi justamente por causa da posição que ela tomara em face desta matéria, que São Pio X mandou fazer tão rapidamente seu processo de canonização? "Est opportunissimum! Est magnum gaudium pro me, exultara o grande Papa. Bisogna far presto questo Processo!" (34).

"Vós vereis: quando eu estiver no Céu, haverá, no tocante à Sagrada Comunhão, uma mudança na prática da Igreja" (35). Ora, Santa Teresinha subiu ao Céu seis anos, apenas, antes da eleição do Papa que veio restaurar na Igreja a prática da comunhão precoce e frequente.

Além dessa previsão para a Igreja Universal, Teresa predisse também para seu Carmelo uma mudança nessa matéria.

Com efeito, em sua época o costume dos conventos mandava que a Superiora regulasse a periodicidade das comunhões de cada Religiosa. E Madre Maria de Gonzaga, a Priora de Lisieux, se opunha ferrenhamente à comunhão quotidiana, ao contrário de Santa Teresinha. Disse-lhe esta, mais de uma vez: "Ma Mère, quand je serai au Ciel, je vaus ferai changer d'avis" (36). Vejamos como isto se realizou.

Falando à sua irmã Maria do grande sofrimento que sentia por não poder comungar todos os dias, a serva de Deus anunciou: "isto não será assim para sempre: virá um tempo em que teremos talvez por Capelão o Padre Hodierne, e ele nos dará a Comunhão todos os dias".

Ora, na ocasião em que Teresa assim falava, a saúde do Capelão, o Padre Youf, não causava inquietação, nada fazia prever sua morte, que se deu anos mais tarde; nada, por outro lado, fazia pensar na nomeação do Padre Hodierne.

- "Mas por que pensais no Padre Hodierne para nosso Capelão? Nada o faz prever", objetou Maria.

- "Sim, eu espero que ele venha, e seremos muito felizes com ele".

O pressentimento realizou-se exatamente. O Padre Youf faleceu oito dias depois de Teresa. Uma semana após, nomeado Capelão, o Padre Hodierne toma por tema de sua primeira prédica as palavras: "Vinde e comei de meu pão". Era o convite à comunhão quotidiana, que efetivamente era logo concedida à Comunidade. Ninguém dissera uma só palavra ao Padre Hodierne! E Madre Maria de Gonzaga, em lugar de se opor, "ficou muito feliz com isso" (37).

"Vous soignez une petite sainte"

"Je pensais que j'étais née pour la gloire et cherchant le moyen d'y parvenir le bon Dieu me fit comprendre [...] qu'elle consisterait a devenir une grande sainte" (38).

Uma grande santa! Teresa reconhece-se santa, e não teme confessá-lo: "Je me crois une toute petite sainte" (39). A humildade é a verdade!

Seis semanas antes de sua morte, estando suas três irmãs Carmelitas junto a seu leito de dores, repentinamente, sem que ninguém tivesse comentado nada, a pequena Teresa as olha com um ar celeste e lhes diz bem claramente: "Vous savez bien que vous soignez une petite sainte". — "Fiquei profundamente impressionada com estas palavras, comenta Maria Martin, como se tivesse ouvido um Santo predizer o que aconteceria depois de sua morte" (40).

Realmente, elas cuidavam de uma Santa, de uma pequena Santa, de uma grande pequena Santa. E esta não lhes ocultava sua santidade.

Com uma simplicidade encantadora, ela lhes dava para que guardassem os fragmentos de suas unhas, as pequenas peles que se destacavam de seus lábios, os cílios que caíam em seu lenço (41)! "Ils pourraient servir à faire des heureux", comentava (41 bis).

Num outro dia, Teresa desfolhava rosas, acariciando as chagas de Nosso Senhor num crucifixo.

"No mês de setembro, observou, a pequena Teresa desfolha ainda a "rosa primaveril" (referia-se a uma de suas poesias). E como as pétalas escorregassem de seu leito sobre o assoalho, ela muito seriamente recomendou : "Ramenez bien ces pétales, mes petites soeurs, ils vous serviront à faire des plaisirs plus tard... N'en perdez aucun... Plus tard tout cela vous servira" (42).

À Irmã Marie des Anges ela fez idêntica observação: "Oh non, ne jetez pas ces pétales, ils seront précieux un jour" (43).

Sim, em sua humildade Teresa sabia-se santa, e em sua humildade ela o proclamava.

Teresa teve a intuição profética de sua glorificação, de sua canonização. "Nos últimos dias de sua vida teve uma estranha previsão do que se passa agora a seu respeito. Ela nos falou desses acontecimentos futuros, que são hoje uma realidade, com aquela simplicidade de criança e aquela humildade cândida que manifestava sempre ao falar-nos dos favores que recebia de Deus" (44).

Assim a serva de Deus previu que a Madre Agnès estaria até o fim de seus dias ocupada com ela. A Irmã Marie du Sacré-Coeur confessava-lhe sua incapacidade de consolar a Madre Agnès após sua morte: "Não vos inquieteis — disse-lhe Teresa - Madre Agnès de Jésus não terá tempo para pensar em sua pena, porque até o fim da vida estará tão ocupada comigo, que não dará conta de tudo" (45).

De igual forma previu a enorme correspondência que sua glória faria afluir à então desconhecida Lisieux: "Après ma mort vous irez du côté de la boite aux lettres, vous y trouverez des consolations" (46).

Ninguém poderia jamais sonhar com realidade tão consoladora: em 1911, uma média de cinquenta cartas por dia; nos anos subsequentes, essa média sobe sucessivamente para duzentas, trezentas e quatrocentas cartas chegadas diariamente; durante a guerra mundial, apesar de toda a dificuldade das comunicações, tornadas quase impossíveis com muitos países, quinhentas cartas diárias e mais; oitocentas a mil por dia em 1923 (47)!

Eis a pequena Teresa, o apóstolo insaciável em seus desejos infinitos, o cruzado tenaz e intrépido, a vítima pertinaz. Eis porque o Espírito Santo, que fala pelos lábios dos pequeninos, quis que ela tanto profetizasse: para que crêssemos no que ela dizia de si mesma e, assim, a víssemos como ela a si mesma se via.

Detenhamo-nos, pois, na consideração destes aspectos de sua alma, que a própria Teresa nos desvenda.

"Tenho olhos e coração de águia"

"Cette enfant a du ciel dans les yeux" (48), dizia-se de Teresa menina. Desde a mais tenra idade ela era uma alma profunda e excepcionalmente meditativa. Uma seriedade e uma gravidade muito acima de sua idade, marcava todo o seu ser. Dela se exalava uma aura de calma, de recolhimento, de doçura e de pureza extraordinária. A sua oração era toda interior, parecia uma contemplação. Raramente Teresa se servia de livros para rezar.

E não se pense que isto fosse o fruto de uma alma imersa na consolação: "Ela me disse um dia — declara Celina - que até os 14 anos praticara a virtude sem dela sentir a doçura" (49). A fidelidade na aridez é um apanágio de Teresa.

Esta Monja que de dentro do Carmelo não via senão "uma pequena nesga do céu" (50), estendia seu mundo interior até terras as mais distantes. Seu espírito apostólico ultrapassava em muito os muros do mosteiro, e abarcava a humanidade toda. Em seu íntimo ela acalentava os mais ousados desejos de lutar pela Igreja, de pregar o Evangelho e sua pequena via pelas vastidões do globo. Fazia-o com tal intensidade, que disse terem sido seus desejos "o maior de seus martírios" (51).

"Por que não reservas — perguntava ao Divino Esposo - essas imensas aspirações às grandes almas, às Águias que planam nas alturas?... Eu me considero como uma frágil avezinha coberta, apenas de uma leve penugem; não sou uma águia; de águia tenho apenas os OLHOS e o CORAÇÃO...” (52).

Eis a grande alma de Teresa: olhos e coração de águia!

Por isso seus desejos tocam o infinito. Ela quer ser guerreira, quer ser sacerdote, ser apóstolo, doutor da Igreja, mártir; ela sente em sua alma a coragem de um cruzado, de um zuavo pontifício, ela quer morrer num campo de batalha em defesa da Igreja; ela sente em si vocações contraditórias: como São Francisco, por humildade, quereria também recusar o sacerdócio! Como aliar estes contrastes? Ela quereria percorrer a terra toda, plantar em solo infiel a cruz gloriosa. Mas uma só missão não lhe bastaria. Quereria ao mesmo tempo anunciar o Evangelho nas cinco partes do mundo, e até nas ilhas mais remotas; não quereria ser missionária por apenas alguns anos, mas tê-lo sido desde a criação do mundo e sê-lo até a consumação dos séculos...

"Jesus, Jesus, se eu quisesse escrever todos os meus desejos, teria que emprestar teu livro da vida; eu quereria ter realizado todos esses

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