P.02-03

Lições da Revolução Francesa

NADA COMO SER COMEDIDO, SENSATO E PRUDENTE...

Evandro Faustino

A Revolução Francesa foi feita pelo povo”... "Foi o povo enfurecido que destruiu a Bastilha, odioso símbolo da tirania".. . "Foram as mulheres de Paris, desesperadas pela falta de pão, que lideraram as jornadas de outubro"... "Foi atendendo ao clamor incontenível do povo francês, cansado de tanta injustiça, escravidão e miséria, que os deputados decretaram a morte do Rei, e anunciaram o nascimento de uma nova era de justiça, liberdade e abundância" ...

Esses são alguns dos mais surrados e conhecidos chavões sobre a Revolução Francesa, ainda esporadicamente encontradiços nos lábios e na pena de pessoas que se supõem conhecedoras do assunto. Chavões que não têm base em nenhum historiador sério, que vão contra a verdade histórica, e que contradizem até mesmo o que os revolucionários pensavam do povo: La Fayette não dissimulava seu desprezo pela "insolência" do povo de Paris, Mably se referia ao povo como "esse amontoado de homens tolos, estúpidos, ridículos e furiosos" (J. Castelnau, "Le Club des Jacobins", Hachette, p. 24), Voltaire afirmava que "o povo não é digno de ser instruído" (Groethuysen, "La Philosophie de la Revolution Française", p. 167), e Mirabeau, o famoso Mirabeau, assim se expressa numa carta a Chamford: "Devemos temer a oposição da maioria da nação, que não conhece nossos projetos e não está disposta a nos prestar o seu concurso. Faremos com que ela o queira, e obriga-la-emos a dizer o que jamais pensou. A nação é um grande rebanho que não sonha senão em pastar, e que com bons cães os pastores levam até onde lhes apraz" (Cunha Alvarenga, "Catolicismo", n.° 59). Para um homem cuja frase mais famosa é a que ele falava "pela vontade do povo, e só se calaria pela força das baionetas", não está nada mal em matéria de coerência.

Mas a Revolução é pródiga em mentiras, e nós já sabemos qual será a resposta a esses argumentos; não será naturalmente uma refutação (refutar, seus asseclas não refutam nunca), mas uma escapada: "Talvez seja verdade que a Revolução Francesa não foi feita inteiramente pelo povo. Mas é absolutamente incontestável que este a aprovou a posteriori, e que foi o povo quem mais usufruiu de seus benefícios: ele não mais se viu esmagado por exigências absurdas ou por privilégios odiosos; não teve mais um déspota quase onipotente a sufocar suas mais legítimas aspirações. Agora todos eram iguais". Eis aí uma mentira um pouco mais refinada, mas nem por isso menos mentirosa. A esse respeito, queremos contar uma história, um fato real dessa época tão comentada mas tão pouco conhecida. O historiador em que nos baseamos é G. Lenotre, na obra, "Sous le bonnet rouge", Editions Bernard Grasset, pp. 107 e seguintes.

Carhaix, "capital da Alta Cornualha"

Carhaix era um burgo situado no centro da península da Bretanha. Nos fins do século XVIII, essa cidadezinha se orgulhava de seus 3 mil habitantes, e de seu título de "capital da Alta Cornualha". Uma bela Catedral, uma grande praça do mercado, algumas ruas calçadas de pedras, Carhaix estava há séculos encarapitada sobre os penhascos da Bretanha, sem se incomodar muito com o progresso. Em suma, Carhaix era uma cidadezinha tranquila... Até que começou a revolução que deveria trazer a paz e a tranquilidade.

As primeiras eleições de 1789 já trouxeram o descontentamento: as "pessoas de bem" do lugar ficaram sabendo que de acordo com as decisões tomadas lá longe, em Paris, pela nova Assembleia Constituinte, a França havia sido geometricamente dividida em "regiões territoriais". Pela nova divisão, Carhaix não era mais a "capital da Alta Cornualha". E novas leis de teor ainda pior se anunciavam. Desiludidas, as "pessoas de bem" cometeram um erro trágico. Embora percebessem os perigos que se aproximavam, decidiram não fazer nada. Lutar era incômodo, e elas não queriam incomodar-se. De pactuar com o mal, elas não tinham coragem. Então, como as avestruzes, resolveram enfiar a cabeça na areia, e esperar que o perigo passasse: tomaram a "sábia" decisão de se abster.

A desgraça é que outras pessoas, das quais não se pode dizer que fossem "de bem", aproveitaram essa abstenção para usurpar o poder e preencher o vácuo criado. Surgiu então uma horda de marginais arrogantes, que diante da atonia e do silêncio dos que deveriam exercer a liderança, passou a dirigir os acontecimentos. E o que ocorreu nessa cidadezinha da Bretanha não foi um fato isolado: em 1793, quase todas as aldeias da França sofreram, como Carhaix, uma Revolução Francesa em miniatura. Assim, o estudo desses fatos locais é de um enorme interesse para quem quiser estudar o método dessa Revolução que até hoje influencia o mundo.

Em Carhaix, o primeiro a se aproveitar do "silêncio prudente" foi um certo Blanchard. Antes ele era recebedor do distrito, funcionário pouco estimado e várias vezes preso e processado por fraude. Agora, repentinamente, alguém o tinha nomeado oficial superior da guarda nacional, e nesse novo cargo ele andava para cima e para baixo, penacho no chapéu, duas pistolas à cinta e arrastando atrás de si um grande sabre de cavalaria. Carhaix estava surpreendida com a súbita ascensão daquele homem sabidamente desonesto e incapaz. Era, realmente, algo singular.

O principal comparsa de Blanchard era um forasteiro chamado Valette, que toda cidade sabia ser um pequeno caixeiro-viajante modestamente instalado no albergue do casal Mauviel. Com a Revolução os caixeiros-viajantes ficaram desempregados, e Valette misteriosamente se tornou capitão da mesma guarda a que pertencia Blanchard, guarda essa em franca hostilidade com o prefeito e a administração do distrito.

As "pessoas de bem" estavam um pouco espantadas, mas persistiram em sua "sábia decisão". Achavam que tudo aquilo era uma farsa que não poderia durar muito. Logo tudo terminará, pensavam, e nós poderemos voltar à boa vidinha de antes. Aí é que as "pessoas de bem" se enganaram.

O "Comitê dos Seis" — eleito pelo povo

Blanchard e Valette pertenciam a uma sociedade secreta, e eram dirigidos por um "irmão" apelidado "o Piolhento", chefe da Revolução em Landernau. Por ordem dele, os dois vão a Paris apresentar-se aos Jacobinos e à Convenção Nacional. Certamente levaram a recomendação de alguém importante, pois foram recebidos, ouvidos e aclamados como ardentes patriotas.

Retornaram triunfantes a Carhaix, com atestados de civismo devidamente carimbados, e de posse de plenos poderes. E assim, "em nome do povo", os dois aventureiros se tornaram senhores absolutos de todo o burgo. Agindo de acordo com instruções recebidas, eles se declararam "comissão de vigilância", e convocaram uma reunião pública na prefeitura. Blanchard sobe à tribuna, com seu grande sabre de cavalaria, e suas duas pistolas à cinta. Toma a palavra e propõe que os cidadãos ali reunidos elejam imediatamente um comitê de seis membros, encarregado de administrar a cidade. Os habitantes ouvem pasmados... mas sem protestar. Alguns, mais medrosos, fazem que sim com a cabeça. Blanchard, após sacudir sua cimitarra, anuncia que ele mesmo irá propor os nomes. Chama sucessivamente: seu irmão, "reconhecido patriota"; o bravo cidadão Valette; três outros membros de seu bando... e os eleitos já são cinco. Então ele acrescenta modestamente: "E eu". E batendo o punho do sabre na tribuna, declara encerrada a sessão.

Foi assim que o "povo de Carhaix" elegeu o Comitê dos Seis, que deveria agora, sem restrição alguma, dispor da sorte e da vida dos cidadãos. A assembleia se dispersou em silêncio. As "pessoas de bem" já não riam mais.

A "lei dos suspeitos" e sua aplicação em Carhaix

A aplicação da "lei dos suspeitos" em Carhaix teve consequências muito mais desastrosas do que em Paris. Numa cidade grande, onde todos são mais ou menos anônimos, ainda era possível a algum "suspeito" escapar à vigilância, à denúncia e à prisão. Mas, como calcular o efeito de uma tal lei numa cidadezinha de 3 mil habitantes? Aí ninguém ignora a opinião de ninguém; uma palavra, um olhar, um encolher de ombros até, motivam comentários. Se a pessoa se fecha em casa, é suspeita: "Que faz ela em casa?" Se sai, é suspeita também: "Aonde ela vai?" Também não é possível fugir, pois sua ausência logo seria notada. É preciso ficar, fingir-se satisfeito, e cumprimentar respeitosamente os novos senhores.

Mas os novos senhores não se iludem. Eles conhecem os sentimentos íntimos de cada um, e sabem que todos fingem respeito apenas por medo. Assim, para estarem certos do respeito, eles precisam aumentar o medo.

Repetimos: isso não se dava somente em Carhaix, mas acontecia por toda a França. Calcula-se que havia 20 mil desses comitês de província, que em nome da liberdade, igualdade e fraternidade, implantaram na França a mais absurda tirania que seu povo jamais suportou.

Em Carhaix, como em toda parte, as prisões logo ficam repletas de "suspeitos", amontoados em celas infectas, sem que ninguém esteja encarregado de alimentá-los. Muitos são encarcerados sem saber o motivo. Um deles, depois de um ano de calabouço, não pôde ser libertado, porque oficialmente não estava preso: ninguém havia registrado o seu nome ou o motivo da prisão.

Através da cobrança de "impostos" e "taxas", e de puro e simples roubo, Blanchard — para falar só dele — auferiu uma renda de 20 mil libras. Essa quantia era o equivalente à pensão de um bispo juramentado (Pierre Gaxotte, "A Revolução Francesa", tradução portuguesa da Livraria T. Martins — p. 138). De onde se conclui que para a Revolução tinham o mesmo valor um bispo juramentado e um saqueador. Em algo ela estava certa...

Valette, ao que parece, não pensava nos "lucros". Sua idéia era "passear por toda a cidade as cabeças dos presos, espetadas na ponta de lanças".

Uma dissidência: o "Comitê dos Doze"

Graças ao ardor de seus jacobinos, Carhaix teve antes de outras cidades o privilégio de possuir sua própria guilhotina. Depois disso, todas as reuniões do Comitê se passavam em elaborar listas de suspeitos. Por todos os lados corria uma onda de calúnias e denúncias. As únicas pessoas da cidade que não temiam ser presas de uma hora para outra eram os membros do todo poderoso Comitê.

Mas até a tranquilidade deles logo terminaria. Havia outras pessoas interessadas nas 20 mil libras do cidadão Blanchard, e bem depressa, em face dos Seis, surgiu outro comitê rival, e também legalmente constituído, o Comitê dos Doze, formado por dissidentes.

Os Seis imediatamente denunciaram os Doze como "conspiradores" e "restos do feudalismo impuro", dignos de todo o rigor da lei. Os Doze respondem afirmando que os Seis são "traidores hipócritas", "odiosos cúmplices da tirania e do despotismo".

O debate se tornou aceso e sua solução foi submetida ao convencional Briard, que se encontrava em missão na cidade de Brest. Durante essa luta encarniçada, o pobre povo de Carhaix, que absolutamente não compreendia que tudo aquilo era feito em seu nome e em prol de sua liberdade, pôde ao menos respirar um pouco, enquanto seus carrascos se entredevoravam.

Um problema espinhoso

Cabia, pois, ao convencional Briard resolver a querela. Mas ele também tinha medo, porquanto se sentia vigiado por superiores ocultos. A questão era espinhosa. Se ele favorecesse os Seis, poderia ser denunciado pelos Doze, e vice-versa. Se se abstivesse, os espiões poderiam denunciá-lo à Convenção como "tíbio", o que teria consequências igualmente funestas. Assim, Briard preferiu usar a política mais segura: o terror. Destituiu todos os membros dos dois comitês, e lançou sobre a infeliz cidade três de seus inumeráveis comissários, encarregados de "restabelecer a ordem". "Eram um bêbado chamado Dagorne, um velho funcionário que atendia pelo nome de Le Nôtre, e um suboficial, Roxlo. Quando eles chegaram, Carhaix quase sentiu saudades dos Seis e dos Doze: eram profanações de objetos religiosos, farândulas sacrílegas pelas ruas, pilhagens de igrejas, ameaças, batalhas, saques, roubos à mão armada... Os comissários se comportavam como bárbaros numa cidade conquistada. Roxlo cobrava 300 libras de cada prisioneiro pelo trabalho de o ter encarcerado; Le Nôtre esvasiava-lhe os bolsos a golpes de sabre, e se servia dos vasos sagrados da Catedral como sua baixela particular". Dagorne não os imitava, por estar sempre bêbado. As raras horas de lucidez, ele as passava redigindo denúncias ao tribunal revolucionário... Os "homens de bem" de Carhaix acreditavam ter chegado o fim do mundo.

Subitamente, tudo terminou. De um dia para outro, todos os comissários, guardas, vigilantes, enfim, todos os "representantes do povo" desapareceram, e a cidadezinha devastada percebeu que começava uma trégua. Era o 9 Termidor. Em Paris, o tirano-maior, Robespierre, havia sido preso e guilhotinado, logo depois que falhou sua tentativa de se fazer adorar como deus. Em consequência, por todas as Carhaix da França, os "deusinhos" menores também se eclipsaram.

Preparando-se para novas "prudências"

No meio da fuligem e do sangue, entre as cinzas do burgo semidestruído, as poucas "pessoas de bem" que ainda viviam foram lentamente tirando a cabeça da areia. Piscando os olhos e se apalpando, não perceberam nenhum ferimento, e sorriram: nada como ser comedido, sensato e prudente! Os exageros da Revolução tinham ido embora! É verdade que as leis revolucionárias continuavam, e que seria preciso fazer concessões enormes a elas... Mas, não era melhor fazer logo essas concessões, e comprar, assim, uma vida sem honra, é verdade, mas pelo menos um pouco tranquila? Se não, oh horror! os Seis e os Doze poderiam voltar! A prudência (sempre a "prudência"!) aconselhava a ceder um pouco — apenas um pouco — para não perder tudo...

Essa foi sempre a atitude de certos "homens de bem". Outro não é, diante do perigo comunista, o comportamento de muitos habitantes dessa imensa Carhaix hodierna, que é o mundo ocidental.

No fundo de seus antros, um grupo de conspiradores, olhando para as "pessoas de bem" de Carhaix, esfregava as mãos, satisfeito: o jogo havia sido bem conduzido, e mais um passo estava dado.


Comentando

Plinio Corrêa de Oliveira

Mais uma dos iludidos generosos

Parece-me chegado o momento de comentar o caso de Portugal. Pois todas as ilusões a que o golpe de 25 de abril deu curso, se esvaziaram, deixando ver a nua realidade.

Portugal estava em ordem, pelo menos relativamente. Contra essa ordem levantou-se um movimento que prometia melhorar as coisas, afiançando que continuaria a manter a ordem e, de acréscimo, daria também a liberdade. Um semestre decorrido, o epílogo aí está: os revolucionários começaram por reduzir a frangalhos a ordem, e agora eliminam o que havia de liberdade.

Saldo todo negativo, portanto.

Afastados do poder os "moderados", à testa, do país só permanecem as esquerdas coligadas. Ou seja, os comunistas argutos e disciplinados, disfarçados detrás de uns socialistas complacentes, moles e desorganizados.

Em meio a tudo isso, o império colonial português se esboroou, a segurança das populações brancas e das maiorias negras da África lusa está gravemente ameaçada por punhados de agitadores, bafejados por Moscou.

A Europa estremece de ver o comunismo na iminência de se implantar no Tejo, e os EUA sentem um calafrio ante a possibilidade de os aeroportos de Portugal continental e insular passarem para o serviço da aviação militar russa.

Em suma, à catástrofe interna de Portugal soma-se uma verdadeira calamidade internacional.

"Esses comunistas..." rabujará algum simpático leitor anti-soviético. Na realidade, os grandes culpados por toda essa derrocada não foram, entretanto, os comunistas, mas os ditos moderados. Sim, sempre eles a abrirem, por toda parte, as portas ao comunismo. Na Itália como no Chile. Em Portugal como no Brasil.

Na gênese dos infortúnios de Portugal, talvez seja o caso de colocar antes de tudo certos políticos e intelectuais "generosos" da era Marcello Caetano, os quais — iludidos pela falaciosa distinção entre o PC dito pacífico e intelectual, e a fermentação revolucionária promovida pelos mais jovens do Partido — continuaram a apoiar a repressão policial contra estes, mas promoveram a entrega de certas posições aos primeiros. O resultado aí está. Na hora do ataque, uns comunistas e outros se uniram contra o regime. A ilusão dos "generosos" desfechou na mais amarga das decepções.

Subindo ao poder, o governo eclético presidido pelo General Spínola acentuou, aliás em outro estilo, a política das "generosas ilusões". Muitos conservadores, julgando possível uma contemporização com as esquerdas, se acercaram do governo, ajudando-o a implantar-se e a dar os primeiros passos.

O processo de descolonização, que veio brutal, caudaloso e destruidor, quando os moderados o esperavam refletido, lento e habilidoso, não bastou para que essas "generosas ilusões" se desfizessem.

Pensavam os "generosos" que, a piorar o curso das coisas, a personalidade do General Spínola e o peso incontrastável da grande maioria conservadora haveriam de frear os acontecimentos.

As coisas pioraram, e Spínola tentou coligar a grande maioria silenciosa. Foi em vão. O general teve que reconhecer que, com ou sem personalidade, o vazio se fizera em torno dele nas Forças Armadas. E a maioria silenciosa, intimidada por agitadores de rua e por uma facção de militares; teve que voltar a seu silêncio.

* * *

Fala-se, é verdade, de eleições. É óbvio que, se elas se realizarem corretamente, a derrota das esquerdas será espetacular. Pergunto-me, porém, se haverá eleições e, em caso afirmativo, se serão corretas.

- Com a imprensa garroteada, os oposicionistas aterrados pelo despotismo policialesco, os chefes políticos encarcerados ou refugiados no Exterior, como poderá haver eleições corretas?

Portugal entrou, talvez, num ocaso melancólico como o da Tchecoslováquia, Hungria e Polônia.

- Os grandes culpados? — Os homens das "generosas ilusões", do estilo de Kerensky e Frei, que abrem as portas ao comunismo.

- Mas os homens das "generosas ilusões" não são amigos dos anticomunistas? — Se o fossem, eu faria meu o gemido de Voltaire: "Livrai-me, Deus, dos meus amigos, que dos meus inimigos livro-me eu".

Ternuras que arrancariam lágrimas

"Os dois grandes tormentos do Prelado: crucificado pelo Cremlin e traído pelo Vaticano".

Com essas palavras, "The Sunday Telegraph", de Londres, iniciou no dia 15 de setembro p.p. a transcrição das tão esperadas memórias do Cardeal Mindszenty. Quanto à gloriosa crucifixão do Prelado húngaro, já é muito conhecida. — Terá havido realmente uma "traição" do Vaticano em relação a Mons. Mindszenty? No texto das memórias, noto que o Purpurado não usou essa dura e atrevida palavra. A manchete de "The Sunday Telegraph" atribui portanto ao Cardeal mais do que ele quis dizer. Mas nem por isto deixam de arrepiar os fatos por ele narrados.

A jogada do Vaticano — conta o grande Cardeal — começou em 1971. Tinha início, então, o terrível drama da "détente" com o comunismo, acionado a quatro mãos — do lado do Ocidente - por Nixon e Paulo VI. Um dos efeitos quase imediatos desse processo de autodemolição da Cristandade — pois objetivamente outra coisa não é a "détente" — foi que o Vigário de Jesus Cristo e o então Presidente dos EUA começaram a pressionar o Cardeal húngaro, por manifesta imposição do governo de Budapest. Este último nada desejava mais ardentemente do que ver Mons. Mindszenty fora do território húngaro. E assim, o Purpurado começou a sentir que já não era persona grata na embaixada norte-americana, onde se refugiara. Ao mesmo tempo, Paulo VI delegava junto a ele um Prelado para incitá-lo a sair da Hungria.

Não disponho de espaço para resumir aqui as múltiplas e sinuosas propostas que o Vaticano fez a Mons. Mindszenty. Todas elas deixavam transparecer o desejo da Santa Sé de atender a três desiderata essenciais de Budapest: 1) que o Cardeal deixasse a Hungria; 2) que, fora da Hungria, ele se abstivesse de qualquer ação própria a desagradar o governo húngaro; 3) que, em consequência, ele se deixasse anular inteiramente, enquanto paladino da reação católica contra o comunismo.

Em compensação, gozaria ele — cumulado de honras — de um tépido e ameno fim de vida, em Roma ou alhures.

Depois de várias recusas tão coerentes quanto cristalinas, Mons. Mindszenty chegou, por fim, e muito a contragosto, a uma combinação que lhe pareceu ser o máximo do que poderia aceitar sem ferir sua consciência. Deixou então a embaixada norte-americana a 29 de setembro de 1971. Ao sair do edifício, abençoou, num grande gesto paternal e trágico, sua Diocese e sua Pátria. E acompanhado do Núncio Apostólico de Viena, transpôs a fronteira com a Áustria. De passagem por Viena, recebeu as homenagens de Mons. Casaroli. Este o acolheu com o mesmo sorriso que mais tarde traria nos lábios ao tratar com Fidel Castro. A alegria do Kissinger vaticano se explica: estava cumprido o primeiro ponto do programa do governo de Budapest. O Cardeal-Primaz já não molestava os chefes ateus e igualitários da Hungria atual.

* * *

A boa acolhida de Mons. Casaroli não foi senão um prenúncio de melhor acolhida ainda da parte de Paulo VI. Os jornais do tempo publicaram largamente todas as honrarias e atenções do Sumo Pontífice para com o crucificado Cardeal.

Mas, ainda mesmo antes disto, começaram as surpresas. Chegando a Roma, Mons. Mindszenty tomou conhecimento de que o órgão oficioso do Vaticano, já no dia 28 de setembro, se referia à saída dele como a remoção de um estorvo para as boas relações entre a Igreja e o governo húngaro. "Para mim — comenta o Cardeal — foi a primeira experiência amarga, pois compreendi que o Vaticano não estava dando nenhuma atenção aos termos específicos que eu havia formulado em Budapest".

— Não causa arrepio?

Fatos posteriores vieram confirmar a estranheza de Mons. Mindszenty.

Havia ficado combinado que, depois de uma estadia em Roma, o Cardeal residiria no Seminário húngaro de Viena. O corolário dessa obrigação assumida pela Santa Sé era que esta última obtivesse o "agreement" prévio do governo austríaco. Comenta o Cardeal que, segundo parece, o Vaticano não tomou essa providência. Pois quando, após três semanas de estadia em Roma, ele quis partir para Viena, o embaixador austríaco junto à Santa Sé se pôs a levantar dificuldades. O indômito Cardeal aplainou as barreiras e a partida foi decidida.

O ato em que Mons. Mindszenty se despediu de Paulo VI ficará para sempre na história da Igreja, quer pelo que então sucedeu, quer pelo que veio depois. O Papa da "détente" teve para com o herói do anticomunismo ternuras que arrancariam lágrimas. — E depois...

Depois veio o pior.

Conclui na pág. 6