Atendendo a diversos pedidos, republicamos este admirável texto de São Tomás de Aquino sobre a caridade para com os pecadores que — acompanhado das notas explicativas, de autoria do Prof. Plínio Corrêa de Oliveira — estampamos em nosso número 35, de novembro de 1953.
Os leitores verão que o texto e os comentários conservam toda a sua atualidade.
Em artigo anterior, prometemos apresentar a solução dada por São Tomás de Aquino ao problema da legitimidade do ódio. Como lembramos, o romantismo generalizou entre nós brasileiros a falsa noção de que amar é sempre virtude, e odiar é sempre pecado. São Tomás nos mostra que, pelo contrário, o ódio pode ser por vezes um grave dever.
Publicando o próprio texto do Doutor Angélico (Suma Teológica, IIa. IIae., q. 25, a. 6), acompanhamo-lo de algumas notas destinadas a facilitar a aplicação dos princípios por ele ensinados, a casos concretos frequentemente verificados na vida quotidiana.
Para se aquilatar toda a importância deste texto, convém lembrar a autoridade de São Tomás, não só enquanto teólogo máximo da Igreja, mas ainda como Santo, proposto à veneração e imitação dos fiéis.
Escreve o Santo Doutor:
Se os pecadores (1) devem ser amados (2) em razão de caridade (3).
Parece que, por motivo de caridade, não devem ser amados os pecadores:
1 — Com efeito, está dito nos Salmos (Ps. 118, 13): "Odiei os iníquos". Ora, Davi tinha caridade. Logo, conforme a caridade, mais se deve odiar os pecadores do que amá-los.
2 — Ademais, "o amor se prova pelas obras", conforme diz São Gregório na homilia de Pentecostes (hom. 30 in Evang.). Ora, os justos não praticam para com os pecadores obras de amor, mas obras que parecem ser de ódio, conforme aquilo dos Salmos (Ps. 100, 8): "Pela manhã eu aniquilava todos os pecadores da terra". E o Senhor deu por preceito no Êxodo (Ex. 22, 18): "Não suportarás que os maus vivam". Em consequência, segundo a caridade, não devem ser amados os pecadores.
3 — Além disso, é próprio à amizade que desejemos para os amigos o que é bom. Ora, os Santos, inspirados pela caridade, desejam o mal para os pecadores, conforme aquilo dos Salmos (Ps. 9, 17): "Sejam precipitados no inferno os pecadores". Portanto, os pecadores não devem ser amados segundo a caridade.
4 — Acresce que é próprio de amigos alegrarem-se com as mesmas coisas e querer o mesmo. Porém a caridade não leva a querer o que querem os pecadores, nem a alegrar-se naquilo em que eles se alegram; antes pelo contrário. Portanto, não é conforme à caridade amar os pecadores.
5 — Por fim, é próprio dos amigos conviverem entre si, como se diz no livro VIII da Ética (C. 5, n. 3: S. Th. lect. 5). Ora, não se deve conviver com os pecadores, conforme está escrito em II Cor. 6, 3: "Retirai-vos do meio deles". Logo, não se deve amar, segundo a caridade, os pecadores.
- Porém, é em sentido contrário o que Santo Agostinho diz em I de Doct. Christ. (cap. 30): "Amarás ao teu próximo, refere-se evidentemente a todos os homens". Ora, os pecadores não deixam de ser homens, pois o pecado não destrói a natureza. Logo, segundo a caridade, deve-se amar os pecadores.
- A esses argumentos respondo que se pode considerar nos pecadores dois aspectos: a natureza e a culpa. Segundo a natureza que receberam de Deus, são capazes de adquirir a bem-aventurança, sobre cuja comunicação se baseia a caridade, como ficou dito acima (A. 3; q. 23, a. I, 5). E portanto, segundo sua natureza, os pecadores devem ser amados (4). Porém, sua culpa desagrada a Deus, e constitui impedimento para a beatitude. De onde, em razão de sua culpa, que os torna inimigos de Deus, devem ser odiados quaisquer pecadores, ainda que sejam pai, mãe, ou parentes, conforme São Lucas 14, 26 (5). Devemos com efeito odiar nos pecadores o fato de que são pecadores, e amar neles o fato de que são homens, capazes de bem-aventurança (6). E nisto consiste amá-los verdadeiramente, conforme a caridade e por amor de Deus.
Ao primeiro argumento, pois, deve-se responder que o Profeta teve ódio aos iníquos enquanto iníquos, odiando sua iniquidade (7), que é o que neles há de mal. É este o ódio perfeito, do qual o mesmo Profeta diz (Ps. 138, 22): "Odiei-os com ódio perfeito". Pois pela mesma razão se deve odiar o que em alguém há de mal, e amar o que há de bom. Por onde também este ódio perfeito pertence à caridade (8).
Ao segundo argumento responde-se que, como diz o Filósofo no livro IX da Ética (C. 3, n. 3: S. Th. lect. 3), não devemos privar nossos amigos pecadores, dos benefícios da amizade, desde que haja esperança de que se emendem: porém mais se deve auxiliá-los a recuperar a virtude, do que o dinheiro que tenham perdido; tanto mais que a virtude é mais afim com a amizade do que o dinheiro (9). Mas, quando caem na mais profunda malícia e se tornam insanáveis (10), deve-se-lhes recusar um trato familiar de amigo. E, portanto, a pecadores tais, de quem mais se deve temer que prejudiquem a outros do que se pode esperar que se emendem, a lei divina e humana manda que sejam mortos. — É o que faz o juiz, não por ódio deles, mas por um amor inspirado na caridade, amor este que prefere o bem público à vida de uma só pessoa. —Aliás, a morte imposta pelo juiz ao pecador é útil para este, pois se se converter lhe servirá de expiação para a culpa, e se não se converter porá termo à sua culpa tirando-lhe a possibilidade de pecar por mais tempo.
Ao terceiro se responde que as imprecações desse gênero contidas na Sagrada Escritura devem ser entendidas de três maneiras. Primeiramente, como prognóstico, e não como desejo: e assim se deve entender o "sejam os pecadores precipitados no inferno" no sentido de que "serão precipitados". — Em segundo lugar, como desejo, de tal maneira que este não se refira à pena do homem, mas à justiça de quem castiga, conforme está escrito (Ps. 57, 11): "Alegrar-se-á o justo quando vir a vingança". Pois o próprio Deus, quando pune, "não se alegra na perdição dos ímpios", como está dito no Livro da Sabedoria 1, 13, mas em sua justiça: "pois Deus é justo, e ama a justiça" (Ps. 10, 6). — Em terceiro lugar, enquanto o desejo se refere à eliminação da culpa, e não à pena (11). De tal maneira que os pecados sejam destruídos e os homens permaneçam.
Ao quarto argumento deve-se responder que amamos os pecadores, não porque queiramos o que eles querem, ou nos alegremos com o que os alegra: mas para fazer com que queiram o que queremos e se alegrem com o que nos alegra (12). Pelo que se lê em Jeremias 15, 19: "Eles se converterão a ti, e tu não te converterás a eles".
1) - São Tomás trata, neste artigo, das disposições interiores que devemos ter em relação ao próximo. E para este efeito classifica os homens em dois grandes grupos, os justos e os pecadores. Como é óbvio que devemos amar os justos, o assunto dá margem a problemas no tocante ao amor que devemos ter aos pecadores.
Julgamos indispensável considerar, antes de prosseguir no estudo do texto do Doutor Angélico, a importância desta regra por ele estabelecida: o fato de alguém ser justo ou pecador influi a fundo na amizade que se lhe tem.
Como a isto se opõe o sentimentalismo brasileiro! Somos propensos a amar as pessoas porque nos tratam bem, porque nos são úteis, porque nos divertem, porque sua fisionomia nos agrada, porque estamos habituados há muito à sua companhia, porque são nossos parentes, etc. etc. E tal é em nosso ânimo o peso destas razões, que não tomamos na menor consideração um ponto essencial, que domina todo o assunto: esta pessoa é um justo ou um pecador?
Um mestre deve preferir os discípulos bem comportados, estudiosos, piedosos, a outros que, sem qualquer piedade, nem aplicação, nem disciplina, são exímios na arte de lisonjear e divertir os professores. Um pai deve preferir o filho bom, mas feio ou pouco inteligente, a um filho brilhante, mas ímpio ou de vida impura. Entre os colegas, nossa admiração não deve ir para o mais engraçado, o de trato mais atraente, o mais rico ou o mais bem sucedido na vida, mas para o mais virtuoso. Não podemos dar a alguém o tesouro de nossa amizade sem saber se tal pessoa é, ou não, inimiga de Deus: o homem que vive em pecado grave é inimigo de Deus; e se amamos a Deus sobre todas as coisas não podemos amar indiferentemente os que O amam e os que O ofendem. O que diríamos de um filho que fosse amigo de pessoas que injuriam gravemente, injustamente, publicamente a seu pai? Pois é o que fazemos quando admitimos em nossa amizade apóstatas, fautores de heresia, gente desedificante, casais constituídos "no Uruguai" etc.
2) — Amar não significa necessariamente sentir muita ternura, pois o verdadeiro amor reside essencialmente na vontade. Querer bem a alguém é querer seriamente para alguém tudo quanto segundo a reta razão e a fé lhe é bom: a graça de Deus e a salvação da alma primeiramente, e depois tudo quanto não desvie deste fim, antes a ele conduza. O amor se prova pelas obras. Pois se queremos seriamente o bem do próximo, externamos esta disposição de alma não só por palavras de afeto, e agrados — o que aliás é em si perfeitamente legítimo — mas ainda por meio de esforços e sacrifícios. Um tal amor deve ser votado também aos pecadores? É a questão de que trata aqui o Doutor Angélico.
3) — A caridade é o amor de Deus acima de todas as coisas. A pergunta equivale, pois, a esta outra: uma vez que amamos a Deus sobre todas as coisas, devemos amar por amor de Deus os pecadores, que são seus inimigos?
4) — A natureza humana é obra de Deus, e, pois, é boa. Logo, em tese, devemos amar a todos os homens, ainda os que não são capazes de mérito nem culpa, como as crianças que não chegaram à idade da razão, os loucos ou débeis mentais de nascença, etc. Neste sentido, devemos amar — isto é querer o bem — aos pecadores, pois também são homens. Devemos, pois, desejar-lhes todo o bem, não porém do mesmo modo que aos justos, como adiante se verá.
5) — O texto de São Lucas diz: "se alguém vem a Mim, e não aborrece a seu pai e mãe, sua mulher e filhos, seus irmãos e irmãs, e ainda mesmo a sua vida, não pode ser meu discípulo".
É um engano supor que Nosso Senhor não ensinou o ódio. Há um ódio santo, que é uma virtude evangélica. Um amor que não gerasse ódio não seria amor. Com efeito, se amo alguém devo odiar aquilo que lhe traz, não bem, mas mal. E é este ódio santo, seus motivos, sua natureza, seus limites, que neste capítulo magnificamente se ensina.
6) — Estas palavras constituem excelente comentário da norma de Santo Agostinho, tão sábia e, contudo, tantas vezes mal entendida: odiar o erro, amar os que erram (Dilige hominem, oderis vitium: Sermo 49, 5 — P. L. 38, 323; Oderit vitium, amei hominem: De Civ. Dei, 1. 14, c. 6; Cum dilectione hominum et odio vitiorum: Epist. 211, 11 — P. L. 33, 962). Procura-se muito frequentemente interpretar esta máxima como se o pecado estivesse no pecador à maneira de um livro numa estante. Pode-se detestar o livro sem ter a menor restrição contra a estante, pois embora uma coisa esteja dentro da outra é-lhe totalmente extrínseca. De onde se poderia odiar o erro sem odiar de nenhum modo o que erra. Ora, a realidade é outra. O erro está no que erra como a ferocidade está na fera. Uma pessoa atacada por um urso não pode defender-se dando um tiro na ferocidade, mas poupando o urso e aceitando-lhe o amplexo dos braços largamente abertos! São Tomás se exprime com uma clareza meridiana. O ódio deve incidir não só sobre o pecado considerado in abstrato, como também sobre a pessoa do pecador. Todavia não deve atingir toda essa pessoa: poupará sua natureza, que é boa, as qualidades que eventualmente tenha, e recairá sobre seus defeitos, por exemplo sua luxúria, sua impiedade ou sua falsidade. Mas, insistimos, não sobre a luxúria, a impiedade ou a falsidade em tese, mas sobre o pecador enquanto pessoa luxuriosa, ímpia ou falsa.
7) — Vê-se que odiar a iniquidade dos maus é o mesmo que odiar os maus enquanto são iníquos. Odiar os maus enquanto maus, odiá-los porque são maus, na medida da gravidade do mal que fazem, e durante todo o tempo em que perseverarem no mal.
Assim, quanto maior o pecado, tanto maior o ódio dos justos. Neste sentido, devemos odiar principalmente os que pecam contra a fé, os que blasfemam contra Deus, os que arrastam os outros ao pecado, pois odeia-os particularmente a justiça de Deus.
8) — Não se trata de um ódio feito apenas de irascibilidade superficial. É um ódio ordenado, racional e, pois, virtuoso. Tal ódio "pertence à caridade". Assim, odiar reta e virtuosamente é ato de caridade! Como esta verdade chocaria um homem de "bom coração".
9) — Os pecadores são aqui divididos em duas categorias: os que dão esperança de emenda, e os que não dão. Aos primeiros deve-se odiar enquanto pecadores e amar enquanto homens, no seguinte sentido: 1 — deve-se fazer todo o possível para que deixem o pecado; 2 — mas enquanto perseveram no mal devem ser odiados.
Como é frequente, na vida quotidiana, ouvir-se lamentar em termos cheios de compaixão uma pessoa que perdeu a fortuna. Seus amigos e parentes movem-se todos para a auxiliar a recuperar os haveres. E como é raro ouvir-se alguém lamentar com tristeza ainda maior que seu parente ou amigo tenha perdido a virtude! Como é psicológica a comparação do Santo Doutor!
Fazer tudo para que alguém recupere a virtude não é nem pode ser palavra vã. É preciso aconselhar, insistir, falar com carinho, com simpatia, com severidade, é preciso sobretudo rezar e fazer penitência por aqueles que desejamos reconduzir à graça de Deus. Pois sem a oração e a penitência nada se consegue.
Às vezes, expomo-nos ao risco de perder a amizade de um pecador, à força de insistência. Desde que esta seja criteriosa, não nos atemorizemos diante deste sacrifício, que Deus saberá considerar. Uma das mais altas provas de afeto que podemos dar a alguém consiste em sacrificar sua amizade para auxiliar sua salvação.
10) — O pecador, em princípio, é sempre susceptível de emenda. Mas há pecadores tão aferrados ao mal, que sua conversão só é de se esperar por uma graça muito especial. E como o muito especial é excepcional, evidentemente mais se deve recear que as almas nestas condições se percam, do que esperar que se salvem. E, de outro lado, é mais provável que arrastem outros ao pecado, do que se libertem das garras deste.
Estes pecadores continuam a merecer nosso amor, no sentido de que devemos rezar e sacrificar-nos para obter sua salvação, e não devemos deixar de os incitar à emenda. Mas não podemos ter com eles trato familiar e amistoso.
De resto, pelo mal que têm em si, e pelo risco a que expõem os inocentes, merecem a morte. O Doutor Angélico dá disto a razão.
Até aí vai a severidade da doutrina da Igreja. E até aí vai também sua misericórdia. Pois aprovando a pena de morte quando justa, acompanha o condenado até o último momento, com suas preces, com as orações e sacrifícios das almas piedosas, e até de confrarias especialmente fundadas para tal.
11) — Quantas pessoas são incapazes de compreender que devemos desejar castigos para os pecadores que amamos — doenças, perseguições, pobreza — se este for o meio para os emendar e reconduzir à graça de Deus!
12) — O pecador quer o pecado, os ócios e larguezas que favorecem sua dissipação. Se odiamos o pecado e queremos a conversão do pecador, devemos desejar que lhe faltem todos os meios necessários para pecar. Assim, devemos apoiar todas as autoridades eclesiásticas, familiares, sociais, políticas, que trabalham por eliminar o que conduza os súditos ao pecado: má imprensa, mau rádio, cinemas e teatros imorais, propaganda de doutrinas opostas à da Igreja, etc.
Plinio Corrêa de Oliveira
Era meu propósito comentar hoje os aspectos morais da queda do Primeiro-Ministro socialista Willy Brandt. Entretanto, chegou-me às mãos um documento de tal importância sobre a Resistência dos católicos à política de aproximação do Santo Padre Paulo VI com os regimes comunistas, que não posso deixar de o levar ao conhecimento dos leitores. Trata-se de declarações do Emmo. Cardeal Yu Pin, Arcebispo de Nanquim, ora Reitor da Universidade Católica de Taipé (Formosa). Publicou-as o boletim norte-americano "The Herald of Freedom", de 15 de fevereiro passado, em despacho da "Religious News Service".
Declarou o Purpurado àquela Agência, não tomar a sério os rumores de que estariam em curso negociações entre o Vaticano e o regime comunista de Pequim. Acrescentou que "os católicos da China certamente não são simpáticos a esse tipo de atitude" e que o Vaticano não deve esperar que a China comunista modifique sua política antirreligiosa, "nem mesmo por razões de propaganda".
"Não nos agrada sermos pacificados por outros — aduziu o Cardeal Yu Pin. Isso se chama oportunismo. Queremos permanecer fiéis aos valores perenes da justiça internacional. [...] O Vaticano pode agir de modo diverso, porém não nos comoveríamos muito com isso. Penso que é ilusória a esperança de que um diálogo com Pequim ajudaria os cristãos do continente [chinês]. [...] O Vaticano nada está obtendo para os cristãos da Europa Oriental. [...] Se o Vaticano não pode proteger a Religião, ele não tem muita razão para continuar no assunto. [...] Queremos permanecer fiéis ao nosso mandato, mas somos vítimas da repressão comunista. Sob tal aproximação [do Vaticano com a China comunista], nós perderíamos a nossa liberdade. Como chineses, temos que lutar por nossa liberdade".
A essas lúcidas e vigorosas observações, que lembram a "resistência em face" de São Paulo ante São Pedro (Gál. 2, 11), o Purpurado acrescentou a seguinte observação emocionante: "Há uma Igreja subterrânea na China. A Igreja na China sobreviverá, como os primeiros cristãos sobreviveram nas catacumbas. E isso poderia significar um verdadeiro renascimento cristão para os chineses".
O Cardeal defendeu também o direito de "lutar com armas" contra "a opressão", e concluiu com esta frase empolgante: "Eu organizaria um verdadeiro exército, se pudesse, para proteger a Igreja".
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Cito estas palavras do Cardeal chinês, não só pela autoridade de quem as pronunciou, como também para ressaltar uma coincidência digna de nota.
Sua Eminência tem diante de si um panorama fundamentalmente diverso daquele que está habitualmente ante nossos olhos. O Arcebispo de Nanquim tem sua atenção concentrada especialmente na China, enclausurada por uma "cortina", a de bambu. Entretanto, o modo pelo qual o Purpurado chinês considera a atual política do Vaticano em relação aos regimes comunistas coincide com a análise feita pelo Cardeal-Mártir, Mons. Mindszenty, sobre a mesma política com referência aos regimes detrás da cortina de ferro. E — permitas-nos acrescentar — com a apreciação que, em sua recente declaração A política de distensão do Vaticano com os governos comunistas / Para a TFP: omitir-se? ou resistir?, a TFP fez sobre a linha de conduta do Vaticano em relação ao Chile de Allende, à Cuba de Fidel Castro, etc. São as mais diversas partes do globo, em que a política do Vaticano suscita, em pessoas da mais indiscutível fidelidade à Santa Sé, idênticos reparos.
O mundo presenciou estupefato a vitória do divórcio no plebiscito há pouco realizado na Itália. — Como explicar que um povo tão católico haja aprovado a lei Fortuna-Baslini, que destruiu no país a indissolubilidade do vínculo conjugal?
Obviamente a resposta não pode estar em que o número de católicos decaiu na Península. Suposto que algum declínio tenha havido, não é admissível que seja proporcional ao superavit dos votos divorcistas sobre os antidivorcistas. A causa essencial do fato tem que ser outra. A maioria dos italianos, chamada a se pronunciar, fê-lo em sentido contrário à sua consciência de católicos. E aqui se localiza o problema: por que procederam de modo tão aberrante?
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Antes de tudo, parece-me importante acentuar um fator do desastre: a confusão.
Tenho em mãos um exemplar do conhecido "Corriere della Sera" de Milão (3 de março) com fotografia da cédula usada no plebiscito. Parece especialmente feita para induzir em equívoco larga parte da população.
A cédula se divide em duas partes. Em uma se lê "sim", e na outra "não". Conforme sua preferência, o eleitor deve marcar com uma cruz o campo onde se lê "sim" ou aquele em que se lê "não". — Mais claro não poderia ser, não acha o leitor?
Entretanto, é impossível ser mais confuso. Pela lei que regulamenta o plebiscito, quem fosse contra o divórcio deveria marcar o "sim". E quem fosse a favor deveria marcar o "não". — Não é de aturdir?
— Qual o pretexto de tão extravagante disposição da cédula plebiscitária? — É que a pergunta feita aos eleitores não era: "Quer o divórcio? não o quer?"; a pergunta era outra: "Aprovais a ab-rogação da lei n.° 898, de 1.° de dezembro de 1970, sobre a disciplina dos casos de dissolução do matrimônio?" Quem quisesse dizer sim ao divórcio deveria responder que não queria a abolição da lei. Quem quisesse dizer não ao divórcio deveria responder que sim, queria a abolição da lei.
— Como sentir espanto, se uma consulta tão confusa chegou a um resultado paradoxal?
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Ademais, é preciso notar que vivemos numa época de maciça ignorância religiosa. A fim de mover todo o eleitorado católico contra o divórcio, teria sido preciso que os propugnadores da indissolubilidade tivessem dado à sua campanha uma tônica marcadissimamente religiosa. Isto é, deveriam ter dito — com base em larga citação de textos pontifícios — que o divórcio é proibido pela lei de Deus, viola o direito natural, e atenta contra o caráter sacramental do matrimônio cristão.
Pelo contrário, os antidivorcistas se basearam sobretudo em razões sociológicas, concludentes sem dúvida, mas complexas, e, portanto, de difícil aquilatação pelo público. E em matéria religiosa se limitaram a acenar para o Tratado de Latrão. Invocar um tratado, por respeitável que seja, quando se poderia invocar a lei de Deus... por aí pode o leitor calcular quanto foi pífia e pobre em força persuasiva a campanha antidivorcista. Efeitos óbvios do irenismo progressista.
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Sua Santidade o Papa Paulo VI, em alocução do dia 15 de maio, asseverou que se sente tomado de "assombro e dor" por verificar que a estrondosa derrota teve também por causa o fato de que a tese da indissolubilidade "careceu da solidariedade de não poucos membros da comunidade eclesiástica".
Aqui está o pior. É mais um fruto péssimo do progressismo, que sopra impune, ou quase tanto, nos meios católicos. Ontem ele entregou o Chile ao comunismo. E hoje ele golpeia a família na Itália. — Mas a isto, que comentário fazer?
A revista italiana "Chiesa Viva" de fevereiro do corrente ano noticiou que 300 mil católicos realizaram em Taipé (Formosa) uma manifestação contra o que intitularam política de subserviência do Vaticano em relação à China comunista. O ato culminou com uma cerimônia de um tocante simbolismo, isto é, a inauguração de uma imagem de "Cristo Sofredor".