Homero Barradas
Neste ano de 1974, os povos latino-americanos comemoram o quinto centenário do nascimento de Juan Diego, o índio mexicano que se tornou, em 1531, porta-voz da Virgem de Guadalupe, encarregado de difundir sua mensagem de predileção pelas nações de nosso continente. Nossa Senhora de Guadalupe foi solenemente proclamada Padroeira da América Latina, em agosto de 1910, por São Pio X, então reinante.
Ignora-se o dia do nascimento de Juan Diego, mas as melhores pesquisas históricas dão como certo ter ele nascido em 1474, no povoado asteca de Cuauhtitlán, ao norte da então Tlaltelolco, que veio a ser, mais tarde, a Cidade do México. As comemorações de seu quinto centenário concentraram-se, neste ano, durante o mês de junho, mês de sua morte, em 1548, e durante o mês de dezembro, por ocasião da festa de Nossa Senhora de Guadalupe.
É notável a importância da devoção guadalupana na atual crise da civilização cristã, sendo a Virgem de Guadalupe, como é, a Rainha, oficialmente proclamada, das nações latino-americanas.
Se olharmos o panorama internacional na perspectiva da mensagem de Fátima, tornar-se-nos-á evidente que um papel de importância especial está reservado à América Latina.
Deus tem seu modo de agir na História. Se, por um lado, dá a todos a graça suficiente para se salvarem, quer, por outro lado, que todos se salvem livremente, isto é, permite que escolham por si o caminho da salvação ou da perdição. Assim também age com as nações. Dá-lhes os meios para se tornarem grandes pelo brilho da Fé, mas permite que decaiam e se corrompam pela infidelidade.
Entretanto, nas horas extremas da perdição humana, sói haver alguma intervenção de Deus — advertência, milagre ou castigo — capaz de reconduzir os povos à antiga fidelidade.
Nessas horas, a Providência costuma agir por meio de instrumentos seus, carentes dos meios humanos e dos recursos materiais proporcionados à força dos agentes do mal.
Espanha e Portugal formaram-se na luta árdua em defesa da Fé católica contra a invasão muçulmana. No século XVI, enquanto o resto, da Europa se afundava no protestantismo ou se consumia nas lutas religiosas, os países ibéricos, preservados da heresia por uma graça especialíssima, formavam, no ultramar, novas nações para a Igreja.
Mas também portugueses e espanhóis tiveram suas infidelidades e, por causa de seus pecados, a Providência permitiu que se armasse a trama internacional que acabou por marginalizá-los dos centros decisivos da política mundial.
Enquanto a Espanha e Portugal decaíam, outras nações cresciam em prestígio e riqueza. Os povos ibéricos e seu prolongamento na América passaram a ser encarados com desprezo.
Apesar de tudo, o espírito católico permaneceu mais vivo entre nós. Hoje, em plena crise, quando as rédeas da política internacional escapam das mãos dos Estados que eram até há pouco poderosos, Portugal, Espanha e América Latina mantêm o dom precioso da Fé e conservam entre seus povos uma solidariedade sem símile na história moderna.
Estas circunstâncias nos levam a crer que nossas nações terão uma missão especial na hora da intervenção de Deus no mundo decadente e materializado. E não é por outra razão que vemos nascer e florescer entre nós movimentos de defesa dos princípios da civilização cristã, como as diversas TFPs. Pareceria natural que movimentos como esses tivessem surgido nas nações de longa e brilhante tradição católica, ou naquelas que até agora dirigiam os destinos do mundo. Mas Deus quis olhar para os pequenos.
Por outro lado, é evidente a predileção manifestada pela Virgem Santíssima para com a América Latina.
Sob este aspecto, Guadalupe figura como a primeira e das mais significativas intervenções de Nossa Senhora junto aos povos desta parte do mundo.
O tom do diálogo por Ela mantido com Juan Diego revela uma extraordinária misericórdia e uma ternura comovente.
Na primeira aparição, a Senhora chama o índio, que então já era viúvo e tinha perto de sessenta anos, de — "Juanito, Juan Dieguito" ... E o continuou chamando de "el más pequeño de mis hijos".
Logo de início foi manifestando suas intenções misericordiosas, com, palavras de carinho como talvez não haja outro exemplo na história da Igreja: "Deseo vivamente que se me erija aquí un templo, para en él mostrar y dar todo mi amor, compasión, auxilio y defensa, pues yo soy vuestra piadosa madre, a ti, a todos vosotros juntos los moradores de esta tierra y a los demás amadores míos que me invoquen y en mi confíen; oír allí sus lamentos y remediar todas sus miserias, penas y dolores".
Essas palavras maternais aplicam-se perfeitamente a povos que seriam desprezados pelos orgulhosos da terra e que gemeriam sob o peso de seus pecados.
E as manifestações de misericórdia materna para com as nações latino-americanas se prolongaram através dos séculos. A invocação de Nossa Senhora de Coromoto, na Venezuela, originou-se em fatos que mostram também uma intenção misericordiosa que, dir-se-ia, passa dos limites. A Virgem quase que luta com o índio a quem aparece, para conseguir convertê-lo. E ele chega ao extremo de investir fisicamente contra a Aparição. Mas a Mãe de Misericórdia consegue salvá-lo.
Igualmente cheias de significação nesse sentido são as devoções a Nossa Senhora do Bom-sucesso, no Equador; de Nossa Senhora de Chiquinquirá, na Colômbia; de Nossa Senhora de Copacabana, na Bolívia, e tantas outras.
No Brasil, Nossa Senhora transforma-se em guerreira, como em Lepanto, para ajudar os pernambucanos a expulsar o calvinista holandês.
Como escolhido da Virgem Santíssima para receber sua mensagem, Juan Diego é uma pré-figura das nações às quais Ela queria manifestar sua predileção. E assim como a América Latina, apesar de tudo, permaneceria uma família de nações profundamente marianas, Juan Diego foi um modelo de devoção marial até o fim de sua vida.
Logo no primeiro momento em que viu e ouviu Aquela que seria proclamada a Rainha de nosso continente, ele A saudou como "Señora y Niña mía", isto é, minha Soberana e menina dos meus olhos. É difícil encontrar familiaridade mais bela. Menina dos meus olhos: centro das minhas atenções, objeto das minhas preocupações, chama do meu entusiasmo, alegria dos meus dias.
A condição social de Juan Diego, que pertencia à classe mais obscura entre os astecas, os mazehuales, lembra muito apropriadamente aquelas nações que seriam chamadas, nos orgulhosos países industrializados, de republiquetas latino-americanas...
A crise do mundo contemporâneo, que, originando-se no fim da Idade Média, chega hoje ao seu auge, na pertinaz perseguição do objetivo final de seus fautores, que é a extinção da civilização cristã, tem como mola propulsora duas paixões que devoram o homem contemporâneo — o orgulho e a sensualidade.
O orgulho que não suporta qualquer hierarquia e por isso mesmo se revolta contra a ordem instituída por Deus e busca a igualdade mais rasa na Igreja, na sociedade civil e até nos grupos naturais, como a família e a escola. A sensualidade que rejeita qualquer freio e não se satisfará a não ser na libertinagem mais crassa, e consequente animalização do homem (cf. Plinio Corrêa de Oliveira, "Revolução e Contra-Revolução", São Paulo, 1959).
Consequentemente, as virtudes mais fundamentais e mais ativas no homem que procura o restabelecimento da Ordem e a instauração da Cidade de Deus devem ser a humildade e a castidade.
Juan Diego, na obscuridade de seu povoado indígena do início do século XVI, foi um modelo de humildade e de castidade.
Sua humildade estava principalmente no reconhecimento sincero de sua debilidade. Diante da missão altíssima que lhe confiou Nossa Senhora, rogou-lhe que a confiasse a outro, de maior posição: "Te ruego encarecidamente, Señora y Niña mía, que a alguno de los principales, conocido, respetado y estimado, le encargues que lleve tu mensaje, para que le crean; porque yo soy un hombrecillo, soy un cordel, soy una ecalerilla de tablas, soy cola, soy hoja, soy gente menuda, y tú, Niña mía, la más pequeña de mis hijas, Señora, me envías a un lugar por donde no ando y donde no me paro".
Sua castidade foi surpreendente, se considerarmos o meio e a época em que viveu. O sábio historiador Fernando de Alba Ixtlilxóchitl resume em poucas linhas o programa de vida de Juan Diego e sua mulher: "Ambos vivieron castamente: su mujer murió virgen: él también vivió virgen: nunca conoció mujer. Porque oyeron cierta vez la predicación de Fray Toribio Motolinía, uno de los doce frailes de San Francisco que habían llegado poco antes, sobre que la castidad era muy grata a Dios e a su Madre Santísima" (apud Manuel Garibi Tortolero, "Juan Diego, el embajador inmortal" — "El Eco Guadalupano", Guadalajara, junho-agosto de 1972).
São Luís Maria Grignion de Montfort ensina que, assim como foi por intermédio da Santíssima Virgem que Jesus Cristo veio ao mundo, é também por meio dEla que Ele deve reinar no mundo. Na mensagem de Fátima, Nossa Senhora mesma proclamou que, após a luta titânica de que estamos participando, na qual inimigos externos e internos se unem para extinguir a Cristandade, e que culminará com o aniquilamento de várias nações, o seu Imaculado Coração triunfará.
Se na crise atual cabe a Ela o comando das operações contra o inimigo e se Ela manifesta assim sua predileção pelos descendentes daqueles que heroicamente empreenderam a epopéia da Reconquista, é porque Ela reserva para esses seus filhos um papel especial na nova Reconquista.
"Eis aqui está posto este Menino para ruína e para salvação de muitos em Israel e para ser o alvo a que se atire a contradição" — disse de Nosso Senhor o velho Simeão (Luc. 2, 34). E assim continuou sendo por toda a história da Cristandade; nunca houve movimento vitorioso sobre o inferno que não tenha sido sinal de contradição.
A devoção guadalupana tem sido também um sinal de contradição. Uma devoção que encontra apoio tão seguro na mais autêntica doutrina da Santa Igreja, que foi confirmada em seus primeiros dias por milagres extraordinários e que teve como fruto imediato a conversão de milhares de indígenas que, vencidos pelas armas, olhavam com desconfiança a Fé que lhes ensinavam os espanhóis, era para ter tido sempre o mais incondicional incentivo das Autoridades eclesiásticas. Entretanto, muitas delas, no passado influenciadas pelo jansenismo, hoje contaminadas pelo progressismo, se têm mostrado indiferentes e frias.
Quando, em 1910, o Arcebispo do México, D. José Mora y del Rio, expediu a todos os Bispos da América uma circular pedindo o seu apoio para a proclamação da Virgem de Guadalupe como Padroeira de todo o continente, não poucos deixaram de responder ou responderam declarando não achar oportuna tal proclamação...
Entretanto, contando com forte apoio dos Prelados mais tradicionalistas, o pedido foi encaminhado ao Papa. São Pio X, que então reinava, vendo faltar na lista de adesões a maior parte do Episcopado Norte-americano, atendeu o pedido apenas com referência à América Latina. Assim, os Estados Unidos e o Canadá ficaram privados do glorioso patrocínio guadalupano.
Mas a primitiva indiferença não tardou em transformar-se em ódio por parte de muitos. E hoje assistimos, estarrecidos, a pregação de eclesiásticos e até Bispos contra a devoção guadalupana, dentro da própria Basílica de Guadalupe. Ainda mais; com a conivência do seu próprio Clero, aquele Santuário glorioso foi ultrajado em 1972, por ocasião da tomada de cenas, no seu átrio, de um filme imoral e satânico (cf. "Catolicismo", n.° 268, de abril de 1973).
Por outro lado, a devoção a Nossa Senhora de Guadalupe vai crescendo sempre mais nos meios fiéis à tradição católica.
Poucos anos depois das aparições a Juan Diego, uma reprodução da Imagem milagrosa, doada ao Almirante Andrea Doria por Filipe II, esteve presente na batalha de Lepanto, onde, pelo mérito da recitação do rosário, Nossa Senhora dignou-se exterminar a frota turca que ameaçava o Ocidente. Esta circunstância liga especialmente a devoção guadalupana à devoção do rosário.
A festa litúrgica de Nossa Senhora do Rosário, instituída pelo Papa Gregório XIII em 1.° de abril de 1573, foi fixada em 7 de outubro, dia da batalha de Lepanto, em agradecimento pela vitória das armas católicas. Em 1973, por ocasião do quarto centenário dessa vitória, foi comemorado no mundo inteiro o Ano Guadalupano do Rosário, assinalando o entrelaçamento das duas devoções marianas.
A glória guadalupana culmina com a proclamação do reinado de Nossa Senhora de Guadalupe sobre a América Latina, pelo Papa santo de nosso século, São Pio X.
Neste centenário de Juan Diego, encontramos agrupados em torno da Padroeira da América Latina aqueles que estão dispostos a defender a sua honra e tornar efetivo o seu Reinado. Este será, por certo, entre os muitos títulos de glória que adornam a história de Guadalupe, um dos mais relevantes.
Diante deste quadro de José Ibarra ("o Murillo mexicano"), as Autoridades eclesiásticas e civis proclamaram Nossa Senhora de Guadalupe Padroeira da Nova Espanha, em 1746.
Juan Diego — pormenor de pintura mural muito antiga, conservada na Basílica de Guadalupe. Está revestido de trajes próprios à nobreza, que o pintor lhe atribuiu por ser o Vidente.
Plinio Corrêa de Oliveira
De uma entrevista de D. Ivo Lorscheiter ao órgão oficioso da Arquidiocese de Curitiba, a "Voz do Paraná" (6/12 de outubro p.p.), destaco uma afirmação. Diz o Prelado: "Para mim a TFP é herética mesmo. A heresia significa para mim selecionar um aspecto da mensagem cristã. No caso da TFP só vale a tradição, o antigo. Isso é heresia, é ver um só lado da questão".
A fé é a mais preciosa das virtudes, pois é a raiz de todas as demais. Assim, para um católico não há pecado maior que o de cair em heresia. A acusação que nos dirige o Prelado não poderia, pois, ser mais violenta. Em matéria de "antitefepismo" é tudo quanto há de mais radical.
Ora, o valor de uma acusação reside antes de tudo, na veracidade dos fatos nos quais ela se baseia. — No caso concreto, que fatos são estes?
Já em agosto de 1968, D. Lorscheiter, então Bispo Auxiliar de Porto Alegre, assacou contra a TFP a mesma acusação. Pedi, nessa ocasião, a S. Excia., através das prestigiosas páginas de "Catolicismo" (n.° 212/214, de agosto-outubro de 1968), que citasse "em qual dos nossos pronunciamentos ou dos livros que difundimos, encontra base para sua gravíssima acusação". O Prelado se calou, E fez bem, pois outra saída não há para quem não tem o que responder.
Passaram-se os anos, e D. Lorscheiter volta agora à carga com a mesma acusação. Dói-me reduzir mais uma vez ao silêncio um Bispo da Santa Igreja. Mas, que remédio? — Pergunto, pois a S. Excia., se durante todo esse tempo em que, quer a TFP, quer eu pessoalmente, não temos cessado de nos pronunciar sobre os problemas atuais, encontrou S. Excia, algo que alegar no sentido de que somos hereges. Prognostico que S. Excia. se manterá calado. É pelo menos o que lhe aconselho, em nome da prudência.
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O fogoso Secretário-Geral da CNBB, ao afirmar que a TFP ,e "herética mesmo", parece dizer que ela o é no sentido próprio e rigoroso do termo, isto é, no sentido técnico e específico do Direito Canônico. Logo depois, porém, ao indicar no que consiste nossa "heresia"; aponta algo de tão vago e confuso, que nenhum canonista mediano ousaria chamar isso de heresia. Com efeito, segundo ele, "no caso da TFP só vale a tradição, o antigo. Isso é heresia, é ver um só lado da questão".
Dir-se-ia que S. Excia., querendo fazer-nos passar por hereges aos olhos dos leitores da "Voz do Paraná", porém não sentindo base para isto, lançou a acusação, mas ato contínuo lhe diluiu o efeito.
Essa hipótese não é airosa para um Bispo. Prefiro imaginar que tenha sido irreflexão, confusão de conceitos e termos, provocada quiçá pela turbação de seu espírito ao falar da TFP. — Radicalidade...
Mesmo assim, não me é fácil explicar como, tendo eu, também em 1968; feito notar a S. Excia., que para a TFP não vale apenas "a tradição, antigo", já que apoiamos várias reformas novas, contanto que não sejam eivadas de comunismo (cf. "Reforma Agrária — Questão de Consciência", pp. 9 e segs., e toda a Declaração do Morro Alto), S. Excia. nada tenha encontrado que responder. E. agora, decorridos anos, volta à carga, sempre com as mesmas acusações sem provas.
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Aliás, as imprecisões nocivas à TFP são frequentes na entrevista do Prelado. Esta por exemplo. Como já vimos, declara ele: "para mim a TFP é herética mesmo". Trata-se de uma opinião pessoal dele, note-se. E mais adiante afirma, também sobre a TFP: "Dizemos: isso não é posição cristã. É herética".
A pergunta se impõe; se há mais de uma pessoa que pensa como D. Lorscheiter, quem é? Já que S. Excia. é Secretário-Geral da CNBB, pergunta-se se é a CNBB. Ele não o diz. A confusão fica no ar. E nociva à TFP.
Tal confusão é alimentada, ademais, por este outro tópico de D. Lorscheiter: "A questão da TFP foi tratada na última assembléia geral da CNBB, há dois anos. E foi dito mais uma vez que todas as posições radicais não podem ser mantidas dentro da qualificação de cristão". — Foi dito? Dito por quem? O leitor desprevenido pensa que pela CNBB. Ora, esta absolutamente não disse tal. "Foi dito", talvez, por alguém em nome próprio, durante os debates. Porém, essa coisa dita não figura no comunicado divulgado pela CNBB através da imprensa.
Como se vê, o Sr. D. Lorscheiter foi confuso. E essa confusão foi toda ela nociva à TFP.
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Não é que eu esteja em desacordo com tudo quanto S. Excia. afirmou na entrevista. Nela leio um princípio genérico de uma veracidade óbvia, mas que nem por isto deixa de ser de ouro: "O cristão não pode ser radical, no sentido da intolerância, do unilateralismo, assim por diante".
Que bom seria se o vibrante Secretário-Geral da CNBB quisesse fazer um exame de consciência a respeito de sua entrevista, a fim de verificar se ela não é radical, intolerante, unilateral; se ela não peca pela mesma "radicalidade" que imputa TFP.
Estou certo de que sua consciência lhe dirá que sim. — Se ele quiser uma prova, bastará que examine sua entrevista, e as reflexões que aqui deixo consignadas.
Segundo as agências telegráficas, a Conferência de Quito concernente à suspensão do bloqueio da Cuba castrista se inaugurou em clima de euforia, pela generalizada convicção de que a suspensão seria aprovada. Contudo, mais ou menos do meio para o fim, a atmosfera se modificou inesperadamente.
Com efeito, depois das provas dadas pelo Chile e Uruguai, do intervencionismo fidelcastrista, Haiti e Guatemala, que haviam deliberado votar pelo reatamento, declararam sua intenção de abster-se. Ao mesmo tempo, a atitude abstencionista já anteriormente assumida pelo Brasil, EUA, Bolívia e Nicarágua, foi tomando um colorido nitidamente propenso à manutenção do bloqueio. Estava assim virtualmente derrotada a moção pró-castrista dá Venezuela, Colômbia e Costa Rica.
Esses os fatos essenciais. Em torno deles, alguns comentários podem ser bordados.
Consigno aqui a alegria que todos os brasileiros explicavelmente sentiram diante do papel relevante do Itamaraty no feliz desfecho do caso. O silêncio mal-humorado — e, mais do que isto, enigmático — dos EUA, deixou campo largo para que o Sr. Azeredo da Silveira evoluísse na conformidade com as melhores tradições do Itamaraty. E que sua abstenção redundasse, afinal, numa firme recusa da suspensão do bloqueio.
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Isso não obstante, o quadro da Conferência não deixa de apresentar sombras. Antes de tudo, cumpre lembrar que o assunto ora debatido em Quito já esteve na pauta da conferência interamericana de Lima, em 1972. Naquela ocasião, a margem dos que votaram contra e a favor de Fidel Castro foi bem maior: 13 a 7, respectivamente. E só houve três abstenções.
Ademais, ficou proibida a suspensão do bloqueio feita em separado por qualquer nação. Pelo contrário, agora ficou permitido às nações que o desejarem, reatar as relações diplomáticas ou comerciais com a nação comunista.
Em síntese, na Conferência de Quito, Cuba não derrubou a muralha inteira, mas boa parte dela.
Para diminuir ainda mais o alcance do resultado obtido na capital equatoriana, é preciso acentuar que os Chanceleres brasileiro e uruguaio asseveraram que na reunião de Buenos Aires, em março de 75, ou mais tarde, o assunto poderá ainda receber outra solução. Por enquanto, ele entrará em fase de maturação, segundo se expressou o Sr. Azeredo da Silveira.
Como se vê, debaixo de vários pontos de vista, Cuba ganhou terreno...
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A esta altura, levanto a ponta do véu.
A reviravolta ocorrida na Conferência de Quito é atribuída pelos jornais ao impacto das provas aduzidas pelo Chile e pelo Uruguai, do caráter intervencionista do regime de Castro. — Duvido da objetividade dessa informação. Todas as nações latino-americanas sentiram na própria carne a subversão russa e chinesa propagada através de Cuba. Não é crível que os depoimentos chileno e uruguaio lhes tenham trazido algo de tão novo; que chegasse a mudar-lhes a orientação.
Também não podia causar surpresa a nenhuma nação a observação do Sr. Azeredo da Silveira, de que a ausência de representantes de Fidel Castro em Quito tornava impossível a obtenção de garantias de não intervenção por parte deste. Isto já era óbvio desde o início da Conferência.
Aliás, cumpre acrescentar que as garantias de Fidel Castro nenhum valor efetivo, podem ter. Como se sabe; a Cuba castrista é uma colônia sino-russa, sem poder de deliberação próprio. Só teria valor efetivo a presença em Quito de representantes diretamente credenciados por Moscou e Pequim... e ainda assim!
Foi, pois, outra a causa que mudou felizmente o rumo da Conferência. — Qual?
Eu me pergunto, de outro lado, no que pode consistir a tal "maturação" do assunto, preconizada pelo Brasil e pelo Uruguai. A começar por aí: uma vez que em nossa atitude nada há de imaturo, a maturação só pode dar-se em Cuba, Moscou ou Pequim. — O que parecem pressagiar as chancelarias do Brasil e do Uruguai nesta matéria?
Aqui ficam duas perguntas básicas. Levantar a ponta do véu não é correr o véu inteiro. Formulo as perguntas, porém não tenho os dados da resposta. Pondero apenas que, em matérias como essa, levantar a ponta do véu já não é pouca coisa...